Canto LII

Canto LII

Os CANTOS CHINESES (LII-LXI) usam como fonte onze (dos doze) volumes da Histoire generale de la Chine, do jesuíta francês Joseph-Anna-Marie de Moyriac de Mailla (1669-1748). De Mailla viveu em Pequim por 37 anos. A obra foi concluída em 1730 e publicada entre 1777 e 1783. Sendo um iluminista, de Mailla apreciava a ênfase na ordem racional exercitada pela filosofia política confucionista. Pound adaptou a visão dele sobre a China às suas opiniões acerca do cristianismo e da necessidade de um líder forte (Mussolini, claro) para resolver os problemas europeus contemporâneos. Por sorte, na maior parte desses Cantos, a ênfase está na exuberância da história chinesa.

“Duque Leopoldo”: o Grão-Duque da Toscana entre 1765 e 1790 já apareceu nos Cantos XLIV e L, onde Pound enumerou suas reformas econômicas. As referências à “verdadeira base do crédito” e ao apoio do povo dizem respeito ao banco Monte dei Paschi, em Siena, também abordado por Pound em outros poemas (XLII-XLIV).

“Schacht”: Horace Greeley Hjalmar Schacht (1877-1970), economista, banqueiro e político alemão, ajudou a acabar com a hiperinflação durante a República de Weimar e foi presidente do Reichsbank (1923-1930). Sob Hitler, foi ministro da economia, mas eventualmente se opôs à política de rearmamento nazista (acreditando que ela criaria pressão inflacionária e arruinaria as reformas que deram certo). Acabou demitido em 1939 e preso em Ravensbrück em 1944. Julgado em Nuremberg, foi absolvido.

“anno seidici”: o “ano VI” do calendário fascista (28/10/1937-27/10/1938).

“commerciabili beni”: “bens comercializáveis”. É uma tradução poundiana de “Verbrauchsgüter” (“bens consumíveis”), expressão usada por Schacht durante a visita de Hitler a Roma em 1938: “Geld, dem keine Verbrauchsgüter gegenüberstehen, ist ja nichts als bedrucktes Papier”, “Dinheiro que não é emitido contra bens comercializáveis (sic) não passa de papel impresso” (“Letter from Rapallo”, Japan Times and Mail VII.2, 12/09/1940).

Na visão de Pound, Schacht supervisionou o crédito estatal de forma a canalizar os recursos para a melhoria do bem-estar material da nação sem recorrer a empréstimos de bancos privados, como ocorria nos Estados Unidos do New Deal. Logo, as ideias Schacht estavam em consonância com a visão de Pound sobre as questões econômicas, além de se alinharem ao ideário contrário à usura do poeta.

“neschek”: “usura” em hebraico. Não custa sublinhar que a usura era proibida pela Torá (Êxodo 22, 25; Levítico 25, 35-37; Deuteronômio 23, 19-20), embora fosse permitido aos judeus emprestar dinheiro a estrangeiros.

“Vivante”: Leone Vivante (1887-1970), crítico e filósofo italiano de ascendência judaica, com quem Pound conviveu por um tempo e a quem culpava por ignorar o problema da usura e sua suposta conexão com as causas da guerra.

As tarjas pretas na edição brasileira suprimem a palavra “Stinkschuld”, nome pejorativo que Pound deu à família Rothschild, composto por “stink” (“fedor” em inglês) e “Schuld” (palavra alemã que significa “culpa”, “dívida”). Nas edições mais recentes dos Cantos, as tarjas sumiram e a palavra foi restituída ao poema. Nas primeiras versões, Pound usava o nome da família, mas Eliot sugeriu que ele não fizesse isso a fim de evitar um processo. Irritado, Pound criou o “Stinkschuld”. O “pecado” dos Rothschild é, claro, a usura, e a “vingança” ensejada é dos cristãos (representados por Hitler) contra os judeus usurários. Pound chegou a dizer que os judeus eram os culpados pela perseguição que sofriam. Ou seja, Pound desgraçadamente abraçou as “teorias” da propaganda antissemita e as repetia aos quatro ventos.

“Srta. Bell”: a arqueóloga, historiadora e escritora britânica Gertrude Bell (1875-1927), que viajou pelo Oriente Médio. Os “laços com os árabes” estão no contexto do início da Primeira Guerra e da Revolta Árabe de 1917-18. As “sanções” dizem respeito ao esforço mal sucedido da Liga das Nações de punir a Itália pela invasão da Abissínia em 1935.

“Litvinof”: Maxim Maximovich Litvinov, nascido Meir Henoch Wallach-Finkelstein (1876–1951), foi um revolucionário russo e ministro das relações exteriores da URSS entre 1930 e 1939, quando Stálin o substituiu por Molotov e Litvinov se tornou embaixador nos EUA (1939-41). Como ele tivesse ascendência judaica, Pound sempre o atacava em suas transmissões radiofônicas.

“entrefaites”: “circunstâncias”.

“IGNORÂNCIA”: citação de uma carta de John Adams para Thomas Jefferson (25/08/1787; Adams estava em Londres negociando um empréstimo dos holandeses para financiar a guerra de independência dos EUA). O “Ben” citado a seguir é Benjamin Franklin, algo que ele teria dito em 1787, mas há quem questione a veracidade dessa “advertência” antissemita.

As tarjas pretas suprimem os seguintes versos:

specialité of the Stinkschuld
bomb-proof under their house in Paris
where they cd/store aht voiks
fat slug with three body-guards
soiling our sea front with a pot bellied yacht in the offing

Em tradução livre: “specialité dos Stinkschuld / à prova de bomba sob sua casa em Paris / onde eles armazenam oibras d’arte / lesma gorda com três guarda-costas / sujando a nossa vista pro mar com um iate bojudo no horizonte”. Óbvio que “oibras d’arte” é uma solução abestalhada pra “aht voiks”. Supõe-se a “casa em Paris” seja o “Hôtel de Talleyrand” (Saint Florentin, nº 2), onde residiu Edouard Alphonse James de Rothschild (1868-1949), chefe de família e diretor do Banque de France. Ele herdou do pai, Alphonse, uma enorme coleção de obras de arte, as quais fez o possível para esconder dos nazistas. A “lesma gorda” é, provavelmente, Henri James Nathaniel de Rothschild (1872-1947), um bon vivant. Ele, de fato, tinha um iate, Eros II, fabricado na Escócia em 1926. Em 1939, Henri fugiu para Lisboa e o iate foi confiscado pela marinha francesa (1940-42) e, depois, pelos alemães. O barco foi torpedeado pelos Aliados em 1944 e afundou no Golfo de La Spezia.

“das duas usuras, a menor está agora liquidada”: Shakespeare, Medida por Medida, ato III, cena 2 — “Twas never merry world since, of two usuries, the merriest was put down”. No caso, as “duas usuras” referidas pelo personagem da peça são a prostituição e o empréstimo de dinheiro. A primeira era proibida por lei; a segunda, permitida e praticada pelos ricos.

“Entre KUNG e ELÊUSIS”: Elêusis era a cidade na Ática onde os Mistérios Eleusinos de Deméter e Perséfone eram celebrados. A princípio, esses ritos eram parte de um festival agrícola. Com o passar do tempo, passaram a concernir ao mundo ínfero e suas deidades, bem como ao descenso ao Hades e às visões místicas do futuro. Nos Cantos, a fórmula “Kung e Elêusis” é recorrente e assinala os dois extremos entre os quais, no entender de Pound, os valores humanos devem ser estabelecidos: “a vida ética e os mistérios sacros”.

“la Dorata” é uma igreja em Toulouse dedicada à Virgem, Notre Dame de La Daurade. A referência de Pound ao “baldacchino” entrega que, no entanto, ele não está na igreja ou sequer em Toulouse, mas em Siena, defronte à pintura Maestà (1315), de Simone Martini, na chamada Sala del Mappamondo, onde a fundação do Monte dei Paschi foi discutida e ratificada. Assim, a Virgem precisa de um “baldacchinno” por estar em um local secular, o Palazzo Pubblico de Siena.

“Riccio (…) Montepulciano”: agora, a referência é ao afresco de Martini na mesma sala, pintura que retrata o condottiere Guidoriccio da Fogliano no cerco de Montemassi, em 1328. O afresco simboliza a força militar e política de Siena antes de ser conquistada por Cosimo de Médici em 1555 e incorporada à Toscana.

“a igreja bêbada…”: no entender de Pound, a igreja foi incapaz de proteger as pessoas da usura, sobretudo após a Reforma.

“Sabei então”: aqui, Pound se afasta do mundo decadente ocidental, controlado pelos usurários, e se dirige à China antiga. Assim, a segunda parte do Canto traz diversas citações do capítulo 4 do Livro dos Ritos conforme as traduções francesa e latina da jesuíta e sinóloga Seraphin Couvreur (1835-1919). O capítulo 4 discorre sobre os regulamentos administrativos do ritual imperial. Cada mês do ano é dominado por uma posição das estrelas, um número sagrado, um determinado animal, som, instrumento musical, sabor, perfume, órgãos sacrificiais, atividades, vestes, carruagem e cavalo do soberano. Assim, o Livro dos Ritos nos apresenta um modelo de ordem em que o humano e o social estão vinculados às mudanças da natureza ao longo dos meses e estações do ano. Essa ordem, por sua vez, é a expressão da ideia filosófica de ordem que emana do indivíduo para a sociedade apresentada no Ta Hio, referido por Pound no final do canto pelo ideograma “chih³”, “parar”, “vir descansar”.

“Ming T’ang”: “salão luminoso”, o palácio imperial onde, nos tempos lendários, o imperador (“Filho do Céu”) realizava os rituais sagrados que renovavam o mundo, determinavam as estações e criavam a ordem social conforme a vontade do Céu.

“Chama as coisas pelos nomes”: Analectos XIII.

“Lord Palmerston”: Henry John Temple (1784-1865), primeiro-ministro (1855-65) no reinado de Vitória.

“comece drenando…”: Pound retorna ao início do Canto, referindo-se a Leopoldo e também (implicitamente) a Mussolini e os “melhoramentos” proporcionados por ambos (supostamente, no caso do fascista). E foi Palmerston quem “combateu o tédio da neblina de Londres”, tendo esbarrado na burocracia e na mentalidade canhestra de seu tempo.

Cantos LII-LXXI (1940)

Subdivisão:

CANTOS CHINESES (LII-LXI)
CANTOS DE ADAMS (LXII-LXXI)

— no próprio livro, na abertura da seção, Pound oferece um bom índice desses Cantos para que os leitores se orientem.

CANTO LII
Um Canto estranho. Começa remetendo a Leopoldo,
prossegue reiterando cretinices antissemitas,
mas torna-se outra coisa ao abraçar
o Livro dos Ritos em alguns versos preciosos.

CANTO LIII
Um dos grandes poemas do livro.
Pound repassa a história chinesa desde os tempos míticos
dos “Grandes Imperadores” até a derrocada
da dinastia Chou, passando pelas dinastias Hia e Chang.
Confúcio (“Kungfutseu”) toma de assalto boa parte do Canto.

CANTO LIV

CANTO LV

CANTO LVI

CANTO LVII

CANTO LVIII

CANTO LIX

CANTO LX

CANTO LXI

CANTO LXII

CANTO LXIII

CANTO LXIV

CANTO LXV

CANTO LXVI

CANTO LXVII

CANTO LXVIII

CANTO LXIX

CANTO LXX

CANTO LXXI

Canto LXXXIV

“Si tuit (…) plor”: “Se todo o pesar e as lágrimas”. Trata-se de algo já citado no Canto LXXX. Trata-se do lamento de Bertran de Born pela morte do rei Henrique, o Jovem (1155-1183).

“Angold”: o poeta britânico John Penrose Angold (1909-1943), morto em ação (como piloto da RAF).

“τεθνηκε”: “ele está morto”.

“tuit (…) bes”: “todo o valor, todo o bem”. V. primeira nota acima.

“Bankhead”: John Hollis Bankhead (1872-1946), senador pelo Alabama tido em alta conta por Pound. A “MULA” é, provavelmente, F. D. Roosevelt.

“Borah”: William Edgar Borah (1865-1940), senador por Idaho. Bastante engajado em relações internacionais. Pound propôs fazer de tudo para que os EUA não entrassem na Segunda Guerra Mundial.

“Roy Richardson: capitão no DTC. Demattia, Fazzio, Bedell eram soldados no DTC. O jazzista Harry Crowder (v. Canto LXXX) é citado porque um dos soldados pareceria com ele.

“Sr. Coxey”: Jacob Sechler Coxey (1854-1951), reformista norte-americano.

“Sr. Beard”: o historiador norte-americano Charles Austin Beard (1874-1948).

John Adams é citado por conta de sua controversa decisão de, contrariando pressões políticas e da imprensa, evitar ir à guerra contra a França (o que contribuiu para que não fosse reeleito).

“Tcao Chcien”: T’ao Ch’ien (365-427), T’ao Yuan-ming, poeta chinês. A “fonte do Pêssego-em-flor” é uma alegoria sobre um pescador que se perde e vai parar em uma terra muito bonita, onde todos viviam felizes.

“Ho Ci’u”: Sié, na província Shansi.

“Kύθηρα δεινα”: “terrível Cythera”.

“Natalie”: a dramaturga, poetisa e romancista norte-americana Natalie Barney (1876-1972).

“Wei”: Wei Tzu, visconde do principado de Wei no século XII a.C., irmão adotivo de Cheou-sin, derradeiro soberano da dinastia Yin. Horrorizado com a crueldade de Cheou-sin, Wei abandonou a corte e foi embora do reino.

“Chi”: Chi Tzu, visconde do principado de Chi e tio de Cheou-sin. Chi protestou contra os desmandos do sobrinho e foi preso por isso.

“Pi-kan”: Pi Kan, outro tio de Cheou-sin, também protestou e foi assassinado.

“jen²”: “humanidade”.

“Xaire”: “Ave” (saudação, como em “ave, César”). “Alessandro” é Alessandro Pavolini, secretário do governo fascista estabelecido em Salò. “Fernando” é Fernando Mezzasoma, ministro da cultura popular em Salò. E “il Capo” é, claro, Mussolini.

“Pierre” é Pierre Laval, premiê da França de Vichy. “Vidkun” é Vidkun Quisling, político norueguês colaboracionista, foi chefe de governo da Noruega ocupada pelos nazistas. “Henriot” é Philippe Henriot, jornalista francês e fascista de carteirinha, trabalhou na França ocupada. Foi morto a tiros pela Resistência em 28 de junho de 1944.

“Imperial Chemicals”: empresa britânica hoje não mais existente (foi vendida para a Azko Nobel em 2007). O sujeito que saiu “FORA” foi Wm. C. Bullitt (1891-1967), que serviu como embaixador na URSS e na França e lutou na guerra pelo exército francês em 1944-45. Ele teria vendido todas as ações que detinha da Imperial Chemicals quando soube que a crise de 1929 estava a caminho. Dorothy Pound também vendeu suas ações de uma empresa que fabricava munições (ações que recebera por herança), mas não por quaisquer especulações financeiras e, sim, por uma questão de pacifismo.

“quand (…) l’escalina”: “que vos guia ao topo desta escadaria”. É do lamento de Arnaut Daniel no Purgatório XXVI, 146, já citado no canto anterior.

“ηθος”: costume, praxe. Pound traduz como “gradações”.

“ming²”: Pound define como a luz que vem do sol e da lua, a inteligência. Mais abaixo, “chung¹” é o centro, o equilíbrio.

“Micah”: profeta judeu (c. 700 a.C.).

“Camarada Koba”: Stálin. A referência é à reunião dele com Churchill e Truman em Potsdam.

“e poi (…) uguale”: “e então eu perguntei à irmã / da pequena pastora dos porcos / e esses americanos? / eles se comportam bem? / e ela: não muito bem / não muito bem mesmo / e eu: pior do que os alemães? / e ela: a mesma coisa”.

“Lincoln Stephens”: Joseph Lincoln Stephens (1866-1939), jornalista norte-americano por cujos discursos políticos Pound se interessou na década de 1920.

“Vandenberg”: Arthur Hendrick Vandenberg (1884-1952), senador por Michigan, líder dos isolacionistas antes da guerra, mas depois foi delegado na conferência da ONU em São Francisco (1945).

Canto LXXXIII

“υδωρ”: “água”.

“et Pax”: “e paz”.

“Gemisto”: Gemisto Pletão (1355-1452), de fato, elegeu Netuno (Poseidon) como o maior dos deuses. Rimini é citada a seguir porque, depois de lutar contra os turcos a mando dos venezianos em 1466, Sigismundo Malatesta levou os ossos de Gemistos para essa cidade e os colocou em um dos sarcófagos do Templo Malatestiano. Isso já foi referido em outros poemas, como no Canto VIII.

“lux (…) accidens”: “pois a luz é um atributo do fogo”.

“prete”: “padre”. No caso, o padre C. B. Schlütter, que editou De Divisione Naturae, de Johannes Scotus Eriugena, em 1818.

“Rei Carolus”: Carlos, o Calvo (823-877), referido logo em seguida como “Charles le Chauve”. Sua rainha era Ermentrude.

“omnia (…) sunt”: “Tudo o que existe é luz”.

O “tio William” é W. B. Yeats.

“sereias, essa talha”: as sereias esculpidas por Tullio Lombardo na igreja Santa Maria dei Miracoli em Veneza (pouco antes, Pound se refere à igreja homônima localizada em Roma).

“ΥΔΩΡ”: “ÁGUA”.

“o sábio…”: citação dos Analectos VI, 21.

“consiros”: “contrito”, “pesaroso”. Assim Arnaut Daniel descreve seu estado no Purgatório XXVI, 144.

“São Como se Chama”: San Giorgio, uma catedral em Pantaneto, Siena. Uma procissão tradicional ocorre na véspera do Palio (a corrida de cavalos) em agosto.

“soll… sein”: “é para ser o seu amor”.

“nível das janelas”: no caso, do Palazzo Capoquadri Salimbene, de onde se observa a procissão supracitada.

“Olim…”: “antes dos Malatesta”, no sentido de pertencer: antes pertencia aos Malatesta.

“πάυτα ‘ρει”: “tudo flui”.

“sob os altares”: Analectos XII, 21.

“Δρυάς”: “Dríade”, ninfa das árvores.

“Plura diafana”: “mais coisas diáfanas”. É de Grosseteste, De Luce, uma frase recorrente que remete ao “lux enim” de Scotus.

“porém o esplendor…”: reitera-se a palavra que abre o Canto, que se debruça sobre o simbolismo neoplatônico segundo o qual tudo o que existe em nosso mundo reflete a ordem divina.

Nos versos seguintes, até “sem isto, fica a inanição”, Pound remete à noção desenvolvida por Mêncio de que, “se a mente não sente complacência na conduta, a natureza se torna faminta”. Mais adiante, há uma referência a uma anedota contada por Mêncio em seu Livro II.

“Giovanna” era a empregada de uma família veneziana que Pound conheceu. Mais adiante, há a menção a outro veneziano, “Velho Ziovan” (provavelmente, alguém chamado Giovanni).

Os ideogramas são “wu” (“não”), “chu” (“ajudar”) e “ch’ang” (“crescer”).

A “Giudecca” é uma ilha e um canal em Veneza. “Ca'” é “casa” no dialeto da cidade.

“DAKRUON ΔΑΚΡΥΩΝ”: “chorando”, “chorando”. A primeira palavra é a transliteração da segunda.

“Bracelonde”: Braceliande, a floresta encantada da lenda arturiana na versão de Chrétien de Troyes em Yvain.

“XTHONOS”: ctônico, “da terra”.

“εις χθουιους”, “aqueles sob a terra”.

“Περσεφόνη”: Perséfone.

“Cristo Re, Dio Sole”: “Cristo Rei, Deus, o Sol”.

“Kakemono” (掛物, “coisa suspensa”) é mais comumente referido como “kakejiku” (掛軸, “rolo suspenso”). Trata-se de uma pintura ou caligrafia desenhada sobre papel de seda ou tecido em formato vertical, o qual é afixado em um apoio e assim exposto.

“Paaavão”: referência ao poema “The peacock”, de Yeats. Em 18 de janeiro de 1914, Yeats, Pound, Victor Plarr, Thomas Sturge Moore, Richard Aldington e F. S. Flint almoçaram na casa de Wilfrid Scawen Blunt em West Sussex. Entre os pratos servidos, um pavão. Os jovens poetas homenagearam Blunt, tido em alta estima por Pound, e o presentearam com uma caixa cheia de poemas que o anfitrião considerou modernosos demais. A foto que ilustra o post foi tirada nessa ocasião.

“aere perennius”: das Odes (III, 30), de Horácio. “Eregi um monumento mais duradouro que o bronze”, na tradução de Pedro Braga Falcão (ed. 34).

“e ele escutando quase todo Wordsworth”: Pound trabalhou como secretário de Yeats nos invernos de 1913, 14 e 15 e lia para ele, cujos olhos estavam ruins.

“und…”: “e as senhoritas dizem para mim você é um velho”

“Das heis…”: “Aquela é chamada de Praça Walter”.

“senador Edwards”: Ninian Edwards (1755-1833), senador e primeiro governador do então território de Illinois (1809).

Canto LXXXII

“cão de caça”: Sirius, estrela da constelação Cão Maior, visível a olho nu.

“Jeffers, Lovell…” etc. eram trainees no DTC.

“Swinburne (…) perda”: Pound admirava muito o poeta inglês Algernon Charles Swinburne (1837-1909) e dedicou a ele o poema “Salve O Pontifex” em A Lume Spento (1908). A “perda”, no caso, deve-se ao fato de que Swinburne ainda estava vivo quando Pound chegou à Inglaterra, mas o norte-americano não chegou a conhecê-lo.

“Landor” é o poeta e ensaísta inglês Walter Savage Landor (1775-1864), a quem Swinburne visitou duas vezes em 1864. As referências a Dirce remetem a um poema dele.

“o velho Mathews”: Elkin Mathews (1851-1921), editor inglês que publicou alguns dos primeiros trabalhos de Pound. É provável que a anedota sobre as visitas de Swinburne ao nonagenário Landor tenha sido contada por Mathews a Pound.

“Watts Dunton”: o escritor inglês Theodore Walter Dunton (1832-1914), que viveu com Swinburne e cuidou dele por trinta anos, de 1879 a 1909.

“Quando os pescadores…”: história contada por Swinburne ao poeta e crítico inglês Edmund Gosse (1849-1928), que escreveu The Life of Algernon Charles Swinburne (1917). Segundo Swinburne, certa manhã, em outubro de 1869, ele foi sozinho para Porte d’Amont, perto de Étretat, na Normandia. Ali, ele mergulhou na água e acabou levado pela corrente. Foi salvo pelo capitão de um barco pesqueiro, que o deixou em Yport (não em Le Portel, como Pound diz no poema), ao norte de Étretat. Assim que foi resgatado, Swinburne começou a “pregar” para os pescadores sobre as virtudes da democracia e do republicanismo, e recitou poemas de Victor Hugo (não Ésquilo, como também afirma Pound).

“Sobre o telhado dos Atridas”: citação de Agamêmnon, de Ésquilo. Trata-se de uma fala do guarda logo no início da peça. Na tradução de Trajano Vieira (ed. Perspectiva): “Aos deuses peço o fim de minhas penas, / frutode longos anos de vigia, / acocorado — um cão! — no teto atreu”. O guarda está no telhado à espera pela luz que anunciará o fim da guerra de Tróia.

“ΕΜΟΣ ΠΟΣΙΣ…ΧΕΡΟΣ / hac dextera mortus / morto por esta mão”: fala de Clitemnestra em Agamêmnon, de Ésquilo, após matar o marido. Na tradução de Trajano Vieira: “Ali tens Agamêmnon, / cadáver e marido. A justa artífice / foi minha mão direita. É esse o caso”. Pound está comparando o original grego e a tradução latina.

“creio que Lyton viu Blunt”: não, foi Sir William Gregory, marido de Lady Gregory, quem viu Blunt atuando como matador em uma arena madrilenha. Blunt, então, trabalhava como adido na embaixada britânica. Em resumo, Wilfrid Scawen Blunt (1840-1922) foi poeta, diplomata, viajante, defensor da independência da Índia, do Egito e da Irlanda (pelo que foi preso). Ele e sua esposa, Lady Anne Blunt (neta de Byron, filha de Ada Lovelace), viajaram pelo Oriente Médio e foram importantíssimos na preservação de certas linhagens de cavalos árabes em sua fazenda, Crabbet Arabian Stud.

“Packard”: o escritor canadense Frank Lucius Packard (1877-1942). O “Percy” citado é, claro, Percy Shelley.

“Basínio” é Basinio Basini, ou Basinio de Parma (1425–1457), erudito humanista e poeta, que viveu em Rimini a partir de 1450 sob a proteção e o patronato de Sigismundo. Ele é o autor de Liber isottaeus (três livros com dez elegias cada, escritos à maneira epistolar das Heroides de Ovídio, como uma troca de cartas entre Sigismundo e Isotta) e Hesperis (épico inacabado de 13 livros sobre as batalhas entre Sigismundo e a Casa de Aragão). Os “moldes gregos” são versos de Homero que ele anotava nas margens do que escrevia como inspiração melódica. Ele está enterrado em um dos sarcófagos no lado direito do Templo Malatestiano.

“Otis” é James Otis (1725-1783), que teria escrito uma gramática do grego e depois a destruído. “Soncino” é Hieronymus (Gershom) Soncino, editor judeu que se estabeleceu em Fano, em 1501, e fez muito para divulgar a literatura e o conhecimento humano, diferentemente dos “homens de mármore”, pessoas “importantes” cujas estátuas povoam as praças pelo mundo afora.

“assim rogaram ao Sr. Clowes (…) de Tom Moore e Rogers”: Clowes, da William Clowes and Sons, firma inglesa que imprimiu Lustra e Gaudier-Brzeska, de Pound. O tipógrafo achou que vinte e cinco dos poemas de Lustra eram “obscenos”, e o editor concordou com ele. Por fim, após muita negociação, conseguiram deixar “apenas” 17 poemas de fora, e Pound eventualmente lançou uma edição sem cortes. “Birrell” é o ensaísta inglês Augustine Birrell (1850-1933). Ele se refere ao irlandês Tom Moore (1779-1852) e ao inglês Samuel Rogers (1763-1855), poetas cujos trabalhos foram censurados.

“Sua Senhora IX” é, provavelmente, Lady Emerald Cunard (1872-1948), mãe de Nancy Cunard (v. Canto LXXX). “Sua Senhora Z” é Lady Churchill (Jennie Jerome), esposa de Lorde Randolph Churchill e mãe de Winston.

“Sr. Masefield”: John Masefield (1878-1967), poeta inglês, autor do polêmico The Everlasting Mercy (1911).

“18 Wodburn Buildings”: endereço londrino de W. B. Yeats.

“Sr. Tancredo” é o poeta imagista Francis W. Tancred. Pound traça uma conexão entre ele e o rei Tancredo da Sicília, morto em 1194. Alguns versos depois, “Williams” (“William”, no original) é W. B. Yeats, e “Fordie”, Ford Madox Ford.

res non verba“, “coisas não palavras”.

O ideograma “jen” significa “humanidade”.

“Tróia”, “Cnido”, “Mitilene”: a notícia da queda de Troia seria comunicada por uma série de luzes (grandes tochas, fogueiras ou coisa que o valha) gradualmente acesas nas ilhas gregas.

“Reithmuller”: Richard Henri Riethmueller (1881-c.1942), professor de alemão na Universidade da Pensilvânia e autor de Walt Whitman and the Germans (1906).

“‘Ó reflexão (…) palpitante'”: citação de “Out of the cradle endlessly rocking”, de Speare.

“O GEA TERRA (…) abril”: nesses versos, uma evocação altissonante do tema dionisíaco (Ceres, Ísis-Osíris) das metamorfoses. Morte e regeneração.

“ἐμὸν τὸν ἄνδρα”, reiteração de um verso presente no Canto LXXXI, ““Ἶυγξ…. ἐμὸν ποτὶ δῶμα τὸν ἄνδραde”: “Iynx (…) homem para a minha casa!” — o verso é de Teócrito, do “Idílio II”. A Iynx era um disco de madeira com dois furos no meio, nos quais se passava um cordão. Para fazer com que o disco girasse, bastava afrouxar e puxar o cordão. Ele era usado para atrair um amante. Leia o poema completo AQUI.

“connubium terrae (…) mysterium”, “o casamento da terra (…) mistério”.

Concomitantemente, Pound volta a citar a fala de Clitemnestra em Agamêmnon (1404), “ela disse meu marido”.

“ΧΘΟΝΙΟΣ”, “nascido na Terra”; “ΧΘΟΝΟΣ”, “da terra”; “ΙΧΩΡ”, “ícor”, o fluido que corre nas veias dos deuses gregos.

“δακρυωυ”, “chorando” ou “de lágrimas”; “ευτευθευ”, “então”.

“Baviera Tropical” – resenha

Resenha publicada hoje no Estadão.

AS FUGAS DE MENGELE
Em Baviera Tropical, Betina Anton narra
a vida e os crimes do nazista que se escondeu no Brasil.

Em fins da década de 1970, no bairro paulistano de Eldorado, um homem sexagenário janta salada “para manter a linha”, depois se acomoda diante da televisão para assistir às novelas das seis, das sete e das oito. À exceção de Escrava Isaura, que teria “negros demais”, ele parece apreciar todos os folhetins. Leva uma vida solitária, exceto pelas visitas semanais, às quartas-feiras, de um amigo próximo, que às vezes traz consigo a esposa e os filhos, e, aos domingos, do jardineiro, com quem assiste à TV depois de servir o café da tarde (pão e geleia). É uma existência aparentemente pacata, não fosse pelo temor de ser desmascarado e preso ou morto por conta de crimes sem precedentes cometidos durante a Segunda Guerra Mundial. O homem é Josef Mengele, médico e oficial nazista que, em Auschwitz, recebeu o apelido de Todesengel — “Anjo da Morte”. No livro Baviera Tropical, a jornalista Betina Anton nos conta como um dos criminosos mais hediondos do século XX conseguiu se esquivar de seus perseguidores e levar uma vida relativamente pacata no Brasil.

Ao todo, foram quase vinte anos “hospedado” em São Paulo, primeiro no interior, nos sítios em Serra Negra e Caieiras, depois na capital. Antes, sempre ajudado pela família e por um círculo de amigos fiéis, Mengele viveu na Argentina de Perón e no Paraguai de Stroessner. Como foi possível? Ora, a relação dos caudilhos com os nazistas era amistosa. Hans-Ulrich Rudel, por exemplo, piloto condecoradíssimo da força aérea hitlerista, residia em Buenos Aires desde 1948 e “ajudou a modernizar a aeronáutica argentina”, ganhando “contratos e licenças do governo”, além de auxiliar na criação de “um fundo emergencial para apoiar os companheiros recém-chegados da Alemanha”.

O apoio de Perón foi essencial para o estabelecimento dessa rede de proteção. Com a ajuda do padre José Clemente Silva, que chefiava a delegação de imigração em Roma, o presidente argentino “criou um esquema para facilitar a fuga de nazistas” para o nosso continente. Se Buenos Aires é a “Paris da América do Sul”, talvez a referência seja à Paris ocupada, território administrado por abutres como Otto von Stülpnagel.

Amparada por uma pesquisa admirável, Anton repassa a vida e as fugas de Mengele em ritmo de thriller. Aos inúmeros crimes cometidos durante a guerra, ela dedica capítulos centrais do livro. É imprescindível ressaltar (e a autora faz isso brilhantemente) que os desmembramentos e torturas disfarçados de “experimentos científicos” não foram obra de um mero louco, mas, sim, integravam a política de estado vigente. Havia método e organização na carnificina. As “pesquisas” de Mengele estavam em plena conformidade com a ideologia e a pseudociência nazistas.

Assim, ele amarrou os seios de uma prisioneira que acabara de dar à luz para descobrir quantos dias o recém-nascido aguentava sem alimentação, destruiu as cordas vocais de um indivíduo para entender por que ele não cantava tão bem quanto o irmão gêmeo, mergulhou pessoas em tinas com água escaldante e gelada para “estudar” os efeitos das temperaturas extremas no corpo humano e costurou as veias da cabeça e das costas de um par de gêmeos, tentando “transformá-los” em siameses. Os relatos sobre como Mengele lidou com epidemias de noma e tifo em Auschwitz são particularmente inclassificáveis.

No campo, ele também participava das “seleções”: a cada trem de prisioneiros que chegava, escolhia quem ainda estava apto para trabalhar, quem seria submetido às suas “experiências” e quem deveria ser encaminhado diretamente para as câmaras de gás. Tudo isso com um mísero gesto de mão.

Ao narrar esses e muitos outros horrores, Anton é exemplar. Ela nomeia várias das vítimas e dos sobreviventes (alguns dos quais entrevistou), reumanizando-os. Com isso, oferece uma contribuição justa à memória da Shoah (termo preferível a “Holocausto”), e o faz sem recorrer a muletas conceituais — como a não raro incompreendida noção de “banalidade do mal” desenvolvida por Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém. Em um momento no qual antissemitas zurram pelo mundo afora, mal disfarçados sob a máscara do antissionismo, é importante resgatar esse momento da história judaica, inclusive para evitar comparações estapafúrdias entre a tragédia presente e os desastres pretéritos. Na interminável noite europeia, Mengele é uma besta incontornável.

Em vista disso, precisamos lamentar sua sorte. Teria sido melhor para a humanidade se, em vez de Baviera Tropical, Anton tivesse escrito algo como Mengele em Jerusalém. Que o “Anjo da Morte” não tenha sido julgado e condenado por seus crimes, ludibriando as autoridades em terras brasileiras até se afogar em Bertioga, cercado por amigos (e o ludíbrio ainda continuou por seis anos após a morte), é uma injustiça que apenas reitera a persistência do mal em nosso mundo.

Lukács e a ‘Estética’

Aconteceu uma coisa engraçada com a resenha abaixo. O título e o subtítulo escolhidos pelo editor do Estadão meio que contradizem o conteúdo do texto que escrevi. Em todo caso, você pode conferir a versão do jornal AQUI (imagino que saia no impresso dentro de alguns dias).

“DETERMINAÇÕES” POLUIDORAS
Lukács e o espantalho idealista

Fala-se muito da “viragem” sofrida pelo húngaro György Lukács (1885-1971) por conta da revolução bolchevique de 1917. Antes, há o autor marcadamente hegeliano de obras como A Teoria do Romance, escrita em 1914-15 “sob um estado de ânimo de permanente desespero com a situação mundial” (nas palavras do próprio), pois, se a provável derrocada do czarismo e dos impérios Alemão e Austro-Húngaro parecia aprazível, “quem nos salva da civilização ocidental?”. Nessa quimérica expectativa de uma “salvação”, há o elemento motivador daquele que abraça ideologicamente uma religião ou religiosamente uma ideologia. Houve, portanto, uma conversão ao marxismo, e a Estética, cuja publicação em quatro volumes a Boitempo inicia agora com A Peculiaridade do Estético (tradução de Nélio Schneider), é uma das obras mais célebres de Lukács após tal “viragem”. Claro que a trajetória do pensador transcende uma divisão tão arbitrária e empobrecedora, e mesmo a referida “viragem” precisaria ser esmiuçada. Ainda há, por exemplo, um forte teor hegeliano em História e Consciência de Classe (1923).

Em se tratando da Estética, foi importantíssimo o período que Lukács passou em Moscou no começo dos anos 1930. O professor José Paulo Netto, que assina a apresentação do volume, fala em uma “refundação” das concepções filosóficas do autor, que se voltaria para uma investigação de cunho ontológico. Na URSS, ele teve acesso a textos inéditos de Marx, entre outros, e iniciou uma colaboração com o teórico literário soviético (nascido em Melitopol, na Ucrânia) Mikhail Lifschitz. A partir da leitura cerrada do material disponível no Instituto Marx-Engels, eles postularam a existência de uma teoria estética embrionária em textos marxianos e marxistas fundamentais. “Refundado”, Lukács revisita aspectos d’A Teoria do Romance sob uma ótica dialético-materialista — os mais exaltados falam em “superação”, palavrinha que nunca cai bem em discussões filosóficas. Ele e Lifschitz compartilhavam de uma visão tradicionalista da arte, algo curioso, mas não incomum, em revolucionários. Exemplo dessa disposição conservadora é o desprezo do húngaro por alguns dos maiores inovadores da forma literária, como Kafka (que comparava desfavoravelmente a Thomas Mann), Musil e Joyce. Ele preferia a estética realista, e exaltou Walter Scott e Balzac n’O Romance Histórico (1938).

Antes de abordar a Estética, convém ressaltar que algumas das posições de Lukács, sobretudo no que diz respeito aos crimes de Stálin, eram indefensáveis na época e, salvo engano (nunca se sabe, não é mesmo?), continuam indefensáveis hoje. A desculpa oferecida por ele de que não criticou a farsa sanguinária dos “processos de Moscou” e outros crimes do regime stalinista por estar empenhado na oposição a Hitler é pusilânime. Talvez esse tipo de covardia seja incontornável para quem abraça uma perquirição de cores onto-historiais. Algo similar pode ser observado no outro lado do espectro, no antissemitismo que Martin Heidegger evacuou nos Cadernos Negros. Os dizeres do historiador Paulo Bertran (em outro contexto) são lapidares: “A história é a grande prostituta de todos nós: história e desejo de história é o que perseguimos. A história arrogante, antrópica, insana”.

O objetivo da Estética é delineado logo de saída por Lukács: “a fundamentação filosófica do tipo de pôr estético, a dedução da categoria específica da estética e a sua delimitação em relação a outros campos”. O livro, publicado originalmente em 1963, era a primeira parte de um projeto que incluiria outros dois volumes, jamais escritos. Mas não há sensação de incompletude, até porque ele se deslocou para o campo ético e a rarefação ontológica. Assim, a teoria do reflexo, desenvolvida no início da obra, é crucial para a compreensão dos desdobramentos teóricos na Estética e em trabalhos posteriores.

Lukács vê no “comportamento cotidiano do homem” tanto o começo quanto o fim de “toda atividade humana”, pois, “quando se imagina o cotidiano como um grande rio, pode-se dizer que, nas formas superiores de recepção e reprodução da realidade, ciência e arte ramificam-se a partir dele”. Em outras palavras, as objetivações irrompem do cotidiano e a ele regressam, enriquecendo-o, afirmando e reafirmando a autoconsciência humana. Tal processo se daria em uma realidade estruturalmente única, o que tornaria o materialismo dialético perfeito para problematizar a estética.

Por vezes, o idealismo com que Lukács “polemiza” parece mais um espantalho. Ele ignora, por exemplo, o aspecto realista de passagens importantes da Crítica da Razão Pura, como na Dedução Transcendental e na Refutação do Idealismo — a experiência interna e a experiência dos objetos externos como interdependentes. Há outros problemas, como a noção de que o marxismo “lança nova luz sobre o presente e o passado, sobre toda a experiência humana”, pois “os fatos fundamentais da realidade (…) vêm à tona e podem tornar-se conteúdo da consciência humana”. Os perigos do anacronismo são bem conhecidos. O filósofo Paul Franks aponta que “o interesse da filosofia em sua história não é somente histórico”. Logo, uma história anacrônica do pensamento (como a marxista) não é apenas imprecisa: ela polui quaisquer respostas às questões desde sempre colocadas.

Portanto, ao ler a Estética, é saudável ignorar os espantalhos e se fixar no que há de melhor na contribuição de Lukács: a reiteração da arte como um reflexo da realidade e o resgate de uma acepção humanizadora da ciência, colmatando o abismo surgido na modernidade entre o estético e o científico. Dados a centralidade do problema e o andamento da história conceitual, talvez seja possível limpar a abordagem lukacsiana de certas “determinações” poluidoras e aí, sim, chegar a uma ontologia realista capaz de sustentar a peculiaridade de seu olhar reflexivo.

Viagens ao centro

1. Em “Retratos Fantasmas”, Kleber Mendonça Filho fala baixo e de maneira afetuosa sobre algo ensurdecedor e não raro doloroso: a fragilíssima persistência da memória por meio das (ou nas) imagens em meio à predação urbana. Ele começa dentro de casa, falando sobre o apartamento no qual cresceu no Recife, sobre a mãe, sobre as transformações ocorridas no imóvel e no bairro ao redor, a cidade crescendo de modo vertical e, paradoxalmente, esvaziando-se. Depois, ele sai de casa e vai à rua, dirige-se para o centro da cidade, e nos leva a três cinemas históricos (dos quais apenas um sobrevive), com os quais teve e tem uma relação muito próxima. Assistir a essas imagens levou à minha própria viagem passadista.

2. Já escrevi diversas vezes sobre a importância do Cine Cultura (Praça Cívica, Goiânia) para mim. Hoje, a sala tem como programador um amigo muito querido, Fabrício Cordeiro (que, aliás, aparece a certa altura de “Retratos Fantasmas” assistindo a uma projeção de “Suspiria”, de Dario Argento, no Cine São Luís — Fabrício vendo um filme no cinema dentro do filme sobre cinema). Lembrei-me de quando, há vinte anos, Fabrício me apresentou aos textos (excelentes) do então crítico KMF no site Cinemascópio. Depois, vimos os curtas dele (“A Menina do Algodão”, “Vinil Verde”, “Eletrodoméstica” etc.) e o longa de estreia, “O Som ao Redor”, um dos melhores da década passada.

3. Não gostei dos dois filmes seguintes de KMF, “Aquarius” e “Bacurau” (embora haja neles coisas muito boas), e acho interessante o movimento que ele faz em “Retratos Fantasmas”, algo que identifico como uma introspecção saudável, um retorno ao cinema pelo cinema (que nunca, jamais, é “só” cinema), uma volta às imagens “primitivas” que captou há décadas. É maravilhoso como o filme não é sobre o Recife, mas é o olhar do diretor sobre o Recife, e um Recife fantasmagórico, perdido, saudoso, em contraposição a um Recife não transformado, mas transtornado.

4. O espaço urbano no Brasil é um espaço doente, e a sucessão de farmácias nas cenas finais de “Retratos Fantasmas” parece sublinhar esse caráter enfermiço. Eu me lembro do cinema em Silvânia, cidade na qual fui criado. E me lembro do que fizeram com o espaço no qual funcionava o cinema, primeiro abandonado, depois reformado, sim, e reutilizado, mas sem a luz do projetor lançada no escuro — o espaço transformado noutra coisa, importante, sem dúvida (não se tornou uma igreja, pelo menos), mas outra coisa. A projeção de um filme propriamente dito é bem distinta de qualquer outra projeção. Há uma textura diferente, e cada cópia em película, embora seja uma cópia, tem uma personalidade própria, suas manchas, queimaduras e cicatrizes particulares, únicas. É a diferença (para o meu gosto) entre um livro impresso e um livro eletrônico. As palavras são as mesmas, mas as cicatrizes e as sombras não estão lá. E o que somos sem nossas cicatrizes, sem nossas sombras e nossos fantasmas?

5. Moleque, eu ia a Goiânia sempre que possível assistir a filmes no Cine Cultura, no Cine Ouro, no Cine Astor. Vi “Cassino”, de Scorsese, aos dezesseis anos de idade em uma sala no centro. Esse tipo de peregrinação criava uma relação especial não apenas com o cinema, mas também com o próprio espaço urbano. Este me parecia amistoso, único, e caminhar pelas ruas do centro (eu, um moleque interiorano, circulando pelos sebos da rua Quatro antes da sessão e depois correndo a fim de alcançar o derradeiro ônibus para Silvânia, os olhos arregalados pelo que vira na tela e pelo que via nas ruas, preenchido de histórias, sozinho com meus olhos e com as vozes externas e internas, feliz) era tão importante e formador de caráter quanto assistir ao filme. Embora compaginado ao Recife, “Retratos Fantasmas” recupera a força dessa experiência reconhecível por qualquer pessoa que a vivenciou — experiência que se perdeu, exceto por testemunhos como este e como esse (isto é, o filme “Retratos Fantasmas”).

(Uma versão abreviada deste texto foi publicada n’O Popular.)