A meio caminho de tudo

bacurau-filme-0519-1400x800

Há um filme de John Woo chamado O Alvo, o primeiro que ele rodou nos EUA. É uma joia cujas muitas extravagâncias tornam (quase) irrelevantes os mullets com que Jean-Claude Van Damme “compôs o personagem”. Vendo Bacurau, de Juliano Dornelles & Kleber Mendonça Filho, eu me lembrei de imediato da premissa do filme de Woo: uns bandidos organizam caçadas humanas como esporte ou recreação, nas quais ricaços perseguem e trucidam indivíduos “matáveis” (isto é, moradores de rua) em uma Nova Orleans tão depauperada que parece pós-apocalíptica. O roteiro é inspirado em um célebre conto de Richard Connell, The Most Dangerous Game, adaptado diversas vezes para cinema, rádio e TV.

Lendo entrevistas com os diretores de Bacurau, não vi nenhuma referência ao filme de Woo ou ao conto de Connell, o que não me parece um problema — desde a trilha até as lentes usadas no filme, a inspiração mais óbvia é John Carpenter. Sendo um grande admirador desse diretor e de outros grandes reprocessadores de gêneros e subgêneros cinematográficos, como Sergio Leone, Brian DePalma e Dario Argento, nada tenho contra essa disposição “pós-moderna” de construir universos referenciais ou mesmo reverenciais. Pela sua própria natureza esfomeada, deglutindo elementos diversos de outras artes, o cinema é uma forma de expressão para a qual o canibalismo é tão atraente quanto incontornável. Citando exemplos nacionais, Glauber Rocha canibalizou John Ford como poucos ao conceber Deus e o Diabo na Terra do Sol e Érico Rassi alcançou um excelente resultado com seu Comeback, um faroeste goiano de primeira.

Inserindo-se nessa tradição, Bacurau lida o tempo todo com a nossa relação com determinados tipos de cinema. Ou, melhor dizendo, o filme lida com a sua própria relação — bastante problemática, pois mal resolvida — com determinados tipos de cinema, movimentando-se estabanadamente em um espaço referencial que deveria ir do western ao gore. Em vez de, como Leone ou Argento (por exemplo), usar tais e tais referências para desenvolver um olhar próprio, com regras, rimas e propósitos originais, Dornelles e KMF parecem indecisos e vacilantes em sua festa cinefílica, flertando com inúmeros cinemas, mas não abraçando nenhum e tampouco usando-os para catapultar algo que me pareça consequente.

Bacurau é uma orgia em que ninguém tira as meias. Sua pretensa liberdade é antes conceitual do que verificável ou visível. Ele promete várias coisas, mas não cumpre nada. Por exemplo: há a promessa de uma viagem distópica, há a promessa de suspense e terror, há a promessa de um massacre e, dentro e por meio dele, de uma catarse coletiva, mas o coletivo mal tem um rosto e mal é pressentido como tal (a cena do enterro sugere um caminho riquíssimo, logo abandonado), o terror faz rir quando deveria gritar (jamais perdoarei os cineastas por me fazerem rir de uma cena na qual uma criança é assassinada), o suspense jamais é construído com rigor (de novo, o estouro dos cavalos e a visita à fazenda sugerem um caminho riquíssimo, logo abandonado) e a distopia é apenas um chiste entrevisto na tela de uma TV quando os gringos malvados já estão encurralados.

Ou seja, a topografia da coisa é um emaranhado desses caminhos riquíssimos e logo abandonados, como se os diretores se entediassem a todo momento com as próprias escolhas. Seu roteiro parece sofrer de uma indefinição crônica, de uma confusão que trava as boas ideias e não permite que elas cheguem a lugar nenhum. Bacurau é um filme a meio caminho de tudo, inclusive de si mesmo. E é irônico que, sendo um projeto obviamente “autoral”, o roteiro pareça ser fruto de inúmeras mãos que não conversam entre si, cada qual com uma vaga ideia do que deveria ser o todo, mas incapaz de casar seus elementos ou levar as situações ao extremo — não é por acaso que, após um início promissor (a cabeça que gloriosamente explode), o suposto clímax se acovarde e tire do quadro os desdobramentos mais gore. E não se trata sequer de um funny game à Haneke, pois não há preparação efetiva, não há atmosfera para ser desfeita, não há expectativa para ser quebrada, não há piscadela sacana para a doentia cumplicidade da audiência.

Nesse sentido, é sintomática a cena em que a criança é assassinada, bem como o seu lugar naquele espaço referencial. É óbvio que esse pequeno cadáver conversa com outro, bem mais “feliz” em termos cinematográficos — aquele que John Carpenter estoura ao lado de um carrinho de sorvete no Assalto à 13ª DP original. Mas, enquanto o diretor norte-americano dispõe suas peças com cuidado, elevando o horror da cena em questão a níveis absurdos, os cineastas brasileiros parecem estar a anos-luz de seus personagens e do cerco que aos poucos se fecha. É uma sequência mal construída, inserida sem o menor cuidado, e cujos desdobramentos (a discussão entre os gringos, o discurso constrangedor de Udo Kier sobre “ser mais americano” do que o outro, a “confissão” posterior de um deles, sobre quase ter matado a ex-mulher, a ida a um shopping etc.) parecem sobras de outro filme, um adendo que objetiva dar mais tempo de tela para Kier (nada contra), mas que apenas explicita a falta de rumo da coisa.

Todos, locais e estrangeiros, flutuam pela narrativa sob o signo da mesma falta de propósito. Ações seguem imotivadas, personagens permanecem inexplorados. Contornos dramáticos são esboçados (Domingas e Carmelita, Lunga e o povoado, Teresa e seu retorno, o lance da água etc.), mas jamais arte-finalizados. Há o cerco e a reação a ele, e o filme não se entrega nem mesmo à brutalidade solar da vingança; algo como Sam Peckinpah podando o tiroteio final de Meu Ódio Será Sua Herança ou Tarantino contendo os jatos de sangue na matança que encerra o primeiro Kill Bill. A necrópole de Bacurau é despovoada, e seus gritos de dor, raiva e triunfo são abafados pelas mãos dos próprios diretores.

Em O Alvo, filme absolutamente enamorado por seu universo referencial e consciente do caminho que quer trilhar dentro (e à margem) dele, Woo é tão certeiro em suas escolhas que tanto a ameaça vilanesca quanto a desgraça que ela traz são palpáveis desde a cena inicial. Não há concessões ou vacilos. Não há indefinições. Estabelecidos o tom e as regras da brincadeira (poucas, mas efetivas), o diretor pode circular livremente por aquele espaço e mostrar o que tem de melhor: seu apreço peckinpahniano pelo mecanismo da violência, sua ânsia por montar e desmontar tal mecanismo, e sua entrega muitas vezes exagerada à “filmidade” de cada mísera sequência. Em Bacurau, Dornelles e KMF nunca chegam a estabelecer o tom e as regras do jogo; em se tratando de cinema, quando isso acontece, o jogo sempre ri por último — ao tentar canibalizar, os diretores brasileiros acabaram comendo os próprios olhos.

……

Uma versão editada deste texto sobre Bacurau foi publicada pelo caderno Pensar, do Estado de Minas, em 13.03.2019.