Viagens ao centro

1. Em “Retratos Fantasmas”, Kleber Mendonça Filho fala baixo e de maneira afetuosa sobre algo ensurdecedor e não raro doloroso: a fragilíssima persistência da memória por meio das (ou nas) imagens em meio à predação urbana. Ele começa dentro de casa, falando sobre o apartamento no qual cresceu no Recife, sobre a mãe, sobre as transformações ocorridas no imóvel e no bairro ao redor, a cidade crescendo de modo vertical e, paradoxalmente, esvaziando-se. Depois, ele sai de casa e vai à rua, dirige-se para o centro da cidade, e nos leva a três cinemas históricos (dos quais apenas um sobrevive), com os quais teve e tem uma relação muito próxima. Assistir a essas imagens levou à minha própria viagem passadista.

2. Já escrevi diversas vezes sobre a importância do Cine Cultura (Praça Cívica, Goiânia) para mim. Hoje, a sala tem como programador um amigo muito querido, Fabrício Cordeiro (que, aliás, aparece a certa altura de “Retratos Fantasmas” assistindo a uma projeção de “Suspiria”, de Dario Argento, no Cine São Luís — Fabrício vendo um filme no cinema dentro do filme sobre cinema). Lembrei-me de quando, há vinte anos, Fabrício me apresentou aos textos (excelentes) do então crítico KMF no site Cinemascópio. Depois, vimos os curtas dele (“A Menina do Algodão”, “Vinil Verde”, “Eletrodoméstica” etc.) e o longa de estreia, “O Som ao Redor”, um dos melhores da década passada.

3. Não gostei dos dois filmes seguintes de KMF, “Aquarius” e “Bacurau” (embora haja neles coisas muito boas), e acho interessante o movimento que ele faz em “Retratos Fantasmas”, algo que identifico como uma introspecção saudável, um retorno ao cinema pelo cinema (que nunca, jamais, é “só” cinema), uma volta às imagens “primitivas” que captou há décadas. É maravilhoso como o filme não é sobre o Recife, mas é o olhar do diretor sobre o Recife, e um Recife fantasmagórico, perdido, saudoso, em contraposição a um Recife não transformado, mas transtornado.

4. O espaço urbano no Brasil é um espaço doente, e a sucessão de farmácias nas cenas finais de “Retratos Fantasmas” parece sublinhar esse caráter enfermiço. Eu me lembro do cinema em Silvânia, cidade na qual fui criado. E me lembro do que fizeram com o espaço no qual funcionava o cinema, primeiro abandonado, depois reformado, sim, e reutilizado, mas sem a luz do projetor lançada no escuro — o espaço transformado noutra coisa, importante, sem dúvida (não se tornou uma igreja, pelo menos), mas outra coisa. A projeção de um filme propriamente dito é bem distinta de qualquer outra projeção. Há uma textura diferente, e cada cópia em película, embora seja uma cópia, tem uma personalidade própria, suas manchas, queimaduras e cicatrizes particulares, únicas. É a diferença (para o meu gosto) entre um livro impresso e um livro eletrônico. As palavras são as mesmas, mas as cicatrizes e as sombras não estão lá. E o que somos sem nossas cicatrizes, sem nossas sombras e nossos fantasmas?

5. Moleque, eu ia a Goiânia sempre que possível assistir a filmes no Cine Cultura, no Cine Ouro, no Cine Astor. Vi “Cassino”, de Scorsese, aos dezesseis anos de idade em uma sala no centro. Esse tipo de peregrinação criava uma relação especial não apenas com o cinema, mas também com o próprio espaço urbano. Este me parecia amistoso, único, e caminhar pelas ruas do centro (eu, um moleque interiorano, circulando pelos sebos da rua Quatro antes da sessão e depois correndo a fim de alcançar o derradeiro ônibus para Silvânia, os olhos arregalados pelo que vira na tela e pelo que via nas ruas, preenchido de histórias, sozinho com meus olhos e com as vozes externas e internas, feliz) era tão importante e formador de caráter quanto assistir ao filme. Embora compaginado ao Recife, “Retratos Fantasmas” recupera a força dessa experiência reconhecível por qualquer pessoa que a vivenciou — experiência que se perdeu, exceto por testemunhos como este e como esse (isto é, o filme “Retratos Fantasmas”).

(Uma versão abreviada deste texto foi publicada n’O Popular.)