Amor moderno

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Frances Ha é um bilhete de amor endereçado à Nouvelle Vague em geral e a François Truffaut em particular. As marcas da primeira década da nova onda francesa estão por toda parte: personagens simpaticamente deslocados, trilha de Georges Delerue, diálogos e atuações naturalistas, fotografia em preto-e-branco e montagem que não raro eliminam o campo/contracampo e deslizam, livre, pela gramática clássica a fim de melhor pervertê-la.

Ou seja, o filme atesta a vivacidade de uma forma de ver e fazer cinema que segue intacta há mais de meio século e que, neste momento, parece resgatar um frescor e uma liberdade que o cinema indie norte-americano vinha perdendo. Sob qualquer aspecto, a façanha de Noah Baumbach não é pequena.

Diretor de dois bons longas  (A Lula e a Baleia e Margot e o Casamento) sobre famílias disfuncionais, ou seja, famílias ordinárias, ele teve de pisar em falso com O Solteirão para fazer o que qualquer cineasta digno de nota faz quando chega a um impasse: olhar para o próprio cinema ou, melhor dizendo, para o cinema que lhe interessa, que lhe diz respeito. É como se ele se perguntasse não que filme gostaria de fazer em seguida, mas, sim, que filme gostaria de ver.

Assim, o princípio norteador de Frances Ha é o prazer de ver e mostrar. O diretor acompanha os personagens com um interesse humano incomum, de fundo evidentemente cinefílico e, portanto, desbragadamente afetivo. Mesmo nos piores momentos pelos quais passa a personagem-título, uma bailarina que batalha para se firmar numa profissão para a qual, talvez, não seja tão boa, ao mesmo tempo em que vê sua melhor amiga se distanciar e a carestia da vida em Nova York impôr não poucos obstáculos, há uma beleza intrínseca ao mero estar ali.

Essa beleza é parente em primeiro grau daquela que experimentamos, por exemplo, em Jules e Jim. Lá, mesmo quando a tragédia irrompe, parece fruto de um “excesso de vida” que vem cobrar sua fatura. O mergulho suicida ao final é um salto para fora, claro, mas também um sorriso cúmplice e nostálgico para o que foi vivido antes e que perdurará na memória dos que ficam, incluindo nós, espectadores. Não lamentamos pela sorte de Jim e Catherine. Eu, pelo menos, não lamento.

Em Frances Ha, embora não aconteça nada dessa natureza, há um comprometimento com a vida que, longe de significar um qualquer otimismo estéril, ressalta justamente o imponderável da existência. Não há garantia alguma de que tudo ou sequer uma parcela das coisas terminará bem, até porque todos sabemos, no limite, como é que tudo termina, mas um entendimento paulatino de que o melhor é seguir correndo, ao menos até que o mergulho não surja como uma possibilidade (e, se for o caso, por que não?).

Vendo o filme, pensei que a vida é algo que nos diz respeito enquanto dissermos respeito a ela. Há um acordo nisso, uma espécie de contrato de mútua relevância, de mútua iluminação. Frances está empenhada em cumprir cada mísera cláusula desse contrato, e, conforme descobrimos ao final, ela até se descobre expressando artisticamente certos pormenores de sua vivência e dos que lhe são próximos. Ela confere significado à vida para que a vida lhe confira significado.

Talvez por isso seja tão marcante a cena em que ela corre pela cidade ao som de Modern Love, de David Bowie: a câmera se movimenta com ela, e a impressão que tive é de que Frances conta com o chão sob seus pés na mesma medida em que o próprio chão conta com os pés dela a lhe percorrer. Mútua relevância, mútua iluminação.