Siracusa

Siracusa

André de Leones | ficção

 

 

“Queria que Deus estivesse vivo pra ver isso.”
— Homer Simpson.

 

Era uma vez, e nem foi uma vez tão boa assim, foi uma vez horrível, na verdade, uma vez hedionda, fedorenta, bizarra, uma vez malcheirosa, uma vez com bodum de mertiolate e merda, era uma vez essa vez e, nessa vez que era uma vez, era uma vez um sujeito que ouvia vozes e esse sujeito que ouvia vozes pegou uma faca, e nem era uma faca tão boa assim, não, senhoras e senhores, de jeito nenhum, muito pelo contrário, era uma porcaria de faca, não era uma faca dessas que os soldados de elite usam nos filmes, não era a faca do Rambo em Rambo II, não era a faca do tenente-coronel John Matrix em Comando para matar, não era uma faca daquelas táticas, acho que é assim que eles chamam aquelas facas especiais, não era uma faca tática, com aquela lâmina fodástica e serrilhadinha num dos lados, o tipo de faca que você desatarraxa a tampa do cabo e tira uma bússola lá de dentro e se orienta assim no meio da selva ou do deserto ou das cavernas quando os inimigos estão bem próximos, porque os inimigos estão vindo e é melhor você ficar esperto, quase todo mundo tem inimigos, todo mundo que importa tem inimigos, uma pessoa sem inimigos é uma pessoa da qual é melhor desconfiar, até Jesus tinha inimigos, como Caifás, Caifás era um puta inimigo de Jesus, e Caifás era um tremendo cretino, na Mishná fazem um trocadilho com o nome dele e chamam o cretinão de “Ha-Koph”, “O Macaco”, uma boa pessoa com bons inimigos tem ou deveria ter uma boa faca, exceto Jesus, é claro, a posse de uma faca talvez zoasse a mensagem de Jesus, mas estou falando de pessoas normais, terrenas, como eu e os senhores e as senhoras, uma boa pessoa terrena e normal com bons inimigos terrenos e normais tem ou deveria ter uma boa faca, uma faca bacana, e a faca desse sujeito que ouvia vozes não era bacana, não mesmo, a faca que ele pegou era uma faca comum, e não era sequer uma faca muito afiada, porque uma faca pode ser comum e meio gasta, mas afiada, uma faca afiada ainda faz o que se espera dela, isto é, ela corta e perfura, é uma faca útil, uma boa faca, embora comum e meio gasta, mas a faca do sujeito que ouvia vozes era uma faca comum e meio gasta e meio cega, e além de tudo feia, era uma faca muito feia, do tipo que a pessoa sentiria vergonha de levar consigo a uma pescaria, os amigos com tralhas novinhas e facas especiais afiadíssimas, algumas delas táticas, os amigos olhando para aquela faca comum, meio gasta e meio cega, e além de tudo feia, olhando e julgando e rindo e sacaneando, que porra de faca é essa?, vai usar essa faquinha aí?, essa faquinha não abre nem lambari, que faca mais feia você tem, olha como é feia a faca dele, pode até parecer bobagem, mas as pessoas prestam muita atenção nas facas umas das outras, e as pessoas não fazem isso apenas no relaxado e amistoso e aprazível ambiente de uma pescaria, não, as pessoas estão sempre prestando atenção nas facas umas das outras, pois a faca diz muito do caráter do indivíduo, um indivíduo com uma faca comum e meio gasta e meio cega e além de tudo feia é um indivíduo comum e meio gasto e meio cego e além de tudo feio, ao menos de certa forma ou por assim dizer, não literalmente comum e meio gasto e meio cego e além de tudo feio, embora também possa ser, as pessoas estão sempre adiando aquela consulta com o oftalmo, por exemplo, dá uma certa preguiça dilatar a pupila, embora nem sempre a pupila seja dilatada, e assim ficam meio cegas, não é mesmo?, os óculos defasados relativamente ao avanço da miopia, do astigmatismo ou da hipermetropia, e talvez o sujeito que ouvia vozes e pegou a faca, esse sujeito comum e meio gasto e além de tudo feio, fosse também meio cego, porque ele pegou a faca e, ouvindo todas aquelas vozes ou talvez apenas uma voz, sim, podia ser o caso de uma só voz tonitruando dentro da cabeça dele, não são necessárias muitas vozes para enlouquecer alguém, basta uma voz para enlouquecer alguém, uma voz incansável e insistente e desagradável dizendo isso e aquilo, pedindo isso e aquilo, exigindo isso e aquilo, provocando e instigando, basta uma voz tonitruando dentro da cabeça do indivíduo para que tenhamos configurado um caso de loucura esquizofrênica assim bem psicótica, pois as pessoas costumam ou tendem a fazer coisas muito loucas, esquizofrênicas e assim bem psicóticas quando têm uma voz ou várias vozes tonitruando dentro da cabeça, uma voz que não é a voz da própria pessoa, bem entendido, pois estamos sempre ouvindo a nossa própria voz dentro da nossa respectiva cabeça, isso é o normal, o comum, até mesmo o saudável, eu diria, alguém que não ouve a própria voz dentro de sua respectiva cabeça precisa de ajuda médica e psicológica, pode apostar, não sou especialista, mas sei do que estou falando, o problema é quando outra voz ou outras vozes tonitruam dentro da nossa respectiva cabeça, porque essa outra voz ou essas outras vozes, quando tonitrua ou tonitruam dentro da nossa respectiva cabeça, elas nunca são agradáveis ou amistosas, elas nunca dizem coisas bacanas como o seu time será campeão, anota aí os números da Mega-Sena, não esquece de pegar as roupas no varal, acho que a sua vizinha ou o seu vizinho quer transar com você, e se a gente fizesse uma pausa e bebesse um uisquinho?, vou te ensinar a ganhar uma grana extra sem sair de casa, não se preocupe porque o tumor no seu intestino reto é benigno, nada disso, a voz ou as vozes quando tonitrua ou tonitruam dentro da nossa respectiva cabeça, porra, as vozes dizem coisas terríveis, coisas absurdas, coisas nojentas, coisas abjetas, coisas criminosas, as vozes não dizem ajude aquela velhinha a atravessar a rua, as vozes dizem pegue uma marreta e arrebente os joelhos daquela velhinha que quer atravessar a rua para que ela nunca mais atravesse uma rua no pouco que resta de sua vida miserável, as vozes não dizem ajude aquele senhor cego a passar pela catraca do metrô, as vozes dizem pegue uma agulha de crochê e fure os tímpanos daquele senhor cego para que além de cego ele também seja surdo, as vozes não dizem você engravidou a amiga da sua namorada e isso é muito muito feio e é melhor você fazer uma autocrítica violenta e sentir um arrependimento bem sincero e repensar suas atitudes canalhas e suas escolhas estúpidas e confessar tudo para a sua namorada e dizer que sente muito sou uma pessoa imatura boçal babaca irresponsável ao passo que você é uma pessoa madura bacanérrima responsável sensacional e merece alguém maduro bacanérrimo responsável sensacional alguém que não sou eu evidentemente e depois procurar a amiga da sua agora ex-namorada e se desculpar por tê-la embebedado naquele feriadão que vocês passaram na chácara de um parente seu e por ter esperado a sua namorada ir para a cama e por ter levado a amiga bêbada da sua então namorada para a despensa e por ter transado com a amiga bêbada da sua então namorada na despensa e não ter usado camisinha e ter gozado dentro embora ela pedisse especificamente que você não fizesse isso depois de perceber que você não usava camisinha coisa que aliás ela perguntou no começo se você tinha e você mentiu dizendo tenho sim não esquenta vou colocar você deve se desculpar por tudo isso e pedi-la em casamento mesmo que não goste muito dela porque uma criança precisa de um pai e sacrifícios às vezes são necessários, as vozes dizem você engravidou a amiga da sua namorada e é melhor não contar nada para a sua namorada a menos que você queira magoá-la e arruinar a vida dela e se for esse o caso se você quiser magoá-la e arruinar a vida dela conte tudo mesmo e diga que se foda eu também comi a prima da sua mãe e a porcaria da sua professora de pilates e as duas nem sabem chupar uma pica direito e quanto à amiga grávida da sua agora ex-namorada primeiro duvide que o filho seja seu e jogue na cara dela que ela é uma vadia que andou trepando com meio mundo é isso mesmo você não passa de uma piranha e depois encha o saco dela para que faça um aborto e quando ela chorar e pedir dinheiro para o procedimento diga a ela que procure outro otário com quem tenha trepado porque ela trepou com meio mundo você dirá mesmo que não seja verdade ou sobretudo se não for verdade você dirá é óbvio que o filho não é meu e ela se quiser que aborte por conta própria ou tenha a criança sozinha quem se importa e depois te processe e peça um exame de DNA e se for o caso isto é se por azar você for o pai da criança ela que exija uma pensão e que se foda, as vozes não dizem vá à igreja amanhã e confesse e se arrependa de seus pecados e comungue e se esforce para ser uma pessoa melhor, as vozes dizem ouça Burzum e queime uma igreja de preferência com pessoas lá dentro incluindo padres e freiras e o filho coroinha do seu vizinho, as vozes não dizem está vendo aquele candidato a um importante cargo público ele é uma má pessoa e você precisa conversar com as pessoas e argumentar com calma e mostrar que aquele candidato a um importante cargo público é uma má pessoa e é melhor votar em outro candidato que não seja tão má pessoa ou quem sabe anular o voto qualquer coisa é melhor do que votar naquele candidato má pessoa a um importante cargo público desde que o processo democrático seja respeitado e as pessoas possam discordar de forma civilizada e respeitosa, as vozes dizem pegue uma faca nem precisa ser uma boa faca nem precisa ser uma faca dessas que os soldados de elite usam nos filmes pode ser uma faca comum e meio gasta e meio cega e além de tudo feia pegue a porcaria dessa faca comum e meio gasta e meio cega e além de tudo feia e procure aquele candidato má pessoa a um importante cargo público e enfie a porcaria dessa faca comum e meio gasta e meio cega e além de tudo feia no bucho cheio de bosta e ruindade do candidato má pessoa a um importante cargo público enfie a faca com vontade faça isso agora e que se fodam as consequências mas aconteça o que acontecer seu louco desgraçado dos infernos que ouve vozes dentro da sua cabeça aconteça o que acontecer não se esqueça de girar a porcaria dessa faca comum e meio gasta e meio cega e além de tudo feia porque se você enfiar a porcaria dessa faca comum e meio gasta e meio cega e além de tudo feia no bucho cheio de bosta e ruindade do candidato má pessoa a um importante cargo público se você enfiar mas não girar a porcaria dessa faca comum e meio gasta e meio cega e além de tudo feia tudo isso terá sido em vão seu louco burro desgraçado dos infernos que ouve vozes dentro da sua cabeça em vão está me entendendo tudo isso terá sido em vão, porque era uma vez, e nem foi uma vez tão boa assim, foi uma vez horrível, na verdade, uma vez hedionda, fedorenta, bizarra, uma vez malcheirosa, uma vez com bodum de mertiolate e merda, era uma vez essa vez e, nessa vez que era uma vez, era uma vez um sujeito que ouvia vozes e esse sujeito que ouvia vozes pegou uma faca, e nem era uma faca tão boa assim, não, era a porcaria de uma faca comum e meio gasta e meio cega, e além de tudo feia, esse sujeito que ouvia vozes pegou essa faca e invadiu uma festinha muito pobre e muito fodida, uma festinha das mais molambentas, cheia de gente mal vestida, maquiada em excesso e ouvindo músicas sem noção, esse sujeito invadiu a porcaria dessa festinha, mas não matou ninguém, só cantou parabéns, comeu uma fatia de bolo, elogiou o bolo, fez uma coisa, agradeceu pela festa e foi embora, pois o sujeito ignorou as vozes, ignorou em parte, e, usando aquela faca comum e meio gasta e meio cega, e além de tudo feia, o sujeito, depois de comer e elogiar o bolo, mas antes de agradecer pela festa e dar o fora, o sujeito fez uma coisa, e essa coisa que ele fez foi sacar a faca comum e meio gasta e meio cega, e além de tudo feia, e fincar essa faca no chão e abrir os braços e, com lágrimas nos olhos, dizer: Eu podia estar roubando, eu podia estar matando, mas estou aqui pedindo a sua ajuda, me dê uns trocados, pode ser moedinha, pode ser vale-transporte, se é que ainda existe vale-transporte, faz muito tempo que não uso o transporte urbano coletivo, fiquei fora por uns tempos, internado em uma belíssima instituição, meus familiares me internaram nessa belíssima instituição para que as vozes que tonitruam dentro da minha cabeça parassem de tonitruar dentro da minha cabeça, e elas pararam por um tempo, foi muito bom, eu adorei ouvir apenas a minha própria voz dentro da minha cabeça, mas agora as outras vozes voltaram, isso talvez tenha a ver com as medicações que parei de tomar porque as medicações me deixavam brocha e me davam caganeiras terríveis, caganeiras épicas, a ausência de libido eu conseguia suportar, pois sou uma pessoa comum e meio gasta e meio cega, e além de tudo feia e maluca que ouve vozes, não é como se eu fosse sair por aí comendo uma mulher atrás da outra, mesmo mulheres comuns e meio gastas e meio cegas, e além de tudo feias, o mais provável é que eu só consiga comer alguém mediante um acerto financeiro prévio, daí eu estar aqui diante de vocês pedindo uns trocadinhos, eu podia estar roubando, eu podia estar matando, mas só quero uns trocadinhos para somar aos trocadinhos que já tenho e, quem sabe, mediante um acerto financeiro prévio, comer uma buceta após todos esses anos afastado do convívio social com as pessoas ditas funcionais ou saudáveis ou sei lá como se chama hoje em dia, pode ser quanto for, não importa, qualquer valor ajuda, qualquer ajuda é válida, estou aqui pedindo a sua ajuda para completar a mensalidade da academia porque eu quero comer a professora de pilates da minha namorada, não, brincadeira, não quero, não, aquela não sabe nem chupar uma pica direito, estou aqui pedindo a sua ajuda para comprar uma faca dessas que os soldados de elite usam nos filmes, tipo a faca do Rambo em Rambo II, tipo a faca do tenente-coronel John Matrix em Comando para matar, uma faca daquelas táticas, acho que é assim que eles chamam aquelas facas especiais, uma faca tática, com aquela lâmina fodástica e serrilhadinha num dos lados, o tipo de faca que você desatarraxa a tampa do cabo e tira uma bússola lá de dentro e se orienta assim no meio da selva ou do deserto ou das cavernas quando os inimigos estão bem próximos, porque os inimigos estão vindo e é melhor você ficar esperto, eu podia estar roubando, eu podia estar matando, mas estou aqui pedindo a sua ajuda, e que Deus te dê em dobro e te abençoe e abençoe toda a porra da sua família, amém, porque era uma vez, escuta só isso que vou contar para vocês, já estou terminando, senhor, pare de gritar, por favor, eu podia estar roubando, eu podia estar matando, mas só quero uns trocados e contar essa história para vocês, era uma vez, e nem foi uma vez tão boa assim, foi uma vez horrível, na verdade, uma vez hedionda, fedorenta, bizarra, uma vez malcheirosa, uma vez com bodum de mertiolate e merda, e essa vez foi uma vez tão ruim que acabou com todas as vezes, e a gente se estrepou, todo mundo se estrepou, eles me prenderam e me internaram, foi uma internação do tipo compulsória, por isso me dê uma ajudinha, me dê uma ajudinha para que eu possa procurar uma mulher, uma profissional da área que não sinta um nojo excessivo da minha pessoa, para que, mediante um acerto financeiro prévio, eu possa comer a buceta dessa mulher que não sinta um nojo excessivo da minha pessoa, pois, no momento, não estou ingerindo meus medicamentos e, por conseguinte, ostento esta irrefreável ereção e não passo por nenhum episódio de caganeira, me dê uns trocadinhos ou eu juro que pegarei essa faca que finquei aqui no chão, e vejam, percebam, não se trata de uma faca bacana, não se trata de uma faca tática, é uma faca comum e meio gasta e meio cega, e além de tudo feia, me dê uma ajuda ou eu juro que pegarei a porcaria dessa faca e enfiarei aqui no meu bucho, é, bem aqui, e não se esqueça de girar, seu louco desgraçado dos infernos que ouve vozes dentro da sua cabeça, eu sou uma voz dentro da sua cabeça, eu podia estar roubando, eu podia estar matando, mas só estou aqui falando dentro da sua cabeça, estou aqui implorando, não se esqueça de girar a porcaria da faca, e que Deus te abençoe e te dê em dobro, foda-se, obrigado pela festa, pessoal, o bolo estava mesmo uma delícia e eu realmente preciso comer a buceta de uma mulher profissional da área que não sinta um nojo excessivo da minha pessoa mediante um acerto financeiro prévio, então, por favor, que tal uns trocadinhos?

 

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[Imagem: Wojciech Fangor, nº 48 (1963, óleo sobre tela).]

“Discurso”

Acho que agora eu entendi tudo.

Se o livro é “urgente”, ele também é “importante”, ou seja, ele aborda “questões” que, também elas, são “importantes”. Em geral, quando o livro é “urgente”, ele é “urgente” na maneira como aborda (ou “ataca”) (ou “trata”) “questões” assim “importantes”.

Mas as expressões são intercambiáveis: é perfeitamente possível que um livro seja “importante” por atacar (ou “abordar”) “questões” assim “urgentes”, ou por abordar (ou “atacar”) essa ou aquela “questão” com toda a “urgência” que ela (“questão”) “exige”.

Não raro, a “urgência” com que uma “questão” assim “importante” é tratada (ou “abordada”) (ou “atacada”) também diz respeito à “crueza” desse mesmo tratamento (ou dessa mesma “abordagem”) (melhor não usar “ataque” aqui), sendo a “crueza” diretamente proporcional à “coragem” do(a) autor(a) na forma como aborda a supramencionada (e “importante”) “questão”.

Voltarei à “crueza” daqui a pouco. Agora, quero falar um pouco dos(as) autores(as).

Os(as) autores(as) são muito “corajosos”, “ousados” e “inventivos”. Eles(as) têm “vozes” assim muito “poderosas” e “potentes”, e suas “vozes” são sempre “únicas” (mas também “generosas”) e “atravessadas” pelas “tensões” do “real”.

Ah, sim: o “real”.

O “real” é “fragmentado” ou até “estilhaçado” (há muitas “tensões”), de tal forma que as “vozes” dos(as) autores(as) também são “fragmentadas” ou “estilhaçadas”, pois os(as) autores(as) “trafegam” pelo “real”. Não obstante seu “caráter fragmentário” ou seu “estilhaçamento”, o “real” é “trafegável”. Ou talvez “trafegáveis” sejam as “veredas da ficção” que “apontam” para o “real”. Mas, nesse “jogo” entre o “real” e a “ficção”, “o real sempre ganha fácil”, ainda que a ficção seja “importante” por (ou para) nos “ressituar” no “mundo” (que, por sua vez, é “real”, mas pode ser “ilusório”; depende).

E há o “corpo”, claro.

Há sempre o “corpo”, e ele “pulsa” com bastante “intensidade” nas páginas da “obra” (onde mais?), dada a “urgência” desta (“obra”) e das “questões” que ela (“obra”) “atravessa”. Sim, não nos esqueçamos de que a “obra” não só aborda, ataca, trata ou “endereça” (tinha me esquecido dessa) as tais “questões”, não, a “obra” também “atravessa” as tais “questões”. Melhor ainda: as “questões” é que são “atravessadas” pela “obra” ou (intercambialidade) a “obra” é que é “atravessada” pelas questões.

Tudo é “poroso”. A “porosidade” também é muito “importante”. E tudo é “líquido”, a começar pela “modernidade” e incluindo as “relações”. Que também são “fluídas”, a exemplo dos “gêneros”.

Mas eu falava da “crueza”.

Claro, por mais “incisiva” que seja, a “crueza” nem sempre é “imprescindível”, pois há também abordagens “sutis” (mas igualmente “poderosas” e/ou “potentes”) de “temas delicados”. A “sutileza” pode ser uma forma “madura” de “enfrentar” aquelas “questões” que, como todos sabemos, dada a sua “urgência”, são muito “importantes”.

Às vezes, há um “acerto de contas” com “questões” que não são apenas “importantes”, mas também “estruturais”.

E, sendo “estruturais”, as “questões” são ainda mais “urgentes”, e elas são tão “urgentes” por “sublinhar” (ou “devassar”) “tensões” que, por sua vez, são ou se tornaram “insustentáveis”, “ressignificando” (por exemplo) as “relações” dos nossos “corpos” com o “outro”, com o “mundo” e/ou com a “história” neles “inscrita” (ou “marcada”), pois o “corpo” é sempre “político”.

Eu ainda não falei das “fraturas”.

Para começo de conversa, “fraturas” são sempre “dolorosas” e “traumáticas”. E, sejam tais “fraturas” identificadas como “sociais” ou “existenciais” (e uma coisa está sempre ligada à outra), importa a forma “potente” com que elas (“fraturas”) são “expostas”, pois as melhores “fraturas”, como todos sabemos, são as “fraturas expostas”.

E haja “coragem” para lidar — de forma “crua” ou “sutil”, mas sempre “poderosa” e “potente” — com tais “feridas”, “fraturas”, “traumas”, “atravessamentos”, “tensões” e “urgências”, abordando (ou “endereçando”) “questões” tão “importantes”.

Sim, haja “coragem”.

Murakami entre dois mundos

Resenha publicada no Estadão.

O FIM DO MUNDO E O IMPIEDOSO PAÍS DAS MARAVILHAS, UM DOS PRIMEIROS E MELHORES ROMANCES DO AUTOR JAPONÊS, É LANÇADO NO BRASIL.

Nos capítulos ímpares, uma ficção científica cyberpunk envolvendo implantes cerebrais, guerra informacional e um autêntico submundo; nos capítulos pares, uma narrativa fantástica situada em uma cidade utópica povoada por unicórnios e pessoas desprovidas de sombras e desejos. Lançado originalmente em 1985, O Fim do Mundo e o impiedoso País das Maravilhas (Alfaguara, tradução de Jefferson José Teixeira) é o quarto romance de Haruki Murakami e está estruturado da forma descrita acima: duas narrativas muito distintas que, no entanto, convergem para constituir uma só história e, de certo modo, uma só pessoa.

Como diria Ivan Lessa, a trama do livro é simples, mas o enredo é complicado. O narrador dos capítulos ímpares é um “calculador”, alguém treinado para processar informações, às quais não tem acesso direto: grosso modo, em duas etapas (“lavagem cerebral” e “shuffling”), o sujeito armazena as informações codificadas, de tal forma que estas não podem ser arrancadas dele. No mundo dessa parte da história, há duas grandes corporações em guerra: a System (empregadora dos “calculadores”) trabalha para proteger as informações dos clientes, ao passo que a “máfia dos dados” Factory emprega calculadores que perderam suas licenças (os “simbolistas”) e tenta roubar as informações.

Logo no começo, o narrador é chamado ao laboratório de um cientista para proteger os dados de uma pesquisa que pode decidir a guerra informacional em curso. Para roubar esses dados, os “simbolistas” se aliaram a criaturas que vivem nos subterrâneos de Tóquio, os “tenebrosos”. Não demora muito para o protagonista entender que não é um mero peão na brincadeira. Pelo contrário, seu cérebro e alguns implantes que fizeram nele são a chave de tudo.

Nos capítulos pares, somos levados a uma cidade murada, da qual os habitantes não podem (nem querem) sair. Ao ingressar nela, as pessoas são separadas de suas sombras, que morrem não muito depois. A morte da sombra implica a perda de quaisquer memórias, sentimentos e anseios. Os indivíduos levam, assim, uma existência atemporal, realizando suas pequenas tarefas e entregues a um ciclo repetitivo. Recém-chegado, com sua sombra definhando sob a vigilância de um guardião kafkiano (lembra o vigia da lei naquela parábola n’O Processo), o narrador é encarregado de “ler” os velhos sonhos dos moradores. O leitor deve atentar ao papel dos crânios dos unicórnios em ambas as histórias.

Escrito logo após o formidável Caçando carneiros, O Fim do Mundo e o impiedoso País das Maravilhas pode ser descrito como um esforço para conciliar inspirações muito diversas e, a partir delas, conceber um universo particularíssimo. De fato, Murakami pega elementos que não fariam feio em um romance de William Gibson (guerra tecnológica e informacional, implantes cerebrais, mundo virtual) e os atira em uma fantasia que remete a Philip K. Dick (realidades e identidades colidindo; o que é real e o que é ilusão?; unicórnios). Emerge algo único dessa mistura. Logo, o esforço é muito bem-sucedido.

Os poucos senões dizem respeito às platitudes e breguices proferidas em certas passagens (“Abra mais seu coração. Você não é um prisioneiro! É um pássaro que voa no céu em busca de sonhos!”) e que alimentam o pior lado do sentimentalismo de Murakami. O melhor está na capacidade do autor de criar mundos absurdos e torná-los plausíveis por meio de recursos e soluções que parecem simples, mas são extremamente sofisticados. Em seus melhores momentos, como na descida do protagonista ao mundo ínfero — passagem que encerra uma catábase e uma anábase —, o livro abandona o tom pedestre e abraça a lógica dos pesadelos. Mesmo a longa explicação do cientista não consegue nos afastar da escuridão “desagradável e opaca” que parece “viver, respirar e se movimentar”. É a escuridão daqueles mundos fantásticos, mas também a escuridão do nosso mundo. Lá como aqui, não há muito que se possa fazer para escapar dela. E, assim, temos aqueles recursos e soluções de simplicidade enganosa, que elevam o romance e o colocam entre os melhores de Murakami: a atenção aos mínimos gestos, a descrição espirituosa das menores ações cotidianas e a reiterada alusão à incompletude fundamental das pessoas e seus mundos, interiores ou não.

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5xMURAKAMI
Meus prediletos do autor

CRÔNICA DO PÁSSARO DE CORDA
A mulher do protagonista é sequestrada pelo próprio irmão. Mas, para resgatá-la, o nosso anti-herói precisa encontrar o caminho por um labirinto não só metafísico como propriamente histórico: a violência atual presentifica e atualiza violências pretéritas. Lewis Carroll sorri lá no inferno.

KAFKA À BEIRA-MAR
Talvez o mais misterioso e fantasmagórico dos romances de Murakami, é um pesadelo edipiano que não faz muitas concessões. Há, para variar, um outro mundo à espera (ou à espreita) e uma cura possível. Mas, aqui, a passagem custa um pouco mais caro do que o habitual.

CAÇANDO CARNEIROS
A certa altura, surge a questão: estamos nos arredores de Hokkaido ou dentro da mente do protagonista? Ou, pior, no Hades ou coisa que o valha? O melhor de tudo é que Murakami nem se preocupa em responder. Primeiro grande romance dele.

NORWEGIAN WOOD
Menos “surreal” do que a maioria dos livros de Murakami, ainda que vozes do “outro mundo” (ou, melhor dizendo, do passado) se façam sempre presentes, metaforicamente falando. É um grande livro sobre as perdas que sofremos e como lidamos (mal) com elas. E aborda o suicídio de forma dolorosamente honesta.

O ASSASSINATO DO COMENDADOR
Murakami revisita inúmeros motivos já explorados em romances anteriores (separações, pessoas que desaparecem, poços, outro mundo), o que explica a má vontade com que o livro foi recebido por alguns. Para mim, foi como devorar um dos meus pratos favoritos: sei exatamente o que esperar, mas saboreio com enorme alegria (e não há nada de errado nisso).

O bruto nos deixa aflitos

ALGUNS PARÁGRAFOS SOBRE OS CONTOS DE DALTON TREVISAN.
Artigo publicado no
Estadão. O escritor completa 99 anos hoje.

Em meados da década de 1990, a revista Veja publicou um conto de Dalton Trevisan intitulado “Feliz Natal”. Um conto, não. Uma paulada. Porque era a história de um estuprador e assassino, narrada em primeira pessoa e períodos curtos, pontiagudos. Li e reli e reli. Havia, na biblioteca dos meus pais, um exemplar d’O vampiro de Curitiba. Corri à estante, peguei, abri e me deparei com: “No fundo de cada filho de família dorme um vampiro — não sinta gosto de sangue”. Aquilo era areia nos olhos. Bruto demais, e seco. Aquela voz enferma, febril, pusilânime. Ensurdecedora. Cada frase parecia desarvorada, os galhos desfolhados e encolhidos, talvez queimados. Eu fora mordido.

Mais ou menos na mesma época, comprei a coletânea 234. “Ministórias”, dizia a folha de rosto. E, nela, dividido em quatro fragmentos (228, 230, 232 e 234), reencontrei aquele conto natalino: “Periga pintar cadeia? Serve de exemplo pra mim. Ou de maior maldade. É o que vier. Aí um cara faz o mesmo? Garra uma de minha irmã, usou ela? No dia que eu encaro o tipo, fatal”. As frases são curtas, a narração é entrecortada, mas os vazios da experiência são infinitos. E a voz inclui o leitor, a voz fala com ele, para ele. Como se estivessem sentados à mesa de um boteco, os horrores vadiando à frente dos olhos. Ivan Lessa dizia ler os contos de Trevisan em voz alta: de tão afiado, o estilo pode nos cortar. O bruto nos deixa aflitos.

Mais do que vozes da rua (embora muitas vezes também o sejam), são vozes vizinhas e, não raro, vozes internas — vozes que ecoam pelos corredores de casa. Os personagens dos contos de Trevisan estão no quintal, na sala, pelos quartos, na cozinha. Entre pequenas e grandes crueldades, circulam por esse mundo paradoxal, lugar ao mesmo tempo tão restrito e tão inclusivo, no qual se acotovelam tantos animais familiares. Com sua genialidade, o homem me fez sentir pena das bonecas a certa altura de Ah, é?: “Reinando com o ventilador, a menina tem a ponta do dedo amputada. Desde então as três bonecas de castigo, o mesmo dedinho cortado a tesoura”. Duas frases, um conto inteiro, uma vida assim resumida, pois ali enxergamos (ouvimos?) que as bonecas são apenas o começo, as bonecas não são nem serão as únicas a sofrer.

Mas existem exemplos de generosidade. Não? Em Dinorá, um daqueles “haicais”: “O marido, ao telefone: — Quando você vier para casa, não deixe a menina entrar no quarto — eu estou enforcado”. Por um momento, o mundo se divide entre os enforcados e as crianças que, mesmo avisadas, insistem em entrar no cômodo interditado. Se fecharmos os olhos, conseguiremos ver os pés balançando no vazio e ouvir os resmungos da corda amarrada à viga.

Já o narrador do conto-título de O vampiro de Curitiba é um tipo especial de monstro, brasileiríssimo, um vampiro que flana por aí à luz do dia, ardendo de desejo, babando, os olhos delirando com as possibilidades: “Tarde demais, já vi a loira: milharal ondulante ao peso das espigas maduras”. Esse vampiro curitibano (brasileiro) não é um tarado qualquer. Acusa uma qualquer de desdenhosa, a “própria égua de Átila — onde pisa, a grama já não cresce”. Sabemos em que pode resultar essa libido descompensada; nos piores casos, em descalabros como os descritos em “Feliz Natal”. São gradações de uma mesma violência. “Maldita feiticeira”, ameaça o vampiro, “queimá-la viva, em fogo lento.” E diz o narrador da história natalina: “Então fico na rua e tal. E fico zoando. Estou pra tudo. Pra morrer, pra matar. Certo? Muita deu sorte que não morreu”.

Assim, nos contos de Trevisan, há sempre uma tensa oscilação entre elipses e repetições. Estas adensam a impressão de um mundo que se retroalimenta com seus joões, marias e nelsinhos, com suas pequenas e grandes brutalidades; aquelas sublinham os interditos e radicalizam o que é dito naquele apreço modernista pela ponta do iceberg (ou, se preferirem, pelo dedo da boneca) — para cada brutalidade exposta, há uma infinidade de brutalidades mais ou menos implícitas e sugeridas. Graças a esse jogo acumulativo de procedimentos e ocorrências similares, pisados e repisados, é retirada da violência qualquer domesticidade. Como a forma jamais é pedestre, o que é narrado transcende os limites daqueles lares, terrenos baldios e ruas. A lâmina afiada do estilo impede a banalização das tragédias cotidianas. Naquela multidão de “desgracidos”, há sempre um rosto no qual nos fixarmos.

 

[Ilustração: George Grosz (detalhe).]

Sobre “Os grandes carnívoros”

Resenha publicada no Estadão.

MORTE E VIDA DOS ANIMAIS

Em seu novo romance, Adriana Lisboa aborda diversas formas de violência.

Adelaide, a protagonista de Os grandes carnívoros (Alfaguara), esteve na cadeia. Foi presa em um país estrangeiro, nos Estados Unidos (ou na América, a “Grande Sinédoque”), por incendiar um laboratório de pesquisas que utilizava animais como cobaias. Ela também sente culpa: para não ser julgada como “terrorista” e passar o resto da vida na cadeia, dedurou os demais membros do grupo de ativistas que integrava, isto é, colaborou com as autoridades. Cumprida a pena de três anos, Adelaide retorna ao Brasil e aluga uma casa na serra da Mantiqueira, nas proximidades de um vilarejo. É nesse ponto que se inicia o oitavo romance da carioca Adriana Lisboa: no ponto do retorno.

Trata-se de um ponto familiar à literatura brasileira contemporânea. Perdi a conta de quantos livros nacionais recentes (alguns bons, vários assim-assim e inúmeros ruins) partem daí ou de premissas similares. Mas há distinções a serem traçadas aqui, elementos que impedem Os grandes carnívoros de cair na vala comum. O primeiro deles é o fato de que Adelaide retorna ao Brasil após uma longa e acidentada estadia no exterior, mas não para casa. Voltar para casa seria voltar para a cidade do Rio de Janeiro, onde estão seus únicos parentes vivos, o pai doente e a tia, e aí teríamos aquela historieta convencional repleta de acertos de contas e escarradas sentimentalistas. Felizmente, não é o caso aqui, pois Adelaide opta por um segundo exílio. E, ao final do romance, “recrutável” como é, ela parece optar por um terceiro ou por uma repetição caseira do exílio original. Naquela historieta banal, teríamos a personagem lidando com (encha a boca de farofa) os fantasmas familiares. Lisboa é incapaz de conceber banalidades, e Adelaide tem coisas mais imediatas e assustadoras com as quais lidar. Uma delas é o próprio corpo; outra é o corpo do outro (esse animal).

Outro elemento que eleva o romance é a prosa de Lisboa. Melhor ficcionista de sua geração, autora de livros excelentes como Hanói, Azul corvo e Rakushisha, ela foi agraciada com o Prêmio José Saramago por Sinfonia em branco. Claro que, a julgar pela lista de premiados, convém dizer que é Lisboa quem conferiu prestígio a esse prêmio, e não o contrário. Veja, por exemplo, como ela descreve a viagem de Adelaide em “um longo voo noturno que, segundo o mapa que acompanhava na escuridão da cabine, veio despencando Américas abaixo”, fantasiando que “talvez bastasse ao piloto largar o aviãozinho em seu ponto de partida setentrional e, pela força da gravidade, ele acabaria em seu porto de chegada mais ao sul”. Ocorre que, no “coração de Adelaide”, esse “movimento parecia ser, mais que do norte ao sul, do fundo à superfície”. Ela espera deixar “a escuridão para trás”. Mas, claro, aqui é o Brasil e isso não é possível. E o romance se desenrola para mostrar a Adelaide uma outra modalidade de escuridão.

Chegamos, assim, a um dos temas que norteiam Os grandes carnívoros: a violência. Há diversas formas de violência abordadas e retratadas no livro. Há, claro, a violência política dos ativistas, violência contra o “patrimônio”, sabotagens e destruições de bens e instalações, em que ninguém morre ou sai ferido — exceto (o que não deixa de ser irônico) os próprios ativistas.

Vide Sofia, uma das líderes do grupo e pessoa importantíssima para Adelaide. Presa, Sofia é a única que não abre o bico para as autoridades. Mas, se é verdade “que o mundo se desmantela por um nada”, também é verdade que pessoas assim, quando confrontadas com esse mundo, desmantelam-se em igual medida. Fiel àquilo em que acredita e pelo que luta, a “terrorista” Sofia comete suicídio na cadeia. No entanto, e isso é curioso, seu gesto não carrega originalidade nenhuma: o método (uma sacola plástica na cabeça) e o bilhete deixado espelham o método e o bilhete deixado por outro ativista. Quando até mesmo o suicídio enquanto political statement perde a sua “aura”, é sinal de que estamos mesmo ferrados.

Lisboa também lida com as violências que testemunhamos ou, nos piores casos, sofremos cotidianamente. Nas páginas 64 e 65, há um relatório de brutalidades ocorridas apenas no ano de 2011. E, no caso específico dos personagens que enfoca, o romance caminha para a ocorrência de um crime hediondo. Quantas mortes (de si mesma e de outrem) Adelaide será capaz de suportar? Sendo formidável como é, provável que muitas. E, em vista do que sofreu, compreendendo melhor a “faculdade” da violência, talvez resulte em uma ativista mais efetiva do que a malfadada Sofia.

Em resumo, temos a violência dos humanos contra os outros animais, que leva à “violência” dos ativistas, à qual o Estado reage pronta e violentamente, e a violência dos animais humanos contra os animais humanos em suas incontáveis variedades cotidianas, seja em Mariupol, seja na Mantiqueira. À sua maneira, Os grandes carnívoros é um belo livro apocalíptico: “Morrer dos vivos. Viver dos mortos. O começo é o tempo todo e também o fim”. Mas, hoje em dia, toda e qualquer narrativa contemporânea digna de nota, pelo sim, pelo não, exala um fortíssimo bodum apocalíptico.

Noites japonesas

“Noite e névoa no Japão” (1960), de Nagisa Oshima, começa e termina com discursos obtusos, de um professor meio vacilão e de um burocrata stalinista, sendo este, por certo, a criatura mais desprezível em todo o filme. O longa é coalhado de planos longos (o primeiro dura uns dez minutos), e não raro os flashbacks são introduzidos mediante truques simples, mas muito eficazes, de iluminação e movimentação de câmera. Os personagens relembram momentos críticos da história japonesa no pós-guerra, como as manifestações contrárias ao tratado militar (“Anpo”) firmado entre os EUA e o Japão em 1960.

No “presente”, a festa de casamento entre dois membros de gerações distintas, mas ainda próximas, de militantes. Claro que chamar aquilo de “festa” é um exagero. Noivo e noiva parecem prestes a botar um ovo, e não no estilo depois consagrado pelo mesmo Oshima em “O império dos sentidos”. Egressos da noite e da névoa, companheiros e ex-companheiros de militância irrompem na celebração feito zumbis, sedentos por um acerto de contas com os outros e (nos melhores casos) consigo mesmos. O hegeliano está de cara cheia. O foragido só pensa em exumar alguns corpos. O stalinista sai pela tangente (enquanto há perigo). Todos se lembram de tudo nos mínimos detalhes — (auto)punição maior não há, certo?

Há um forte teor teatral na coisa, que parece ressaltar e ridicularizar a teatralidade muitas vezes inerente à própria ação política, sobretudo em seus excessos e extremos: um “espião” (um ladrãozinho, na verdade) é mantido prisioneiro, todos discordam de todos sobre quase tudo, a maioria é obviamente usada como massa de manobra, alguns estão mais interessados em trepar (mas nem sempre) (em todo caso, há salvação para esses), a polícia prende e arrebenta, e o que sobra no final? O stalinista, aquele. Discursando noite adentro.

Curioso que o estúdio tenha retirado o filme de cartaz por causa do assassinato do político socialista Inejiro Asanuma por um ultranacionalista em 12 de outubro de 1960. Acho curioso porque não me parece uma decisão mercadológica feliz, mas, beleza, eu sou meio cínico. O assassino (cujo nome prefiro não mencionar) tinha dezessete anos de idade, o que inspirou Kenzaburo Oe a escrever a obra-prima “Seventeen” (v. “Catorze contos de Kenzaburo Oe”, trad.: Leiko Gotoda, Cia. das Letras) e sua sequência, “Seiji Shonen Shisu” (tirada de circulação a pedido do autor, que sofreu ameaças de extremistas durante toda a vida). A arma do crime foi uma wakizashi (espada samurai de lâmina curta), e o assassinato foi registrado pelo fotógrafo Yasushi Nagao (o que lhe rendeu um Pulitzer).

Agora me ocorreu que o ex-primeiro ministro Shinzo Abe foi assassinado em 2022 por um maluco cuja birra era com a Igreja da Unificação (leia “Mao II”, de Don De Lillo). É possível dizer que, no Japão, a prática do assassinato político é ecumênica.

Voltando a Oshima, onze anos depois ele ofereceu um recorte ainda mais doentio das tensões inerentes à sociedade japonesa: “Cerimônia solene”. Acompanhando a história de uma família desde o final da Segunda Guerra até a década de 1970, e usando como dispositivo narrativo as festas, reuniões e cerimônias do clã (incluindo um casamento sem noiva), ele parece afirmar que não há salvação nem mesmo no incesto ou — o que é ainda pior — no beisebol.

“Noite e névoa no Japão” e “Cerimônia solene” estão em um box lançado pela Versátil tempos atrás.

Carnívoros

Artigo publicado n’O Popular em 30.04.2024.

“Os grandes carnívoros” (ed. Alfaguara) é o novo romance da carioca Adriana Lisboa. Vencedora do Prêmio José Saramago, Lisboa é uma das melhores escritoras brasileiras contemporâneas, autora de uma obra impressionantemente regular e muito, mas muito acima da média. Aliás, não me canso de dizer que, ao receber a supracitada honraria, foi ela quem conferiu prestígio ao prêmio, e não o contrário. Em geral, é assim com os(as) melhores escritores(as).

Alguns dos personagens de “Os grandes carnívoros” são ativistas ambientais, gente que (por exemplo) sabota e incendeia laboratórios que usam animais como cobaias. Na medida em que sou um carnívoro, qualquer coisa que eu diga sobre essas pessoas soaria (na melhor das hipóteses) condescendente ou (na pior) abertamente babaca. Assim, falo do livro, e de como Lisboa consegue desenvolver a narrativa pontuando tais e tais coisas sem, contudo, contaminá-la. É um bom romance, não a porcaria de um panfleto.

Aliás, tanto melhor que, em seu desenrolar, o livro discorra sobre (e descreva/“mostre”) a violência dos humanos contra os humanos, e não “apenas” a violência humana contra os outros animais. O pior ato de violência descrito em suas páginas envolve duas pessoas, e não René Descartes e um cachorro (leia o livro se quiser entender a referência).

A protagonista se chama Adelaide. Ela é uma ativista que, por incendiar um laboratório nos Estados Unidos, cumpriu pena de três anos por lá. Libertada, ela volta ao Brasil e se isola em uma casa na Mantiqueira. A ideia é espairecer e colocar a cabeça no lugar. Mas, claro, a cabeça é teimosa, as pessoas são cretinas, as memórias são dolorosas e a desgraça está sempre à espreita.

Adelaide começa a se relacionar com o senhorio, um sujeito aparentemente legal, embora casado. A Sétima Sinfonia de Beethoven (não seria melhor a Sexta?) ribomba nas páginas. Os corpos se entendem. A ingenuidade da protagonista estridula no campo. E a perversidade humana não demora a se manifestar. De um humano específico, no caso. Não há generalizações fáceis e/ou programáticas no romance.

Em se tratando de Descartes, um efeito colateral da leitura foi revisitar com enorme prazer trechos das “Meditações sobre Filosofia Primeira” (na tradução de Fausto Castilho, ed. Unicamp) e de outros livros dele. É que os tais ativistas “cancelam” Descartes e se apegam a picaretagens como as de Derrida. Não que isso seja importante, claro. Para incendiar um laboratório, as pessoas só precisam de raiva e fósforos, não de uma “fundamentação teórica” consequente (embora julguem tê-la e, em alguns casos, tenham mesmo). Logo, que diferença faz os picaretas que elas papagueiam? E esses momentos de bricolagem pseudofilosófica não atrapalham o romance. Pelo contrário, eles são imprescindíveis para a ótima caracterização dos personagens.

No cenário depauperado da literatura brasileira atual, tomado por panfletarismos de todas as cores e tamanhos, é um alívio ter em mãos um livro como “Os grandes carnívoros”. Adriana Lisboa mostra que é possível conceber uma narrativa literariamente ímpar e politicamente alerta sem apelações e proselitismos toscos. Em outras palavras, ela trata o leitor como um animal inteligente, não como um tonto esperando ser catequizado.

Memória e pertencimento em “O outono dos ipês-rosas”

Resenha publicada na edição de abril de 2024 da revista Pernambuco.

O termo alemão Bildung é imprescindível para compreender O outono dos ipês-rosas (editora Cepe), novo romance de Luis S. Krausz. Em uma nota de rodapé na página 409, o narrador nos diz que a “identificação dos judeus de língua alemã com a Europa de língua alemã baseava-se no pressuposto de que a pessoa cria sua própria cultura, e de que a cultura cria a própria pessoa”. Assim, a “ideia oitocentista de Bildung, de uma formação humana abrangente, individual e autônoma, pressupõe a autodeterminação (…). A Bildung é um caminho que se baseia na liberdade e que deve conduzir à liberdade”. O protagonista do livro é um judeu paulistano chamado Martin Stieglitz, “cidadão brasileiro, filho de imigrantes”, morador de uma casa no Jardim Europa (herança dos pais) e alguém que “aprecia muito a memória e detesta o esquecimento como a morte”.

Stieglitz é, também, um Spaziegänger, um “caminhante”, pois aprecia flanar pela cidade e observar o que permanece (pouco) e o que foi alterado (muito). Educado na Suíça, frequenta concertos na Sala São Paulo, adora Vivaldi e despreza quase todos os compositores posteriores a Mahler. Veste-se bem, mantém um escritório na Faria Lima (no mesmo prédio do consulado alemão), onde cuida de seus investimentos e procura preservar o que herdou. Stieglitz sustenta uma ligação fortíssima com certa Europa que “existiu, segundo dizem, antes que a Europa tivesse deixado de ser a Europa”: a Europa dos Habsburgo.

O narrador nos informa que ele “herdou de seus antepassados um sonho: pertencer ao mundo alemão”. Tal pertencimento está ligado à Bildung, pois, na época do Império Habsburgo, “parecia que ‘pertencer ao mundo alemão’ era algo que estava ao alcance de quem quisesse fazê-lo já que, segundo se acreditava, ser austríaco não era entendido como uma condição de nascimento, de origem biológica”, mas cultural: conhecer “a língua alemã e (…) a literatura alemã significava ‘pertencer ao mundo alemão’”. O Império Habsburgo ruiu. Com a ascensão do nazismo, milhões de judeus foram exterminados e outros tantos se exilaram — uma diáspora dentro da diáspora.

Esses temas vêm sendo abordados por Krausz em toda a sua carreira como ficcionista. Mas, enquanto os excelentes Desterro, Deserto, Bazar Paraná, Outro lugar e Opulência abraçam uma forma narrativa que alguns chamam (hediondamente) de “autoficção”, mas que talvez fosse melhor chamar de “heteroficção”, pois centrada na miríade de experiências alheias marcadas pelo exílio (o narrador quase sempre olha para fora, não para dentro), O outono dos ipês-rosas coloca mais dois filtros entre as vivências abordadas e o leitor: o narrador em terceira pessoa e Stieglitz, que, obviamente, não é Krausz (o qual, aliás, é citado em uma nota na página 78, incrementando o distanciamento).

O romance é dividido em duas partes: “A cidade invisível” e “A cidade visível”. Na primeira, acompanhamos as deambulações de Stieglitz sobretudo pelo Jardim Europa. Na segunda, Stieglitz vai a um jantar no apartamento de uma riquíssima família de conhecidos, os Fuchs; lá, reencontra pessoas com quem conviveu e, a certa altura (diante de um samovar “que brilha como um espelho”), relembra outro evento social — um almoço ocorrido anos antes no sítio (em São Roque) de outra família, os Stern. Assim, seja nesses encontros, seja em seus passeios, a maior parte do que acontece na narrativa passa pelas lembranças de Stieglitz, são recordações ligadas às pessoas que conhece ou conheceu e às circunstâncias em que elas (ou seus antepassados) aportaram no Brasil.

No decorrer do romance, Krausz aborda várias diásporas, muitas delas interligadas, como, por exemplo, dos judeus da península ibérica que, expulsos em fins do século XV, foram parar na Polônia, de onde seriam expulsos no século XIX pelo czar Alexandre III. E, mesmo em se tratando de gentios, o trânsito (forçado ou não) de indivíduos é reafirmado a todo instante (vide a sueca naturalizada brasileira Maud Tork-Fisk), bem como os conflitos que surgem entre pessoas de procedências distintas (como no caso da filha do cônsul britânico e o “oriental”) ou mesmo entre aqueles que, advindos de ambientes culturais relativamente comuns, têm outros motivos para se estranhar.

Há, por exemplo, o contraste entre as castas financeiras de Stieglitz e dos Fuchs. A fortuna do primeiro é relativamente grande, mas não obscena, ao passo que os Fuchs vivem em um apartamento que vale dezenas de milhões de reais (mas bebem um whisky medíocre, Pinwinnie, que só é vendido a peso de ouro para incautos e otários). E, em se tratando do convidado e dos anfitriões, há também um contraste cultural, sublinhado na discussão literária entre Stieglitz e Martin Fuchs. “Um romance pode mostrar ao leitor outros mundos”, diz ele ao ricaço, “realidades diferentes das que ele conhece, que são capazes de colocar o mundo tal e qual a pessoa o vê em nova perspectiva. Nós não somos capazes de enxergar o mundo como ele é. Fazemos isso de acordo com o que somos. Ao retratar um mundo, o escritor mostra, também, a si mesmo: uma pessoa diferente do leitor. E, com isso, o leitor pode se perguntar se as coisas realmente têm que ser como são, se são o que precisam ser e se são o que parecem ser.”

Stieglitz é, portanto (e de diversas formas), membro de uma espécie em extinção. Seu apego à palavra, à música e à memória traz em si a consciência de que nele também sobrevivem “pedacinhos da sua terra” ancestral, aquela Europa que desapareceu. Mas também há o pressentimento de que muitas dessas coisas morrerão com ele, de uma forma ou de outra. Não por acaso, o outono é a estação favorita de Stieglitz: “No outono paira no ar a sensação de que algo está sumindo”. Mas, enquanto essas coisas não desaparecem, o melhor que podemos fazer é frequentá-las e fixá-las de algum modo. A literatura de Luis. S. Krausz parece empenhada em um esforço dessa natureza.

Canto LIII

“Yeou”: Yu Tsao-chi foi um rei mítico da China, sucessor da grande trindade (os três augustos) que reinou por 54 mil anos (18 mil cada). Yu teria ensinado os súditos a construir casas (na verdade, cabanas usando galhos e outros materiais facilmente encontráveis). Seu nome significa algo como “possuindo ninho”.

“Seo Gin”: Sui Jen-chi foi outro rei mítico, sucessor de Yu. Introduziu o uso de madeira e do fogo (seu nome significa exatamente “produtor de fogo e madeira”). Também foi em seu reinado que a prática do comércio teve início.

“Fou Hi”: Fü Hsi reinou entre 2852-2737 a.C. e foi o primeiro dos cinco imperadores do período lendário chinês. Ele ensinou o povo a caçar, pescar e criar rebanhos. Também criou um calendário, instrumentos musicais, contratos de casamento, inventou a escrita e ensinou o povo a cozinhar. Seu nome significa “ser humilde, esconder-se”.

“Chin Nong”: Shên Nung (reinou entre 2737 e 2698 a.C.), segundo dos cinco imperadores lendários. Introduziu um sistema de permutas e a agricultura, sendo conhecido como o “Príncipe dos Cereais” (seu nome significa “agricultor divino”). E aí vem a melhor parte: seu tronco era transparente (o estômago coberto por uma espécie de vidro) e, assim, ele assistia ao próprio processo digestivo e estudava as propriedades dos alimentos.

“Souan yen”: Hsuan Yen, governador que serviu sob o imperador Shên Nung.

“Hoang Ti”: Huang Ti, o “Imperador Amarelo”, reinou entre 2697-2597 a.C., e era dele que todos os reis e príncipes chineses alegavam descender. Foi um governante benevolente e introduziu a historiografia oficial, inventou os tijolos, fez uma reforma no calendário, dividiu os campos de tal forma que cada faixa de terra era usada por uma família e a porção central, por todos.

“Syrinx”: a ninfa perseguida por Pã. Ela se transformou em um tufo de juncos. Pã, então, transformou os juncos em tubos e criou, assim, a célebre flauta.

“Ti Ko”: Ti Ku reinou entre 2436 e 2366 a.C. e seu nome significa “comunicação imperial”. Administrou a justiça com benevolência.

“YAO”: filho de Ti Ku, reinou entre 2357 e 2259 a.C. e fez com que os astrônomos reais criassem um calendário agrícola. É tido como um dos melhores monarcas. Após sua morte, houve três anos de luto. Na véspera de sua morte, como tivesse um filho incompetente, nomeou Shun como sucessor.

“YU”: Ta Yü ou Grande Yü reinou entre 2205 e 2197 a.C. e foi o fundador da dinastia Hsia. Apresentado ao imperador Yao por Shun, Yü foi encarregado de controlar as enchentes do Rio Amarelo, no que foi muito bem sucedido. Serviu como vice-regente de Yao e assumiu o trono após a morte de Shun.

“μωλν”: “moly”, a erva que Hermes dá a Odisseu como antídoto às drogas de Circe (Odisseia X, 305).

“Chun”: Shun reinou entre 2255 e 2208 a.C. após quase três décadas servindo (e aprendendo com) Yao. Ajudou a organizar os serviços religiosos.

“Chang Ti”: Shang Ti, Ancestral Supremo ou Governante do Céu. Ele é a força divina ativa, contraposta à força divina passiva (T’ien). Shang Ti, enquanto deidade individualizada, é tido como a morada dos espíritos após a morte.

“que vos vers (…) conforme”: “que seus versos expressem suas intenções, / e que a música se conforme a eles”.

Ideogramas: YAO, “eminente”; CHUN, “sábio”; “YU”, ideograma do fundador da dinastia Hsia; “KAO-YAO”, “abençoado” + “forno” (de uma olaria, no caso). Kao-Yao foi ministro do imperador Yü e, enquanto tal, introduziu as primeiras leis de repressão ao crime.

A “Imperatriz” citada é Min, esposa de Ti-hsiang. Este foi morto pelo usurpador, Han-tsuo, e ela fugiu e deu à luz Shao Kang. Este foi imperador entre 2079-2055 a.C., depois que Han-tsuo foi deposto pelo povo.

“Chan” é, provavelmente, Shao-Hao, o quarto dos lendários cinco imperadores, filho e sucessor de Huang Ti. Teria sido negligente. No verso seguinte, “Tchuen” é Tchuen-hio, Chuan Hsü, o quinto dos cinco imperadores lendários, neto de Huang Ti; reinou entre 2513-2436 a.C.

“Tching Tang”: Ch’êng T’ang, fundador da dinastia Shang, reinou entre 1766-1753 a.C. e foi um excelente monarca. Durante uma seca, cunhou moedas para que o povo comprasse grãos. Mas só houve grãos à disposição após a aceitação dos sacrifícios pelo Céu, quando a seca chegou ao fim. Daí os versos: “der im (…) hat”, “[o homem branco] que fez a tempestade em Baluba” — v. Canto XXXVIII, onde Pound reconta a seu modo um episódio de Erlebte Erdteile, do antropólogo alemão Leo Frobenius (1873-1938). A anedota original é de que Frobenius e seu time adentraram uma zona de guerra na África e usaram os tambores para sinalizar suas intenções pacíficas. Os tambores também anunciaram a participação de todas as vilas da região em uma batalha na manhã seguinte, mas uma tempestade caiu por volta da meia-noite e, por isso, não houve nenhuma batalha. Os locais acharam que o homem branco “fizera” a tempestade a fim de evitar a guerra. Assim como Frobenius “fez a tempestade em Baluba”, os ritos de Ch’êng T’ang trouxeram a chuva.

Os ideogramas abaixo têm como sentido “faça novo, dia após dia (ou sol após sol), faça novo” (hsin, “novo”; jih, “sol”). E, de fato. Ch’êng T’ang escreveu FAÇA NOVO (“MAKE IT NEW”, no poema) em sua banheira.

“Hia”: Hsia, “verão”. Após a queda de Hsia, a primeira dinastia chinesa, o Reino do Meio foi governado pela dinastia Shang-Yin (1766-1122 a.C.), a primeira historicamente verificável. O título dinástico seria alterado para Yin por volta de 1045 a.C., por Pan Keng.

“Wen Wang”: Wên Wang, o “rei elefante” (1231-1135 a.C.), governou o principado de Chou e era chamado de “Líder do Oeste”. Historiadores modernos consideram-no um monarca exemplar. Como a dinastia Shang-Yin tivesse degenerado em governantes incompetentes, lascivos e cruéis, Wang tentou destronar Chou Hsin, mas foi capturado e aprisionado (e eventualmente solto mediante o pagamento de uma multa). Como depois seu filho, Wu Wang, conseguiu depor a dinastia Shang-Yin, Wên Wang é considerado o pai da dinastia Chou.

“Tio Ki”: Chi Tzu, tio do depravado imperador Chou Hsin. Apontou os hábitos hediondos do sobrinho e, por causa disso, foi preso. “Lou Tai”, a “Torre do Viado”, foi construída por Chou Hsin para sua amante, T’a Chi (referida no poema como “Tan Ki”), e era um lugar onde ocorriam torturas, orgias etc. Ela foi executada após a vitória de Wu Wang em Mou Ye.

“a filha de Kieou”: Chiu Hou foi um nobre chinês que desaprovava os hábitos do rei Chou Hsin. Ele enviou a filha para aconselhar o monarca, que, no entanto, sentiu-se ofendido. Assim, moça foi assassinada, esquartejada, cozida e servida ao próprio pai como jantar.

“Y-king”: o I Ching teve algumas contribuições escritas por Wên Wang enquanto esteve preso em Yu-li.

“Mou Ye”: o campo de batalha em Honan onde as forças de Chou Hsin (referido a seguir como “Cheou-sin”) foram derrotadas pelo exército de Wu Wang em 1122 a.C. Diz-se que, após a derrota, Chou Hsin ateou fogo ao próprio palácio e morreu nas chamas. Wang, de fato, distribuiu os grãos para o povo após a vitória. Posteriormente, ele mudou a capital para Lo Yang, na porção central do leste da China. Aqui, há um deslize na tradução, pois lemos no original “Lo Yang in the middle Kingdom and its length”, sendo “middle Kingdom” o nome recebido pela China imperial naquele momento. Logo, “Lo Yang no Reino do meio e sua extensão”.

“Tcheou Kong”: Chou kung, duque de Chou, irmão e conselheiro de Wu Wang e regente de seu sobrinho, Chêng Wang. Foi imprescindível no estabelecimento da dinastia Chou. É tido como o inventor do “Coche do Sul”, citado no Canto.

“Tching-ouang”: Chêng Wang, filho de Wu Wang, reinou entre 1115-1078 a.C., o segundo governante da dinastia Chou.

“Chao Kong”: Shao Kung, o duque de Chao, parente e conselheiro de Wu Wang. Kung organizou a coroação do filho deste, K’ang Wang (referido por Pound como “Kang”), que reinou entre 1078-1052 a.C. (o terceiro da dinastia), um governante débil, mas auxiliado por um bom corpo ministerial. Os feitos de Shao Kung são listados mais adiante no Canto (“Honra a Chao-Kong o supervisor” e versos seguintes). Diz-se que ele se sentava sob uma pereira, onde ficava dispensando e “meditando justiça”. Seu filho, Pe Chin (referido por Pound como “Pé-kin” e “Príncipe de Lou”), sucedeu o pai como ministro de K’ang Wang.

“Tchao-ouang”: Chao Wang, o quarto rei da dinastia Chou (reinou entre 1052 e 1001 a.C.). Em seu governo, o país declinou. Morreu afogado ao cruzar o rio Han, após ser derrotado em uma batalha.

“MOU-OUANG”: Mu Wang, o quinto rei da dinastia Chou, governou entre 976 e 922 (ou 918) a.C., célebre por campanhas militares bem sucedidas.

“KONG”: Kong (ou Gong) Wang, filho de Mu Wang, sexto monarca da dinastia Chou, reinou entre c.922 e 900 a.C. A história das três filhas do governador, referida nesse trecho do Canto, foi recontada pelo jesuíta francês Joseph-Anne-Marie de Moyriac de Mailla, que a leu na historiografia clássica chinesa e nos escritos de Sima Qian. Conta-se que, durante uma caçada, o governador do estado de Mi apresentou a Kong Wang suas três filhas. O imperador ficou deslumbrado com a beleza das moças e ordenou ao pai que as levasse ao palácio. O pai, não querendo que as filhas se tornassem concubinas, mandou-as para fora do país. Durante um ano, Kong Wang esperou pelas moças. Por fim, quando se deu conta de que o governador não as enviaria, enviou soldados para sequestrá-las. Quando os soldados não as encontraram, o imperador se enfureceu e ordenou a destruição de Mi, coisa da qual teria se arrependido posteriormente.

“Y-wang”: ou Y-Ouang, filho de Kong e sétimo monarca da dinastia Chou, reinou mediocremente entre 899 e 892 a.C.

“Hiao wang”: oitavo na dinastia Chou, filho de Mu Wang e irmão de Kong, reinou entre 891 e 887 a.C., sendo tão ruim quanto o sobrinho que o precedeu.

“Han-kiang”: aqui, um engano de Mallia. Han é um rio, e Kiang, o antigo nome do Yangtze. Logo, ambos os rios teriam congelado.

“Li WANG”: o décimo monarca da dinastia Chou, reinou de forma tirânica entre 878 e 841 a.C., quando foi deposto por uma revolta popular e exilado. Até sua morte, em 828 a.C., o império foi governado por dois ministros no “Interregno de Cong Ho” ou Regência de Gonghe. Após a morte de Li, seu filho Xuan o sucedeu.

“à ce que l’argent circule”: “que o dinheiro circule”. Advertência de Youi-leang-fou (citado alguns versos depois) ao imperador Li Wang para que não taxasse a pouca prata de que dispunham os mais pobres.

“HEOU-TSIE”: Hou Ji, ministro da agricultura sob o imperador Yao, introduziu o cultivo de painço ou milhete (“Hou Ji”, “Senhor do Milhete”, nome postumamente dado a ele pelo rei Tang, fundador da dinastia Shang).

“Chao-kong”: Shao Gong Hu foi oficial da corte no reinado de Li Wang, durante o interregno e no reinado de Xuan. Era descendente do duque de Shao. Quando Li Wang suprimiu a dissidência de forma violenta, Shao Gong chamou a sua atenção para a ligação entre o bom governo e a liberdade de expressão, comparando esta última com uma torrente que o imperador deveria canalizar para evitar inundações. Li Wang não deu ouvidos a Shao Gong e, poucos anos depois, irrompeu a rebelião camponesa que o destronaria.

“Senhor dos quatro mares”: um anacronismo de Pound, pois, na época de Li Wang, os “quatro mares” (o Mar do Leste, o Mar do Sul, o Lago Qinghai a Oeste e o Lago Baikal ao Norte) ainda não correspondiam aos limites geográficos e imperiais.

“contra barbaros / legat belli ducem Chaoumoukong”: “contra os bárbaros / ele apontou Chaoumoukong como líder na guerra”. E, de fato, Shao Gong Hu venceu os “bárbaros” do Sul em três campanhas militares em 826 a.C.

“Juxta fluvium (…) mora”: “Às margens do rio Huai, a linha de batalha é traçada sem demora”. Pound se fiou nas notas em latim de Lacharme ao Livro das Odes.

“agit considerate”: “age” ou “lidera com deliberação”.

“HAN”: Han Hu, que serviu ao imperador Xuan Wang.

“hac loca fluvius alluit”: “o rio nutre esses lugares”; “Campestribus locis”, “lugares campestres”.

“Senhora Pao Sse”: Bao Si, consorte do rei You Wang (o 12º da dinastia Chou e o último dessa dinastia no Oeste). Terremotos precederam sua ascensão ao poder e, em 29 de agosto de 775 a.C., ocorreu um grande eclipse solar. Bao Si era uma concubina, mas, por ela, o rei depôs a rainha Shen e o príncipe Yijiu.

“TCHEOU caiu”: certa vez, um sentinela pensou que os nômades Quanrong estavam atacando e acendeu um farol de alerta, comunicando a suposta investida à capital. Os senhores que ainda eram leais à corte de Chou acorreram para defender a cidade, quando descobriram tratar-se de um alarme falso. Ao saber do ocorrido, Bao Si caiu na gargalhada. O rei You gostou disso (pois Bao Si tinha um temperamento melancólico, difícil) e passou a acender os faróis de alerta quando queria “animar” a consorte. Com o tempo, é claro, os outros pararam de vir em socorro. Quando, em 771 a.C., os Quanrong atacaram, ninguém apareceu para defender a cidade. Os invasores saquearam a capital, mataram o rei You, capturaram Bao Si e acabaram com a dinastia Chou ocidental. Os nobres da capital foram para o Leste, para Chengzhou, e o império fragmentou-se em principados independentes. Com isso, a dinastia passou a existir apenas no nome.

“Seus Ricardos”: no caso, Ricardo III, que teria assassinado os sobrinhos sucessores do trono. De forma similar, os acólitos da segunda esposa de Wen Kung (Hsuan-kung) tramaram um plano para assassinar os dois filhos da primeira esposa dele.

“Ling Kong”: morto em 608 a.C., foi príncipe de Ch’in. Matava pessoas a troco de nada e apreciava comer patas de ursos. Morreu vítima de uma armadilha que montara para matar alguém em um banquete.

“Nova Urnas de Yu”: os nove vasos de bronze que o imperador Yu gravou com as descrições geográficas de cada uma das (claro) nove províncias do império.

“King Kong”: para evitar distrações, poderia ser traduzido como “rei Kong”. Trata-se de Ching Kung (morto em 578 a.C.), príncipe de Ch’in que se tornou um líder para outros príncipes. Diz-se que, em 548 a.C., ao ouvir um prisioneiro tocar a música dinástica de Chou, ficou tão emocionado que libertou o sujeito e o mandou para casa com vários presentes, o que levou a um pacto de paz. Ele é citado de novo mais adiante: “E disse King Kong ‘Essa ideia é boa doutrina”. No caso, Confúcio disse a ele, depois de perguntado sobre o que tornava alguém um bom governante, que precisava “ser um governante agindo como um governante”. Kung concordou que era um bom conselho, mas que era muito velho para começar a segui-lo.

‘Cheou-lang”: K’ung Shu Liang-ho (falecido em 548 a.C.) era o pai de Confúcio (551-479 a.C.) e magistrado-chefe na província de Shandong. Após ter nove filhas com sua primeira esposa, ele se casou novamente aos setenta anos. Cheng Tsai, sua segunda esposa, deu à luz Confúcio (identificado no Canto como “Kung-fu-tseu”) em 551 a.C. No ano anterior ao nascimento dele, ocorreram dois eclipses do Sol. A história sobre ele segurando a ponte levadiça para que seus homens passassem é repetida ao final do Canto e teria acontecido em 562 a.C. durante o cerco de uma cidade.

“Instruído e o não instruído”: Pound pontuando que, tanto na filosofia confuciana quanto na grega, a virtude é algo a ser aprendido e integra o processo de iniciação.

“Kung e Elêusis”: Elêusis era a cidade na Ática onde os Mistérios Eleusinos de Deméter e Perséfone eram celebrados. A princípio, esses ritos eram parte de um festival agrícola. Com o passar do tempo, passaram a concernir ao mundo ínfero e suas deidades, bem como ao descenso ao Hades e às visões místicas do futuro. Nos Cantos, a frase “entre Kung e Elêusis” é recorrente e assinala os dois extremos entre os quais, no entender de Pound, os valores humanos devem ser fixados: “a vida ética e os mistérios sacros”.

No verso seguinte, “somente aos noviços”, Pound (no original) usa o termo “catechumen”, isto é, “catecúmeno”. Apenas o estudante pode aspirar à ética confuciana e aos mistérios.

“Kung era pobre”: mas, dada a sua reputação, tinha apenas 19 anos quando foi nomeado “supervisor de provisões”. Fez um trabalho tão bom que o promoveram a “supervisor do gado”.  “Pien” era Pien-kuan-chi, mulher com quem ele se casou aos 18 ou 19 anos, c. 552 a.C.

Os ideogramas “Chung Ni” são o cognome de Confúcio e significam “segundo em ordem de nascimento”. “Kung-fu-tseu” é, claro, Confúcio, também referido como Kong Fu-Tzu ou Mestre Kong.

O ano da passagem do cometa seria 525 a.C.

“μεταθεμένων τε τῶν χρωμένων”: “muda o valor do dinheiro”. Aristóteles, Política I, 9.

“Fen-Yang”: Fen Yang, um general e conselheiro de Ching Wang, recusou-se a matar um príncipe indefeso e que nada fizera de errado.

“Então Kungfutseu foi nomeado ministro”: sim, em 497 a.C., quando tinha 54 anos.

“C. T. Mao”: Shao ching-mao vinha causando desordens, foi preso e Confúcio mandou decapitá-lo. Quando questionado pelos discípulos, ele disse que os “cinco tipos” de falsidade e improbidade de Mao tornavam-no pior do que um bandido.

“LOU ascendeu”: o estado cresceu em importância graças ao trabalho de Confúcio. Tanto que o príncipe de Chi, enciumado, enviou garotas para corromper o príncipe de Lou, o que funcionou: ele se trancou no palácio por três dias com as moças. Decepcionado, Confúcio foi embora para o estado de Wei.

“Em Tching”: Ching era um estado feudal no centro-leste da China. Confúcio perambulava nas proximidades da muralha, alguém o viu e disse ao rei que lá fora havia um homem que vagava feito um cachorro perdido, mas o descreveu conforme apresenta o Canto, referindo-se à aparência de grandes imperadores. Confúcio negou que se parecesse com tais homens, e concordou que parecia mesmo um cachorro sem dono.

“Tsai”: estado feudal na província de Honan, no centro-leste da China. De fato, quando Confúcio ia ao encontro do príncipe de Chu em 489 a.C., temerosos de sua sabedoria, os príncipes de Chin e Tsai o levaram para uma aérea desértica e lá o deixaram. Os discípulos, esfomeados e sedentos, desesperaram-se, mas Confúcio cantou e permaneceu tranquilo até que o príncipe de Chu enviou tropas para resgatá-los.

“Tsao” era um pequeno estado que perdurou de 1122 a 501 a.C., cuja derrocada final ocorreu porque o príncipe Yan Kung deu ouvidos a um ministro ruim.

“odes”: em 493 a.C., como seus conselhos eram ignorados pelos príncipes, Confúcio concentrou-se na composição de odes.

“King Ouang”: Ching Wang (não confundir com o homônimo citado antes), 25º monarca da dinastia Chou, reinou entre 519 e 475 a.C., de tal forma que o 40º ano de seu governo foi 479 a.C. — o ano em que Confúcio, aos 73 anos, morreu.

“Min Kong”: Min Kung, morto em 478 a.C., teria criado grande desordem na região.

“Fan-li”: Fan Li, um ministro que trabalhou para diminuir os poderes dos príncipes eternamente em guerra, acabou se retirando para os cinco lagos.

“A neve…”: a desordem estatal espelha a desordem na natureza, simbolizando a derrocada da dinastia Chou. A nevasca teria ocorrido em 435 a.C.; os damascos frutificaram em dezembro de 428 a.C. “Tai-hia” são as altas montanhas (Tai Hsia), e “Hoang-ho” (Hwang Ho) é o Rio Amarelo.

“Kong-sung-yang”: Kung Sung-yang (também conhecido como Wei Yang ou Shang Yang), morto em 338 a.C., foi um ministro de estado em Ch’in. Ele organizou a administração e lançou as bases para que Ch’in derrotasse os rivais e se tornasse o primeiro império chinês.

“Sou-tsin”: Su Ch’in, morto em 317 a.C., filósofo taoísta e ministro do estado de Ch’in. Era um dos filósofos-diplomatas que perambulavam pela região. Foi ridicularizado por um príncipe de Ch’in e, como vingança, criou intrigas e provocou conflitos. Teve um caso com a rainha e foi assassinado.

“Tchan-y”: Su Ch’in, morto em 309 a.C., foi um condottiere que lutou pelos estados de Wei, Ch’in e Chou nas guerras feudais da época.

“POLLON IDEN”: “muitos ele viu”. Excerto da Odisseia I, 3: “as muitas urbes que [Odisseu] mirou e mentes de homens / que escrutinou (…)” (na tradução de Trajano Vieira, ed. 34).

“Tchao Siang”: Chao Hsiang, rei do estado de Ch’in, estava sempre em guerra com outros estados, o que colaborou para a derrocada final da dinastia Chou e a ascensão do império Ch’in. Em 288 a.C., ele se autodeclarou imperador do Oeste (ou Ocidente), ao passo que o príncipe de Chi seria o imperador do Leste (ou Oriente).

“Yo-Y”: ministro do estado feudal de Yen, o qual durou de 1122 a 265 a.C. Onde, no mesmo verso, lê-se “trabalhos obrigatórios”, atentar para o fato de que, no original, Pound usou o termo francês “corvées” (“corveia”).

O ideograma que encerra o poema é “Chou”, relativamente à dinastia de que trata boa parte do Canto.