Canto LXXXI

Canto LXXXI

“Zeus jaz no seio de Ceres”: Ceres (Deméter) é a deusa da colheita. O verso sugere que o verdor e a fertilidade da natureza são a manifestação do poder divino.

“Sargent a havia pintado”: referência à tela “La Carmencita” (1891), de John Singer Sargent (ao lado).

“Bowers”: Claude Gernade Bowers (1878-1958), historiador e diplomata norte-americano, embaixador na Espanha (1933-39). Pound gostava de Jefferson and Hamilton, de Bowers, e escreveu para ele em 1938. Na resposta de Bowers, datada de 10 de maio de 1938, ele menciona “a atmosfera de ódio inacreditável” reinante na Espanha.

“e os vermelhos de Londres”: à época da Guerra Civil Espanhola, Moscou considerava que a segurança das nações aliadas era mais importante do que qualquer outra coisa. A ideia era que Inglaterra, França e EUA ficassem unidos contra a ameaça nazifascista. Assim, a URSS evitava patrocinar revoluções ou ações comunistas que desestabilizassem os outros países. Na Espanha, houve diversos grupos estrangeiros que lutaram contra Franco, mas também havia aqueles que apoiavam o ditador Francisco Franco (1892-1975). Por conta da política de Moscou, esses “amigos de Franco” não eram expostos. V. George Orwell, Homenagem à Catalunha.

“Alcázar”: cidade espanhola visitada por Pound em 1906. Na opinião de Franco, o sangrento certo a Alcázar foi imprescindível para a vitória fascista na Guerra Civil. Talvez, na tradução, o mais indicado fosse usar a preposição “em” em vez de “no Alcázar”.

“Cabranez”: Augustin Cabanès (1862-1928) foi um médico francês, historiador e autor de inúmeras obras de ficção e história. “Basil” é o poeta inglês Basil Bunting (1900-1985). Ele se refere a uma tradição nas Canárias onde as pessoas batiam tambores à exaustão entre a Sexta-Feira da Paixão e o Domingo de Páscoa. “Possum” (“gambá”) é T. S. Eliot. No original, como em outros Cantos, Pound escreve “portagoose” em vez de “portuguese”.

John Adams certa vez observou que ele temia a aristocracia, ao passo que Jefferson temia a monarquia.

“(Para quebrar o pentâmetro…)”: isto é, deixar de lado os ritmos e estruturas poéticas tradicionais e aproximar a poesia da fala coloquial.

“Jo Bard”: o escritor húngaro Josef Bard (1882-1975), que Pound conheceu no final da década de 1920. Ele se casou com Eileen Agar, aquela do “raio solar artificial” (“trick sunlight”) citada no Canto LXXVI (ela colocava uma lâmpada atrás das cortinas amarelas em sua casa, daí o “truque”). Pound visitou o casal em 1938, quando foi a Londres para o funeral de Olivia Shakespear. Foi Bard que apresentou Pound para Frobenius.

“de Maintenon”: Françoise d’Aubigne, marquesa de Maintenon (1635·1719), amante e depois segunda esposa de Luís XIV. Pound e Baird concordavam que, nos romances, pessoas ordinárias como padeiros e porteiros sempre soavam como gente inteligente e sofisticada como a marquesa e o também citado La Rochefoucauld.

“‘Te cavero le budella’ / ‘La corata a te'”: “‘Vou arrancar as suas tripas’ / ‘E eu [vou arrancar] as suas'”.

“Ἶυγξ…. ἐμὸν ποτὶ δῶμα τὸν ἄνδραde”: “Iynx (…) homem para a minha casa!” — o verso é de Teócrito, do “Idílio II”. A Iynx era um disco de madeira com dois furos no meio, nos quais se passava um cordão. Para fazer com que o disco girasse, bastava afrouxar e puxar o cordão. Ele era usado para atrair um amante. Leia o poema completo AQUI.

“Benin”: ref. à cidade e ao rio nigerianos, onde Frobenius (apresentado a Pound por Bard) coletava máscaras e artefatos. A alusão a Frankfurt se deve ao fato de que o Instituto Frobenius se localiza nessa cidade alemã.

“E de início…”: as linhas seguintes derivam de Persons and Places, de Santayana, cujos manuscritos Pound leu em 1940.

“et les quais dévastés à coups de bélier”: “e as docas devastadas a golpes de aríete”.

“Muss” é Mussolini, claro. Ele, de fato, forçava o sotaque da região da qual viera, um traço populista típico.

“e disse que a dor (…) clímax”: Santayana escrevendo sobre o luto da tia pela perda da filha.

“George Horace”: George Horace Lorimer (1868-1937), editor do Saturday Evening Post e vizinho da família Pound em Wyncote. “Beveridge” é o senador Albert Jeremiah Beveridge (1862-1927), apoiador de Theodore Roosevelt e um dos organizadores do partido Progressista em 1912. Ele “não falaria e (…) não escreveria” sobre uma viagem que fizera às Filipinas em 1899, pois queria abordar o tema em seu primeiro discurso como senador. Na verdade, Horace escreveu seis artigos, não “três”, como escreve Pound.

“Althea”: ref. ao poema “To Althea from Prison”, de Lovelace.

“libretto”: assim como o Canto LXXV traz as notas musicais de Janequin, o tom musical desse Canto é sublinhado pela ideia de que se trata de um “libretto”. Nos versos seguintes são citados Henry Lawes (compositor inglês, 1596-1662), John Jenkins (compositor inglês, 1592-1678), Arnold Dolmetsch (1858-1940, multi-instrumentista e pesquisador, crucial no movimento de revivalismo da música antiga), Edmund Waller (poeta inglês, autor de “Song: Go, lovely Rose”, 1606-1687) e John Downland (compositor e alaudista irlandês, 1563-1626).

“Moldaste (…) sombra”: Pound se inspirou na terceira estrofe de “The Triumph of Charis”, do inglês Ben Jonson (1572-1637).

“Ed ascoltando…”: “E ouvindo o gentil rumor”.

“Εἰδώς”: aparência, natureza constitutiva, forma, tipo, espécie, ideia.

“Apreende o teu lugar com o verde universo”: v. Mateus 6, 28-31 (“Olhai os lírios do campo” etc.).

Paquin foi um costureiro parisiense.

“O elmo verde…”: no original, “The green casque”. Creio que a melhor tradução seria “carapaça”, pois é uma referência à vespa que nasce (há outra referência no Canto LXXXIII).

“‘Governa-te que assim…'”: Pound parodia a “Balada do bom conselho”, de Chaucer.

“Blunt”: o inglês Wilfrid Scawen Blunt (1840-1922) foi poeta, diplomata, viajante, defensor da independência da Índia, do Egito e da Irlanda (pelo que foi preso). Foi casado com Lady Anne Blunt (neta de Byron, filha de Ada Lovelace), com quem viajou pelo Oriente Médio e trabalhou na preservação de certas linhagens de cavalos árabes em sua fazenda, Crabbet Arabian Stud. Blunt era muito admirado por Pound.

Canto LXXX

“Não cometi…”: estamos no DTC, e quem fala (Little, Nelson ou Washington) é um dos detentos, “refletindo sobre as fantasias de nossa emergente Θεμις”. Θεμις é Têmis, titânide filha de Urano e Gaia que personificava a lei estabelecida ou ratificada pelos costumes.

“E a morte de Margot…”: o obituário de Margot Asquith (1864-1945) foi publicado pela Time de 06.08.1945, identificada como “a Condessa de Oxford e Asquith” e “a sagaz esposa do primeiro-ministro britânico (1908-16) Herbert H. Asquith, por muitos anos a enfant terrible da sociedade”. Dentre suas “audácias” listadas no obituário, estava o bilhete escrito a lápis “para a rainha Vitória, recusando-se a permanecer em um jantar festivo, a despeito do pedido do rei Edward”. Ela já marcou presença no Canto XXXVIII (referida como “Agot Ipswitch”): certa vez, disse à socialite norte-americana Maud Cunard que a filha desta, a escritora, mecenas e musa modernista Nancy Cunard (1896–1965), mantinha um relacionamento amoroso com Henry Crowder (1890–1955), um jazzista negro, em Paris. Como resultado, Maud fez de tudo para separar o casal: tentou deportar Crowder, contratou detetives para espionar o casal, efetuou ligações ameaçadoras e cortou a mesada da filha. (Nancy é citada mais adiante no Canto.) Asquith queria ver o circo pegar fogo, e Pound gostava muito dela, que encomendava exemplares da revista Blast e teve um retrato desenhado por Gaudier-Brzeska (acima).

“Walter”: Walter Morse Rummel (1887-1953), pianista e compositor alemão muito interessado em canções francesas dos séculos XII e XIII. Pound viveu com ele em Paris por alguns meses. Assim como Michio Ito, Rummel passou por dificuldades financeiras. O sobrenome dele é mencionado alguns versos abaixo, entre parênteses.

“Finlândia”: poema tonal de Sibelius.

“senesco / sed amo”: “envelheço, mas amo.”

“Madri, Sevilla, Córdova”: quando jovem, Pound trabalhou como guia turístico nessas cidades. “Gervais”: marca francesa de laticínios.

“Las Meniñas”: célebre pintura de Velásquez. Pound a viu no Museu do Prado, em Madri, bem como outras que cita nos versos seguintes (“Filipe a cavalo ou não a cavalo”, “anões”, “Don Juan”, “Breda” etc.). “Las Américas” é um bazar em Madri.

“Symons”: o poeta e crítico britânico Arthur Symons (1865-1945), figura importante no desenvolvimento do simbolismo. “Tabarin” era um clube noturno em Montmartre. A história envolvendo Verlaine está na autobiografia de Ernest Rhys, Everyman Remembers (1931), e pode ser que Symons ou Rhys a contou Tabarin. Segundo a anedota, Verlaine dava uma festa no quartinho em que vivia após se restabelecer de uma enfermidade. A certa altura, sacou uma nota de dez francos e pediu a alguém que comprasse uma garrafa de rum. Quando a pessoa voltou com a bebida, como só houvesse um copo, a garrafa foi passando de mão em mão, todos bebendo do gargalo.

“Henrique”: o romancista e dramaturgo francês León Henrique (1851-1935). Flaubert e Turgêniev foram amigos por muitos anos. Terrell sugere que a menção a Tirésias ocorre pela capacidade profética deste; ele como que é invocado no corpo do poema.

A citação em grego não faz sentido, mas parece que Pound está tentando citar a Odisseia X, 494-5 (coloco em itálico o trecho buscado por Pound, mas, para fins de contextualização, cito 489-95; uso, como sempre, a tradução de Trajano Vieira, ed. 34):

(…) Outra viagem haverás
de executar primeiramente, à residência
do Hades e da terribilíssima Perséfone,
a fim de consultar a psique do tebano,
Tirésias, vate cego de epigástrio sólido:
só a ele, mesmo morto, concedeu Perséfone
o sopro da sapiência
. Os outros vagam: sombras.

Assim, o verso seguinte do Canto (“Tem ainda a mente intacta”) também se refere a Tirésias

“(atirarão X——–y)”: referência a Vikdun Quisling (1887-1945), militar e político norueguês que, junto com o alemão Josef Terboven, presidiu a Noruega após a invasão nazista, instituindo, portanto, um governo fantoche que colaborou com o Holocausto. Após a guerra, ele foi julgado, condenado e executado na Fortaleza de Akershus, em Oslo. A palavra “quisling” virou sinônimo de “traidor” ou “colaborador” em vários idiomas.

“Blum”: o socialista francês Léon Blum (1872-1950), primeiro-ministro da França em três oportunidades, foi opositor de Pétain e perseguido pelo marechal. Por muito pouco, não caiu nas mãos dos nazistas (o irmão dele, René, morreu em Auschwitz). O “bidê” que ele defendia talvez fosse o Banco da França, que reorganizou em 1936.

“simplex munditiis”: v. Horácio, Odes I, 5 — “Para quem prendes teus louros cabelos, // tão simples na tua elegância?” (trad.: Pedro Braga Falcão, ed. 34).

O “velho Legge” é o sinólogo e missionário escocês James Legge (1815-1897), editor dos Chinese Classics (sete volumes).

“Tsu Tsze”: Tzu Hsi (ou Cixi, 1861-1908) foi imperatriz da China e governou o país de fato (mas não de jure) por 47 anos (1861-1908). Conhecida como a Imperatriz Viúva (“Dowager”), era uma das concubinas de status inferior do imperador Xianfeng. Em 1856, deu à luz Tongzhi, único filho do monarca. Xianfeng morreu e o garoto se tornou imperador aos seis anos de idade, mas, poucos meses depois, Tzu Hsi chegou ao poder graças a um golpe de estado. Nos primeiros tempos de reinado, tentou combater a corrupção, mas foi engolfada pela ocorrência de vários levantes populares, os quais tratou de sufocar com extrema violência — exceto pelo Levante dos Boxers (ou Movimento Yihetuan, 1900-1), que eventualmente contou com o apoio da imperatriz e foi levado a cabo por uma sociedade secreta de lutadores (a Sociedade dos Punhos Harmoniosos e Justiceiros, Yìhéquán) cujo objetivo era expulsar os estrangeiros do território chinês. A rebelião resultou na invasão da China por milhares de soldados norte-americanos, austro-húngaros, britânicos, franceses, alemães, italianos, japoneses e russos, em uma grande aliança. Os invasores venceram os revoltosos e o exército imperial, além de saquear Pequim e outras áreas do país. Quanto às menções no Canto à caligrafia e outras coisas da imperatriz, Pound as tirou do livro With the Empress Dowager, da retratista e pintora norte-americana Katherine Carl (1865-1938). Em 1903, Carl passou nove meses na China, pintando o retrato da imperatriz para a Feira Mundial de St. Louis (1904).

“‘e serei maldito’ disse Confúcio”: a tradução da fala é literal e o sentido meio que se perde. A referência é aos Analectos VI, 28 (Terrell assinala erroneamente 26): “O Mestre foi ver Nan Tzu. Tzu-lu não gostou. O Mestre jurou: ‘Se fiz algo inapropriado, que o castigo do Céu caia sobre mim! Que o castigo do Céu caia sobre mim!” (trad.: Caroline Chang e D. C. Lau, ed. L&PM). Tzu-lu era um dos discípulos de Confúcio. Nan Tzu (ou Nan-tze) era uma das esposas do duque Ling. O filho deste, K’uai K’ui, achando que a madrasta fora infiel ao pai (e/ou por outras razões não esclarecidas), tentou assassiná-la, fracassou e fugiu para outra província. Nas versões mais cabeludas da história, Nan-tze teria mantido relações incestuosas com um homem chamado Sung Chao ou Sung-tzu Chao, embora muito pouco ou nada se saiba a respeito dele (e, portanto, permanece obscura a natureza do suposto parentesco entre os dois). O mais provável, conforme atesta um ótimo artigo de Siegfried Englert e Roderick Ptak (leia AQUI), é que os boatos envolvendo Nan-tze não passassem de maledicência misógina. Ela seria muito influente junto ao marido, o que causava estranhamento; o fato de que Confúcio foi vê-la é um indício da influência dela junto ao duque (a quem Confúcio desejava aconselhar). Em todo caso, ficam explicados o receio (desconfiança?) do discípulo e a reação de Confúcio, precisando afirmar que nada fizera de errado ao visitar a mulher.

“Nancy”: trata-se de Nancy Cunard, mencionada acima (v. nota sobre Margot Asquith). A referência implícita a Nan-tze (cujo som é similar ao de “Nancy”) sugere que o affair de Cunard com Crowder teve circunstâncias violentas.

“Sr. Hartmann”: o poeta, dramaturgo e crítico de arte norte-americano Sadakichi Hartmann (1867-1944), tido em alta conta por Pound. “Hovey” é o poeta norte-americano Richard Hovey (1864-1900). “Stickney” é o poeta norte-americano Trumbull Stickney (1874-1904). “Loring” é o poeta e jornalista norte-americano Frederic Wadsworth Loring (1848-1871). “Santayana” é o filósofo espanhol Jorge (“George”) Augustín Nicolás Ruiz de Santayana (1863-1952), que nasceu em Madri, estudou e lecionou em Harvard e voltou para a Europa em 1912. Ele e Pound se conheceram em Veneza, em 1919, e se tornaram amigos. “Carman” é o poeta e jornalista canadense Bliss Carman (1861-1929), que passou a maior parte da vida na estrada, cantando seus poemas em troca de comida ou um lugar para dormir.

“Whitman gostava de ostras”: na verdade, em Conversations with Walt Whitman, de Hartmann, este diz que eles comeram lagostas.

“Nenni”: o socialista Pietro Nenni (1891-1980) assumiu um cargo importante no governo pós-Mussolini (de Ferruccio Parri) e queria ser primeiro-ministro. No entanto, dizia uma nota publicada na Time (02.07.1945), o filósofo Benedetto Croce expressou a opinião geral: “Nenni, você não pode ser premier. Primeiro, porque você é Nenni; segundo, porque não entende nada de administração”.

“Tseng”: Tzu Kung, um importante discípulo de Confúcio.

“e quanto ao pobre velho Benito”: nesse trecho, Pound reitera a ladainha de que o “grande” Mussolini foi destruído por aqueles que o cercavam, “todos tão abaixo dele / vagabundos e amateur / ou meros canalhas”. Mais abaixo, “Billyum” é W. B. Yeats.

“Ó mulher formulada como um cisne”: primeiro verso de um poema do irlandês Padraic Colum (1881-1972), muito admirado por Pound.

“Se um homem (…) senador?”: em A Packet for Ezra Pound (1929), Yeats escreveu: “Meu caro Ezra, não seja eleito para o senado do seu país”. Esses versos são a resposta de Pound.

“Palio” é uma corrida de cavalos que ocorre duas vezes por ano em Siena, em 2 de julho (desde 1633) e 16 de agosto (desde 1701).

“giribizzi”: creio que a grafia correta é “ghiribizzi”, “caprichos”. No verso seguinte, “onde está Barilli?” — Bruno Barilli (1880-1952) foi um compositor e crítico musical italiano. Alguns versos depois, “non è una hontrada…”, “não é um distrito, é um condomínio”; depois, “arti”, “guildas; “hamomila de hampo”, “camomila do campo”.

A Osservanza é uma igreja em Siena. Lá, estão muitas esculturas da família de la Robbia, algumas das quais foram destruídas por bombardeios na Segunda Guerra Mundial. Pound fala sobre isso no trecho. O Tempio, em Rimini, também teve a fachada destruída pelas bombas.

“e perto de quê? Li Saou” parece ser uma confusão de Pound com certos caracteres. Assim, segundo Achilles Fang em sua tese de doutorado, esse verso seria o mesmo que “perto de que pinheiros?”, verso (512) que aparece mais para o final do poema (Fang, “Materials for the Study of Pound’s Cantos”, Harvard University, 1958, vols. II, III, IV).

“para esmagar Mussolini”: no original, “to cwuth Mutholini”. Isso teria sido dito por Sir Robert Mond (industrial, químico e arqueólogo britânico, 1867-1938) em um estabelecimento em Roma (rua Balbo, nº 35), em 1935, palavras que Pound entreouviu. Essa mesma fala já aparece no começo do Canto LXXVIII. Trata-se, é claro, do antissemitismo de Pound em toda a sua imbecilidade, pois Mond era judeu. Pound escreveu sobre a ocasião em que teria entreouvido as palavras de Mond em A Visiting Card: “Felizmente, esses porcalhões não têm nenhum senso de proporção, ou o mundo inteiro já estaria sob o domínio racial deles”. “Deles”, isto é, dos judeus. Detalhe importante: para tornar a caricatura mais canhestra, Pound engrola as palavras de Mond (daí o “cwuth” — seria “crush”, “esmagar” — e o “Mutholini” do original, ignorados pelo tradutor); no Canto LXXVIII, ele deforma o verbo ainda mais (“crwuth”), mas mantém o nome de Mussolini intacto.

“Nunca será usado no país (…)”: Lênin teria dito isso (“e está enterrado na Praça Vermelha de Moscou” — sendo que, no original, Pound escreve “Mosq”, não “Moscow”). A mesma fala aparece no Canto LXXIV (embora lá o termo usado seja “usurários”, não “emprestadores”).

“(…) uma ressurreição parcial / de corpos”: ref. concepção medieval da ressurreição no Dia do Juízo. Os saduceus, citados em seguida, eram uma seita judaica contemporânea de Jesus, religiosamente conservadora, urbana, aristocrática, negava a imortalidade e a ressurreição.

“Cairo”: há uma canção do poeta e dramaturgo inglês Thomas Lovell Beddoes (1803-1849) na peça Death’s Jest-Book intitulada “The Song that Wolfram Heard in Hell”, na qual estão os versos: “Old Adam, the carrion crow, / The old crow of Cairo…” (“Velho Adão, o corvo putrefato, / O velho corvo do Cairo…”). Pound tinha Beddoes em altíssima conta. Ele é citado nominalmente em seguida, primeiro pelo sobrenome e depois pelas iniciais “T. L.”, e ainda pela alcunha “príncipe dos papa-defuntos”, pois se ocupava da morte. E Pound escreve: “O osso luz foi seu ponto de partida”. O “osso luz” seria o cóccix. Segundo certa tradição rabínica, o cóccix é o único osso humano que não se decompõe após a morte. Também havia (não entre os judeus, óbvio) a ideia de que, se o osso fosse destruído, a pessoa estaria perpetuamente condenada ao inferno; por essa razão, Amalric (ou, na cabeça de Pound, Erigena) foi exumado. Em Death’s Jest-Book (III, 3), há a menção a esse “osso em forma de semente”, que os “Hebreus” chamam de “Luz”, que, sendo plantado no chão, após três mil anos, fará crescer “a relva da carne”, a “erva daninha sangrenta e possuidora de alma chamada homem”.

Há algumas menções a Eliot no trecho. Quando Pound diz que ele “não deu mais tempo ao Sr. Beddoes”, está se referindo aos versos de “Quarta-feira de cinzas”: “(…) E disse Deus: / Viverão tais ossos? Tais ossos / Viverão?”. Depois, “(e pérolas)” evoca “(Estas são as pérolas que foram seus olhos. Olha!)”, d'”A terra desolada” (trad.: Ivan Junqueira, ed. Nova Fronteira).

“ou o odor de eucalipto ou de / algas cara-de-gato, croce di Malta, figura del sol”: Grünewald quebra o primeiro verso (no original, “of the odour of eucalyptus or sea wrack”), jogando as algas (“sea wrack”) para o verso seguinte. Pound considerava suas sementes de eucalipto uma espécie de talismã, e elas pareciam ter a forma de uma cara de gato, da “cruz de Malta” ou da “figura do sol” (isto é, dos raios).

Hot…“: a voz do sargento do DTC cadenciando a corrida no treinamento. Ideogramas: “como é longe”.

Nos versos seguintes, Pound é surpreendido pela visita de um gato (seu animal favorito), que perambula pela enfermaria (onde ele estava instalado, escrevendo esses versos), fuça nos livros e manuscritos, tenta comer uns caramelos, sobe em uma caixa que usaram para transportar bacon (nela está inscrito o número da remessa, W110090) etc. O “gatinho sobre as teclas” alude à composição homônima (“Kitten on the Keys”) do norte-americano Zez Confrey (1895-1971).

“órgão a vapor via rádio”: no original, “radio steam Calliope”. Calíope é um instrumento musical inventado nos EUA, em meados do século XIX, que usa tubos e apitos (similares ou tirados de locomotivas), e o som  é alcançado usando vapor, gás ou ar comprimido. Ao limar o termo “Calliope”, perde-se a ironia do verso, uma vez que Calíope é a musa da eloquência e da poesia épica, e mesmo assim usaram seu nome para batizar um instrumento musical estridente e horrendo.

“(…) Hino de Batalha da República” e “meus olhos têm” (“mi-hine eyes hav”): os censores do DTC começaram a desconfiar que Pound passava mensagens codificadas para o inimigo por meio dos poemas e ele resolveu sacaneá-los.

“submeta-me por temporis acti”: isso vem de Horácio, Arte Poética 173. O verso é “laudator temporis acti”, isto é, “aquele que tece louvores aos tempos passados”, coisa típica dos velhos que elogiam os tempos idos em detrimento do presente. O verso original de Pound é “put me down for temporis acti”; no contexto, parece-me que “put me down” seria melhor traduzido como algo no sentido de “abater” ou “sacrificar” (no sentido de abater ou sacrificar um animal velho e/ou doente) — “acabe comigo pelos temporis acti”, algo do tipo.

“ΟΥ ΤΙΣ” (a mesma palavra aparece em minúsculas, “ου τις”, “Ninguém” (a forma como Odisseu se apresenta ao Ciclope no Canto IX da Odisseia); “αχρουος”, “sem tempo”.

Ideograma: “Ch’uan”, “cão”.

“Pistoleiro Jones”: oficial no DTC (tenente).

“homem e cachorro”: a constelação Órion e a estrela Sirius, “α Canis Majoris” (localizada na constelação do Cão Maior).

“como naturalmente no oriente se o sujeito no”: o verso interrompido de repente deveria ter o ideograma acima (“cão”) como complemento

“Kuan Chung”: v. Analectos XIV, 18, 2.

“così discesi per l’aer maligno”: “então desci pelo ar maligno”. Segundo Terrell, trata-se do verso que abre o Canto V do Inferno de Dante. Ocorre que, na edição de que disponho, lê-se: “Cosí discesi del cerchio primaio”, “Do círculo primeiro fui descendo” (na trad. de Italo Eugenio Mauro, ed. 34). Talvez seja o caso de que Pound, sem dispor do livro, tenha tentado citar de memória e errou.

“on doit le temps ainsi prendre qu’il vient”: em tradução livre, “devemos aproveitar o tempo que vier”. Terrell identifica esse verso (em francês) como sendo do Inferno V, 86. No entanto, verificando o livro de Dante, lê-se: “diverse colpe giú li grava ao fondo:”, “por vária culpa, às valas abissais”. No entanto, fazendo uma busca online, diversos sites identificam-no como um verso do Rondeaux de Jean Frossart (c.1337-c.1405).

“g.l.”: “gentil leitor”, conforme reiterado no verso seguinte.

“‘a S. Bartolomeo mi vidi col pargoletto, / Chiodato a terra colle braccie aperte / in forma di croce gemisti. / disse: Io son’ la luna.’ / Coi piedi sulla falce d’argento / mi parve di pietosa sembianzza”: em tradução livre, “‘em S. Bartolomeo me vi com o menino, / Pregado no chão com os braços abertos / em forma de cruz e gemendo. / disse: Eu sou a lua’. / Com os pés na foice de prata / parecia-me de aparência lamentável”.

“semina motuum”: “sementes do movimento.” Mais abaixo, “hagoromo” é o nome de uma peça Nō, já citada em outros Cantos.

“Em Éfeso ela se compadecia do ourives”: ela, Diana, a patrona dos ourives. “Actéon”, citado logo abaixo, sofreu a fúria de Diana (v. Canto IV). Neto de Cadmo, ele acidentalmente viu Diana (Ártemis) se banhando em Gargáfia e foi por ela transformado em veado (v. Metamorfoses III, 138-250).

“Fano Caesaris”: colônia romana construída por Otávio Augusto sobre um antigo sítio etrusco. O nome vem de Fano Fortunae, “Templo da Fortuna”. Os Malatesta possuíram o local por um tempo, até ele ser confiscado pelo papa (daí a expressão “olim de Malatestis”, “outrora dos Malatesta”). César Borgia fundou ali uma prensa onde fez livros em grego, latim, hebraico e italiano.

“wan”: Wên (v. Analectos IX, 5, 2), que Pound traduz como “o conhecimento preciso”.

“caritas”: “amor, estima”; “ΧΑΡΙΤΕΣ” (pronuncia-se “Khárites”): “as Graças.”

“Ade du”: trocadilho do alemão “ade du” (“tchau para você”) e o francês “adieu” (da canção de guerra britânica “Tipperay”). Piccadilly é uma praça em Londres, assim como “Lesterplatz” (forma germanizada de “Leicester Square”).

“Bellotti” era o dono de um restaurante italiano homônimo em Londres, frequentado por Pound e seus amigos nas décadas de 1910 e 20.

“‘Não há treva…'”: citação de Noite de Reis (IV, ii, 45-47), de Shakespeare, gravada no pedestal da escultura dele em Leicester Square.

“As coisas que eu poderia contar-lhe, disse ele, da Senhora de X”: Lady Grey, uma das muitas amigas de Eduardo VII (1841-1910) quando ele ainda era príncipe de Gales, e referido em seguida como “o Acariciador”. O “ele” que conta a fofoca é Bellotti.

“Sam Johnson”: o volume das peças de Shakespeare editado por Johnson não tem a fala de Noite de Reis citada acima. No verso seguinte, a citação é de Júlio César III, ii.

“Rubicão”: Sigismundo Malatesta erigiu um pedestal de pedra em homenagem a César em um antigo fórum, no local onde hoje é o Largo Giulio Cesare (próximo do Arco di Augusto).

“H. Cole”: Horace de Vere Cole (1874-1935), amigo do pintor Augustus John, com quem teria se dado o diálogo narrado por Pound. Cole era dado a pregar trotes como os citados no poema.

“passa Napper, Bottom (…) enfermos”: instalado na enfermaria, Pound vê os “trainees” do DTC passando pelo local. Ele usava uma velha Remington para datilografar os poemas.

“Aquiles”: no caso, Achille Ratti (1857-1939), o papa Pio XI.

“velha Kait”: personagem do poema “Ole Kate”, de Alfred Venison (pseudônimo de Pound em meados dos anos 1930).

“sacerdos”: padres. “Ixion” foi um homem da Tessália que cortejou Hera e, por essa afronta, foi condenado por Zeus ao tormento eterno em uma roda no Hades. “Trinácrio de Man”: “Trinácria” era o antigo nome grego para a Sicília. Ele está relacionado à antiga lenda de Vulcano (equivalente romano de Hefesto) solucionando o problema do moto-perpétuo usando uma roda com patas de cachorro como raios, o que remete ao tormento de Ixion. Por fim, o emblema heráldico da Ilha de Man é um tríscele.

“Sauter”: o retratista bávaro George Sauter (1866-1937) viveu em Londres por muitos anos e, a certa altura, ele e Pound foram vizinhos.

“Sarasate”: o violinista espanhol Pablo Martin Meliton Sarasate y Navascues (1844-1908) teve o retrato pintado por James Whistler (também citado no Canto). O violinista belga Eugene Isaye viu o quadro e disse: “Que violino!”, pois o grande destaque ali é mesmo o instrumento.

“ne povans desraciner”: “não podendo desenraizar.”

“Tosch” é um nome de cachorro comum. Por “Tolosa”, talvez Pound se refira a Toulouse, que visitou em 1919.

“Willy” é o escritor francês Henri Gauthier-Villars (1859-1931).

“papa Dulac”: pai do artista francês Edmund Dulac (1882-1953), citado alguns versos antes. Ele (o pai) teria arranjado um lugar para os Pound se hospedaram em Toulouse e lhes oferecido várias refeições.

“Dolmetsch””: o músico e fabricante de instrumentos francês Arnold Dolmetsch (1858-1940).

“Il est (…) pain”: “Tão bom quanto pão.”

“Mockel” (Albert Mockel, 1866-1945) era um poeta simbolista belga, fundador e editor de La Wallonie, uma revista cultural publicada em Liège por H. Vaillant-Carmanne de junho de 1886 a dezembro de 1892. Foi uma publicação importante para divulgar o simbolismo. A Dial era uma revista cultural norte-americana publicada intermitentemente entre 1840 e 1929. Em sua primeira leva (1840-44), era um veículo do movimento transcendentalista. Na segunda (1880-1919), passou a publicar textos políticos e literários. Por fim, entre 1920 e 29, foi importante divulgadora do modernismo. Pound se lembra de Mockel tentando fazer com que “Willy” colaborasse com a Dial.

“Les moeurs passent et la douleur reste.”: “A moral passa e a dor permanece.”

“a loja de velharias de Judith”: Judith Gautier (1850-1917), poeta e romancista francesa, filha de Theóphile Gautier. Única mulher membro da Académie Goncourt. A “loja de velharias” era o apartamento dela.

“Ca s’appelle…”: “Isso é chamado de sótão.”

“Rua Jacob”: onde viveu a dramaturga, poetisa e romancista norte-americana Natalie Barney (1876-1972) por mais de seis décadas. Em sua casa, realizou por muito tempo um salão literário. “à l’Amitié” (“à amizade”) refere-se a um pequeno gazebo dórico que ficava no jardim de Barney e que ela chamava de “Temple à l’Amitié”. Sendo amigo dela, Pound convenceu Barney a ajudar diversos escritores em dificuldades. O “M. Jean” referido no verso seguinte é Jean Cocteau (mencionado adiante como “Monsieur C.”).

“apache”: membro de um grupo de dança que tratava muito mal a parceira, daí Barney dizer que ele era muito malcriado. Grünewald erra o gênero da parceira de dança em questão, que diz: “Olha, ela está te dizendo”. “jambe-de-bois” é “perna-de-pau” (literalmente).

“Entrez (…) monde”: “Entre, vamos, vá em frente / essa casa é de todo mundo” — Barney recebendo Pound e o editor e produtor teatral norte-americano Horace Liveright em sua casa “perto do Natal” (“vers le Noël”).

“ce sont les moueurs de Lutèce”: “essas são as morais de Lutèce” (Lutetia Parisiorum era o antigo nome de Paris). Alguns versos depois, “Tio William” é Yeats.

“o herdeiro da tinta”: o pintor norte-americano Eugene Ullman (1877-1953), cujo pai fabricava tinta para impressores. Ullman pintou um retrato de Pound em 1912 (ao lado).

“vous allez (…) toile?”: “vai barbear uma tela?” — Terrell conta que, segundo Pound escreveu em uma carta de 1955, em 1912 as autoridades acharam que três telas de Eugène Carrière eram “muito nuas” e pediram que fossem retocadas. O pintor Carolus-Duran (mencionado pouco antes no Canto) passava por ali quando Carrière fazia os retoques, deitando umas pinceladas em cor pastel, e fez aquela pergunta. O problema é que isso não poderia ter acontecido em 1912, pois Carrière morreu em 1906. Teria sido em 1902?

“Quand vous serez…”: “Quando você estiver muito velho” — verso dos Sonnets pour Helene (1578), de Ronsard.

“mit Schlag”: “com chantilly”; o “café” mencionado em seguida e mais adiante (como “Wiener Café”) é o Vienna Café, na rua Oxford, em Londres. Seus donos eram austríacos. Com o início da Guerra, tornaram-se malquistos (eram o “inimigo”) e o café eventualmente fechou, dando lugar a um banco. Wyndham Lewis e Pound se encontraram lá pela primeira vez por volta de 1910. “Jozeff”, citado mais adiante, era provavelmente um garçom que trabalhava no café e voltou para casa.

“Binyon”: Laurence Binyon (1869-1943), poeta, tradutor de Dante, especialista em arte oriental, trabalhava no Museu Britânico. Pound gostava muito de um livro dele intitulado Flight of the Dragon (1911). “Penthesileia” é o título de um poema narrativo de Binyon sobre o qual Pound ouviu de uma das filhas do autor.

“Netuno”: apelido do poeta e artista britânico Thomas Sturge Moore (1870-1944). Em seguida, Pound remete aos versos de abertura do poema The Rout of the Amazons (“Laomedon…”).

“Sr. Newbolt”: versos (“Ele ficou…”) de “A Ballad of John Nicholson”, do poeta inglês Henry John Newbolt (1862-1938), cujas inversões Pound não suportava.

“meum est propositum (…) in tabernam”: “minha intenção (é morrer) em uma taverna.”

“‘perdidos’, disse o Sr. Bridges (…) de volta'”: reação do poeta inglês Robert Bridges (1844-1930) ao ler Personae e Exultations, elogiando os arcaísmos e prometendo trazê-los de volta, para horror de Pound.

“Furnivall” e “Dr. Weir Mitchell”: Frederick James Furnivall (1825-1910) foi um acadêmico e filólogo inglês, editor do dicionário Oxford. O médico Mitchell (1829-1914) era da Filadélfia e Pound o conhecia e aprovava seus projetos culturais, como o dicionário Chaucer. Foi Mitchell quem cunhou a expressão “membro fantasma” para descrever a sensação de pessoas com membros amputados. Alguns versos abaixo, o “velho William” é, de novo, W. B. Yeats. Mais adiante, “ou o seu, de William, velho ‘da'” refere-se a John Butler Yeats (1839-1922); há, ali, uma cochilada do produtor, uma vez que “da”, corruptela de “dad”, deveria ser traduzido como “papa” ou coisa parecida. J. B. viveu por alguns anos em Nova York, e Pound o teria visto em Coney Island montado em um elefante, conforme contou em uma carta de 1915 para o advogado e colecionador de arte John Quinn (1870-1924), figura importantíssima na defesa da liberdade de expressão e defensor das vanguardas e do modernismo (lutou contra a censura e outras leis retrógradas).

“‘Líquidos e fluidos!’ / disse a quiromante”: o velho J. B. Yeats temia que o filho fugisse com uma dançarina, e então começou a temer que ele não fugiria com ninguém e passou a frequentar quiromantes e afins para descobrir sobre que chances teria de se tornar avô. Sabemos dessa conversa por conta do volume Passages from the Letters of John Butler Yeats, Selected by Ezra Pound, editado em 1917.

Warren Dahler era um pintor que Pound conheceu em Nova York no começo da década de 1910. Ele teria descoberto um lugar chamado Patchin, onde E. E. Cummings também viveu por muitos anos. “Hier wohnt”, “aqui vive” (a tradição, assim como antes ela vivia em Camden, quando Whitman lá estava).

“596 Av. Lexington”: antigo endereço da avó materna de Pound, Mary Weston, em Nova York. O outro (“24 E. 47ª”) é o endereço de uma pensão do tio-avô de Pound, Ezra B. Weston, e da esposa deste, Frances Amelia Weston ou tia Frank, logo abaixo referida como “Tia F.”. Pound viveu nessa pensão quando garoto. “James” é o criado negro dessa tia, e ela se refere ao Hotel Windsor, destruído em um incêndio em 7 de março de 1899.

“Alma-Tadema” é Sir Lawrence Alma-Tadema (1936-1912), pintor inglês que vivia perto do Regent’s Park, em Londres. A “Leighton House” era a residência de Frederick, Lorde Leighton (1830-1896).

“Selsey” é uma cidade no litoral sul da Inglaterra onde Ford Madox Ford e Violet Hunt viviam (Pound costumava visitá-los lá). É Ford (depois referido como “Fordie”) quem conta a anedota sobre Swinburne. As aspas são de uma criada: um cocheiro bateu à porta e disse que o patrão dela estava na carruagem, bêbado.

“Tennyson”: comentário jocoso de Pound sobre quando Tennyson teria começado a escrever para “os ouvidos ignorantes de Viccy (Victoria)”.

“Mis Brandon”: Mary Elizabeth Brandon (1837-1915), autora prolífica e bastante rica. Ford, sendo pobre, maravilhava-se com a riqueza, chamando a atenção de Pound para a decoração da casa de Brandon.

“Périgueux”: capital da Dordogne, na França. A catedral lembrava Pound dos arranha-céus de Nova York.

“‘si com’ ad Arli'”: citação do Inferno IX, 112 (“sí come ad Arli”), “Como em Arles”. Assim Dante descreve as muralhas da “Cidade de Dis”. A referência ao “sarraceno” se dá porque as muralhas de Dis cercam um cemitério, e em Arles está o Aliscans (“Alyschamps”, Campos Elíseos), cemitério dos guerreiros que enfrentaram os sarracenos.

“Borr” é a pronúncia dialetal de Born, antiga cidade em Périgord. É, claro, a cidade do trovador Bertran de Born (1140-1215), barão do Limousin, cuja família se mudou para o castelo de Altafort (Hautefort) quando o irmão dele se casou com alguém da família Delastours.

O “tio Jorge” é o congressista George Holden Tinkham (1870-1956), com quem Pound visitou o Monte Grappa, perto do rio Piave. “Volpe” é Giuseppe Volpi (1877-1947), 1º Conde de Misurata, político e empresário italiano, ministro da economia de Mussolini (1925-28).

“Florian”, um café na Praça de São Marcos, em Veneza. “Sir Ronald”: Ronald Storrs (1881-1955), administrador e historiador britânico. O “Negus” era o título de Hailé Selassié (1892-1975), soberano da Etiópia.

“Alexandria”: Pound foi a Tânger com sua tia Frank em 1898. Ele se lembra, então, do romance Moscardino, de Enrico Pea (1881-1952), que traduziu para o inglês.

Pound gostava muito da sonoridade da poesia de Whitcomb Riley (1849-1916).

“Nancy” é a poeta e patrona das artes Nancy Cunard (1896-1965). Grünewald traduz diretamente alguns termos nesse trecho (“veir” por “peles nobres”; “cisclatons” por “sedas de ouro”). O verso “Whither go all the vair and the cisclatons” é uma referência a uma passagem do capítulo 6 de Aucassin and Nicolette (do século XII ou XIII); Pound apreciava a tradução de Andrew Lang.

“Que tous (…) lune”: “Que todos os meses temos uma nova lua.”

“Herbiet”: em 1921, usando o pseudônimo “Christian”, o poeta francês Georges Herbiet traduziu “Moeurs Contemporaines”, de Pound, para o jornal dadaísta 391.

“de mis soledades vengan”: “de minhas solidões venham” (de um poema de Lope de Vega).

“ficado lá até que Rossetti (…) dois pence”: o poeta e pintor inglês Dante Gabriel Rossetti (1828-1882) encontrou em um sebo cópias raras de Rubáiyát of Omar Khayyám, a célebre antologia de poemas persas traduzidos por Edward FitzGerald, por dois pence.

“Cythera”: aqui é o planeta Vênus, visto ao lado de uma lua crescente.

“Les hommes (…) beauté”: “Os homens têm não sei que medo estranho (…) da beleza.”

“Arthur” é Arthur Symons (1865-1945), poeta e crítico britânico, autor de The Symbolist Movement in Literature. A citação é de um poema dele, “Modern Beauty”.

“βροδοδακτυλος ‘Ηως”: a expressão em grego é a homérica “aurora de dedos róseos”; logo abaixo, “Kύθηρα δεινα”, “terrível Citera”.

No trecho seguinte, todos os pintores citados (Botticelli, Sellaio, Rembrandt etc.) retrataram Vênus.

“‘Isto apenas (…) τυ παν'”: o filósofo neoconfuciano Chu Hsi (1130-1200) comenta sobre o início de Chung Yung. A expressão em grego significa “o todo”.

Marie Laurencin (1885-1956) foi uma pintora francesa. “Miss Alexander” é Cecily Henrietta Alexander, retratada por Whistler em “Harmony in Grey and Green: Miss Cicely Alexander” (1872-4). Ela era filha de um banqueiro londrino e tinha oito anos de idade quando Whistler pintou seu retrato. (Terrell cita erroneamente o nome da tela como “Arrangement in Grey…”.

“(e as três damas gordas de Sargent, ao contrário)”: o pintor norte-americano John Singer Sargent (1856-1925) fez várias telas com três mulheres juntas, mas nenhum delas apresenta “três damas gordas”.

“Rodenbach”: Georges Rodenbach (1855-1898) foi um poeta belga associado ao movimento simbolista. Seu retrato foi pintado pelo francês Lucien Lévy-Dhurmer (1865-1953) e, nele, a ponte ao fundo parece ter lembrado Pound da Petit Pont, também chamada de Ponte de Abelardo (daí a menção a ele logo depois). “L’Ile St. Louis”, por sua vez, é uma das ilhas do rio Sena, em Paris.

“παντα ‘ρει”: “tudo flui” (Heráclito).

“como ele caminhara sob os altares da chuva (…) parapeitos”: Analectos XII, 21.

“Spencer”: instrutor de Pound na Cheltenham Military Academy. “Bill Sheperd” (William Pierce Shepard) foi professor de Pound no Hamilton College.

“νπερ μσρον”: “além do que é destinado” (fórmula recorrente em Homero). A ilha atacada é provavelmente Ismarus, dos cícones (v. Canto LXXIX e Odisseia IX, 39ss.).

“Je suis (…) forces”: “Estou no limite das minhas forças” (segundo Wyndham Lewis, frase sempre repetida pelo dono do Golden Calf Nightclub, em Londres).

“portões da morte”: no caso, os portões do DTC. Pound cita Jó 38, 17: “Foram-te indicadas as Portas da Morte, / ou viste as portas da sombra da morte?”. Em seguida, as referências a Whitman e Lovelace dizem respeito aos versos coligidos por Morris Speare no Pocket Book Of Verse (Pound encontrou um exemplar na latrina).

“quanda a balsa partiu”: Odisseia V, 365-69.

“Immaculata (…) saeculorum”: da preparação da missa católico-romana. “Imaculada, eu entro”; as santas Perpétua, Agatha e Anastasia. A expressão completa é “in saecula saeculorum”, “nos séculos dos séculos”. Na estrofe seguinte, “repos donnez à cils”, “dê descanso àqueles”; “senza…”, “atos sem fim”; “Les larmes (…) Tristesse”, “As lágrimas que criei escorrem / Muito, muito tarde conheci minha tristeza” (Villon, “Grand Testament” – tradução livre a partir da versão em inglês de Terrell).

“hieri”: ontem; “K.P.”: “Kitchen Patrol”, “Patrulha da Cozinha”. Pound lista soldados e oficiais do DTC chamados a trabalhar na cozinha ou na lista de enfermos.

“labirinto do subterrâneo”: no original, “labyrinth of souterrain”, com a palavra em francês.

“Carleton”: Mark Alfred Carleton (1886-1925) foi um botânico e cerealista norte-americano que introduziu trigos vermelhos duros e trigos duros da Rússia nas plantações dos EUA, aumentando enormemente a produtividade. Ele também foi muito bem sucedido no combate às pragas. Em 1901, o governo francês reconheceu seu trabalho com o Chevalier du Merite Agricole.

“o. t. a.”: “of the army”, “do exército”.

“Oh estar na Inglaterra (…) foi”: paráfrase rítmica de “Home-Thoughts, from Abroad”, de Robert Browning. A derrota de Churchill em 1945 foi um choque e tanto, e os trabalhistas liderados por Attlee trataram de nacionalizar o Banco da Inglaterra.

“Olhar por um instante (…) esquecida”: Pound e Dorothy visitaram uma torre na Lacock Abbey, em Salisbury Plain. Lá, eles engatinharam até o extremo do teto e viram uma cópia empoeirada da Magna Carta mantida dentro de uma espécie de redoma de vidro. Provável que se tratasse de uma “Exemplification of Henry Ill’s reissue of Magna Carta, 1225”.

“a primeira de João”: a Magna Carta é o documento assinado, em 1215, pelo rei João Sem-Terra (1166-1216), sob pressão da nobreza e do clero. Ela limitou os poderes do monarca, que renunciou a certos direitos e passou a observar procedimentos legais, reconhecendo que sua vontade estaria sujeita à lei. Ele escreve: “e ainda lá”. Na verdade, em 1945, Miss Matilda Talbot levou a carta para o Museu Britânico, onde está até hoje. Os Talbot eram da família Shakespear, e Charles Talbot (citado alguns versos depois) era sobrinho de Dorothy Pound. Ele herdara Lacock Abbey e a deixara para a sobrinha, Matilda. Endividada, ela teve de vender diversas obras de artes e documentos históricos, como a Magna Carta.

“se o dinheiro ficasse livre (…) impostos”: no entender de Pound, o governo Attlee estava numa encruzilhada: ou tornava o dinheiro “livre de novo” (nacionalizando o Banco da Inglaterra) ou devolvia tudo aos conservadores (como Chesterton).

“Quando um cão em altura…”: os ritmos dessa estrofe são inspirados em várias composições do século XV que Pound encontrou no Pocket Book of Verse editado por Morris Speare.

“uma porca com nove filhotes”: a tradução perde o efeito original de “a sow with nine boneen”, sendo “boneen” (baneen, bainin) uma expressão irlandesa para designar uma ninhada de porquinhos.

“Claridge” é um hotel chique na Brook Street, no West End londrino. Por sua vez, o escritor inglês Maurie (Maurice) Hewlett (1861-1923) vivia em Salisbury.

“o verde aquilófilo”: no original, “the green holly”. Citação de Como gostais (II, vii), de Shakespeare.

Na “planície de Salisbury”, há vários monumentos históricos (como Stonehenge).

“Lady Anne”: Lady Anne Blunt (1837-1917), neta (pelo lado materno) de Lorde Byron, filha de William King-Noel e de Augusta Ada Byron (Ada Lovelace, matemática, tida como a primeira programadora da história), esposa do poeta W. S. Blunt e grande criadora de cavalos árabes.

Pound associa erroneamente o porto francês Le Portel com Swinburne, que dramatizou o assassinato de David Rizzio, secretário da rainha Mary Stuart (“La Stuarda”).

“Si tuit li dohl (…) os leopardos e as giestas”: “Se todos os pesares, e os lamentos, e a dor” — do lamento de Bertran de Born pela morte do rei Henrique, o Jovem (1155-1183). A luta pelo poder na Casa de Plantageneta entre Leonor de Aquitânia e seu, marido Henrique II, levou os filhos a tomarem partido. Henrique, o Jovem, era o primogênito e foi coroado em 1170 para governar ao lado do pai. Ricardo Coração de Leão, o caçula, declarou guerra contra os dois. Em “Sestina: Altaforte”, poema de Personae, Pound identifica o leopardo como o device de Ricardo (só posteriormente, na Guerra das Rosas, é que as cabeças de leopardos foram associadas à Casa de York, assim como as giestas (plantagenetas) eram identificadas com os Lancaster). O poema foi traduzido por Mário Faustino na antologia Ezra Pound – Poesia (ed. Hucitec/UnB, 1993).

“Tudor”: a família real que governou a Inglaterra entre 1485 (Henrique IV) e 1603 (quando Elizabeth I morreu). O padrão rítmico dessa estrofe vem do Rubaiyat de Edward Fitzgerald, que Pound também encontrou no livro de Speare. “Vermelho-sangue” e “branco-pálido” referem-se, claro, aos Lancaster e aos York, antagonistas na Guerra das Rosas (1455-85).

“Howard” é Catherine Howard (c.1521-1542), quinta esposa de Henrique VIII; “Boleyn” é Ana Bolena (c.1507-1536), a segunda esposa, mãe de Elizabeth I.

“Serpentine” é um lago curvo no Hyde Park, próximo de Kensington. Pound viveu próximo dali por uns tempos.

“couturier”: estilista, costureiro. No caso, o crepúsculo (simbolizando a natureza como um todo) é o “grande estilista”.

Canto LXXIX

“battistero”: batistério (em uma igreja que Pound visitou em Pisa, talvez).

“não penses que ganharias”: o “tu” é Dorothy Pound ou Olga Rudge.

“Nem te teria amado (…) feminino”: paráfrase do poema “To Althea from Prison”, de Richard Lovelace. Leia AQUI.

“Salzburg”: de uma matéria na Time (27.08.1947) sobre a reabertura do Festival de Salzburgo. A maior parte da plateia era de soldados norte-americanos.

“Amari-li”: de “Amarili, mia bella” (1602), canção de Giulio Caccini (que inventou a ópera junto com Jacopo Peri por volta de 1600).

“e o cabelo dela (…) trinta”: Constanze Weber, esposa de Mozart. Quando ele morreu, em 1791, ela de fato ainda não tinha chegado aos trinta anos de idade (nasceu em 5 de janeiro de 1762).

“Astafieva”: Serafina Astafieva (1876-1934), dançarina e professora russa. “Wigmore” é uma galeria londrina.

“G. Scott”: um “trainee” do DTC. “G. P.”: Giorgio Paresce, fascista italiano, conhecido de Pound.

“Où sont”: “Onde estão?” — no caso, onde estão os ex-seguidores de Mussolini?

“14 e 13”: Pétain foi condenado à prisão perpétua. A votação relativa à pena de morte foi apertada: 14 a 13 pela não execução.

“Scott / Whiteside”: prisioneiros no DTC. “Mr. Allingham”, citado alguns versos depois, era um “trainee” no mesmo local.

“8 pássaros”: a canção de Janequin (v. Canto LXXV) ganha uma ilustração visual no decorrer deste Canto. “Bechstein” é uma marca de piano.

“principal papal”: relativo a algo que Pound vê do lado de fora de sua tenda; “castrum romanum”: forte romano. O termo “castrum” designava qualquer edifício ou área que os romanos utilizavam como acantonamento ou posição defensiva. Esses fortes eram construídos sempre com o mesmo desenho retangular, com duas vias principais (o cardo máximo, norte-sul; e o decúmano máximo, leste-oeste), sendo que o fórum ficava na intersecção dessas vias. Várias povoados nasceram de fortes assim e se desenvolveram como cidades ainda existentes (como Castres e Barcelona).

“entrou (…) inverno”: paráfrase do final do Livro I das Guerras Gálicas, de Júlio César.

“Hagoromo” e “Kumasaka” são peças Nō (v. Canto LXXIV).

“Ismarus dos Cícones”: v. Odisseia IX, 39ss. Na tradução de Trajano Vieira (ed. 34), “cíconos”. Eles eram uma tribo trácia cuja fortaleza era a cidade de Ismara, no sopé da montanha homônima, e foram aliados dos troianos. Odisseu e seus companheiros tomam a cidade de assalto, matam a maioria dos homens, tomam as mulheres e promovem saques e pilhagens. No entanto, são surpreendidos por um contra-ataque e batem em retirada rapidamente, sofrendo muitas baixas. Depois de zarpar, também se veem em meio a uma tormenta, e navegam às cegas por nove dias. No poema, Pound faz referência justamente à loucura da empreitada (Odisseu e cia. são uns “damn fools”, “tolos malditos”, no original).

“e poi basta”: “e depois mais nada.”

O primeiro ideograma é Tz’u, “palavras, discurso, mensagem”. O segundo, “Ta”, “inteligente para apreender”.

“então qual o nome dele”: Guido d’Arezzo (992-1050), que criou a notação musical moderna, o tetragrama, e batizou as notas musicais com os nomes que conhecemos hoje (dó, ré, mi etc.). Pound lembrará o nome “desse bastardo” logo mais.

“paar teu djipe adiante”: a voz de um sentinela japonês dizendo onde os dignitários podem estacionar será entreouvida no decorrer do poema.

“San Stefano…”: igreja em Pisa repleta de bandeiras e troféus turcos e árabes, símbolos das vitórias dos Cavaleiros de Santo Stéfano.

“Attlee” / “Ramsey”: o trabalhista Clement Attley (1883-1967) foi primeiro-ministro britânico e estatizou o Banco da Inglaterra em 1946 (daí Pound simpatizar com ele); James Ramsey MacDonald (1866-1937), outro trabalhista que também foi primeiro-ministro, aliou-se aos conservadores na crise econômica de 1931 (dai Pound vê-lo como um traidor).

“em menos (…) geológica”: de uma carta de Mencken para Pound, de 1937, na qual ele diz que a reforma monetária colide com a natureza humana, e que levaria pelo menos uma era geológica para convencer as pessoas a perpetrarem qualquer mudança sistêmica.

: “inclinação moral” ou “força cultural”, segundo Terrell. A conferir.

“Wilkes”: John Wilkes (1727-97), prefeito de Londres com tendências que poderíamos chamar de populistas.

“caesia oculi”: “olhos cinzentos.”

“brilhantes” (referência à descrição homérica de Atena, “olhos glaucos”?).

“chiacchirona”: “cacarejante.”

Primeiro ideograma: Huang, “pássaro”; segundo ideograma: Niao, “amarelo”; terceiro ideograma: Chih, “descansa”.

“si come (…) dispitto”: Dante, Inferno X, 36 — Farinata degli Uberti (1212-1264), aristocrata italiano, líder militar da facção gibelina em Florença, tido como herege. Ao encontrá-lo no Inferno, Dante descreve a postura de alguém que ergue a cabeça, “como tivesse o inferno em grão despeito” (na tradução de Ítalo Eugenio Mauro, ed. 34). Sobre Farinata, v. Canto LXXVIII.

“Capaneus”: um dos sete contra Tebas. Desafiou a ordem de Zeus e tentou escalar a muralha; foi atingido por um raio. Dante o coloca no Inferno junto com os blasfemadores (v. Inferno XIV, 43ss).

feconda”: “terra fecunda.”

“cada qual em nome de seu deus”: de novo, como no Canto anterior, Miqueias 4,5.

“menta, timo e basílico”: plantas associadas ao paraíso na Comédia.

“Ye-en-mi”: As Youanmi Gold Mines Ltda. promovidas em 1912 pelo presidente dos EUA Herbert Hoover.

“Sr. Keith”: provável que o pintor norte-americano William Keith (1838-1911).

“Lince”: felino sagrado para Dionísio. No restante do poema, esses refrões líricos funcionam como uma prece a esse deus, mas tendo uma mulher específica (Dorothy? Olga? Bride Scratton? Não importa) em mente.

“Manitu”: nome que o povo algonquin dá ao poder natural que permeia todas as coisas. “Khardas” é uma provável alusão ao burro do poema épico persa Shah Nameh, de Firdausi.

“Prepare-se…”: da Odisseia X, 450.

“Lydia”: Lydia Yavorska (1874-1921), atriz russa que viveu e trabalhou em Londres. Foi ela quem provavelmente contou a Pound a história do carrasco. Ela é referida alguns versos depois como “Princesa Bariantinsky”, pois foi casada com o príncipe Vladimir Bariantinsky.

As “caudas de peixe” são as sereias, claro. A expressão citada em grego, “em Troia”, é da canção delas (v. Odisseia XII, 189-90).

“Silenus e Casey”: Silenus, um sátiro companheiro de Dionísio; Casey era um cabo no DTC. As “bassárides” são as bacantes (tal como as chamavam os trácios). Melíades: três ninfas (v. Canto III).

Salazar, Scott e Dawley eram “trainees” no DTC. A julgar por esse verso e pelo seguinte, muitos “trainees” (sobretudo os negros) tinham nomes de presidentes ou políticos importantes. Sobre as “retaliações” de Calhoun, elas serão abordadas nos Cantos LXXXVII-LXXXIX.

Mais abaixo, em grego, “Salve, Iacchos! Salve, Cythera!” (respectivamente, Dionísio e Afrodite). O termo “Iacchos” é repetido mais adiante (logo depois do verso “Ó lince, afasta a phylloxera de minhas vinhas”), com o adendo: “rejubile!”. (Em tempo: a filoxera é um inseto da família Phylloxeridae, similar aos pulgões, sugador de seiva e dependente das vinhas. No século XIX, a filoxera provocou uma crise sem precedentes na produção mundial de vinho, forçando inúmeras mudanças nas vinicultura.

: “tende piedade”. Repetição logo em seguida, com um adendo: “Kyrie eleison” (“Senhor, tende piedade”).

“Não coma delas…”: Koré (Perséfone) comeu as sementes de romã oferecidas por Dis (Hades) e, por isso, Zeus determinou que ela passasse parte do ano no mundo ínfero.

: “filha” (no caso, Perséfone, filha de Deméter).

“Pomona” é a deusa romana da abundância e dos pomares.

“crótalo”: espécie de címbalo ou castanhola. As bassáridas usariam crótalos de chocalhos de cascavel, mas, em geral, eles eram feitos de madeira, um pedaço de caniço ou junco cortado ao meio. O termo aparece duas vezes no Canto. Na primeira vez (“Há um som pela floresta / de leopardo ou de bassárida / ou crótalo ou de folhas se movendo”), dado o uso da conjunção “ou”, parece ser uma alusão ao som peculiar da cascavel; na segunda (“Kuthera, aqui estão linces e o estalido de crótalos”), dado o que é dito no contexto (mais abaixo: “Melíade e bassáride entre linces”), fica bem claro que se trata do instrumento musical.

: “de olhos glaucos” (epíteto de Afrodite).

: “ichor”, o líquido que corre nas veias dos deuses, a princípio imaginado como algo distinto do sangue dos mortais.

“Kalicanthus”: Calycanthus é um gênero de flores pertencentes à família Calycanthaceae. A espécie mais conhecida talvez seja a carocha (Calycanthus floridus), de cor vermelha bem escura e perfume acentuado.

No verso “As Graças conduziram…”, o termo grego é “Afrodite”. Alguns versos depois, temos Ἥλιος, “Hélio veio para a nossa montanha”. Nos versos finais do Canto, todas as palavras em grego dizem respeito a Afrodite: “Tu és assustadora”; “Filha e Delia e Maia” (filha = Perséfone; Delia = Ártemis/Diana; Maia = mãe de Hermes); “Cyprus Afrodite” (pois o Chipre era tido por alguns como o local de nascimento da deusa e um de seus mais importantes locais de culto); e, por fim, “Cythera” (“Citereia”, em referência à ilha de Citera, onde a deusa também era muito cultuada).

Canto LXXVIII

“Ida”: Terrell supõe que alguma discussão no DTC, com várias pessoas falando ao mesmo tempo, remeteu Pound ao Julgamento de Páris. Ao mesmo tempo, ele também parece ironizar o tratado de paz (“pax mundi”) assinado por Vittorio Emanuele e os Aliados.

“ter flebiliter, Ityn”: “três vezes, lamentavelmente, Ítis”. Pound revolve Horácio, “Ityn flebiliter gemens” — “Em pranto gemendo por Ítis faz o ninho / a infeliz ave que, por ter se vingado em funesta hora / da bárbara devassidão de um rei, a eterna vergonha / da casa de Cécrops se tornou” (grifo meu). É a segunda estrofe da Ode IV, 12 (em Horácio, Odes. Tradução: Pedro Braga Falcão. São Paulo: Editora 34, 2021). O mesmo verso aparece no Canto IV.

“(…) Janus bifronte / o bastardo de duas faces”: Pound insiste na ladainha exposta no canto anterior sobre como os verdadeiros culpados pela derrocada do regime fascista foram os corruptos como Ciano, o genro de Mussolini (que, de fato, não se opôs à destituição do sogro operada pelo rei). Ciano e Jano (“Giano”) têm sonoridades muito parecidas em italiano, e “o bastardo de duas faces” não deixa qualquer dúvida sobre o alvo dos xingamentos.

“Napoleão (…) Mussolini”: as aspas são de Sir Robert Mond (industrial, químico e arqueólogo britânico, 1867-1938), algo que Pound teria entreouvido em um estabelecimento romano (rua Balbo, nº 35), em 1935. A mesma fala reaparecerá no Canto LXXX. Eis o antissemitismo de Pound em toda a sua estupidez (Mond era judeu). Pound discorreu a respeito em A Visiting Card: “Felizmente, esses porcalhões não têm nenhum senso de proporção, ou o mundo inteiro já estaria sob o domínio racial deles”. “Deles”, judeus. Em tempo: no original, Pound dá uma engrolada nas palavras de Mond (“to crwuth Mussolini”, em que “crwuth” seria “crush”, “esmagar”; depois, no Canto LXXX, “crwuth” vira “cwuth” e Mussolini, “Mutholini”) para tornar a cena ainda mais caricatural, mas isso foi ignorado pelo tradutor.

“(…) em Nápoles, Lorenzo”: a missão de Lorenzo de Médici junto ao rei Ferrante para obter a paz com os napolitanos (v. Canto XXI).

“inoltre”: “também”, isto é, a exemplo de Sigismundo, Lorenzo também escreveu versos.

“alla terra abbandonata”: “à terra abandonada”. Pietro Metastasio (1698-1782), poeta e dramaturgo italiano, tornou-se o poeta da corte vienense em 1729. Escreveu os libretos de várias óperas, como Didone Abbandonata.

“il Programma di Verona”: o Programa de Verona é o manifesto que discorria sobre os princípios da República de Saló. “Sirmio” é o Lago Garda, na região onde Mussolini se refugiou para a derradeira investida. “San Sepolchro” é o nome da praça em Milão na qual Mussolini lançou sua carreira política.

“os quatro bispos (…) altar”: em sua longa caminhada desde Roma, Pound visitou Milão e viu o resultado dos bombardeios dos Aliados.

“Goedel”: Carl Goedel, membro da seção inglesa que se ocupava das transmissões radiofônicas e da propaganda da República de Saló.

“o homem saído de Naxos além de Fara Sabina”: Naxos, a ilha grega pela qual passaram Dionísio e Teseu. Pound vê a si mesmo como ambos em sua jornada de Roma até Gais. “Fara Sabina” é uma localidade próxima de Roma. As frases soltas nos versos seguintes são coisas que Pound ouviu pela estrada afora. “Minestra” é “sopa”; “il zaino”, “a mochila” ou “mala”, “saco” etc.; “Gruss Gott”, “Deus nos abençoe”; “Der Herr”, “o senhor” ou “mestre”; “Tatile ist gelommen”, “Papai chegou” (frase dita por Mary quando ele chegou a Gais).

“e construíram (…) Lácio”: citação da Eneida.

“bricabraque”: Pound teria dito que a “literatura que tenta evitar o exame das causas não passa de um bricabaque tolo”.

“cada qual no nome”: Miqueias 4,5 — “Sim, todos os povos caminham, cada qual em nome do seu deus: nós, porém, caminhamos em nome de Iahweh, nosso Deus, para sempre e eternamente!”.

“Mana aboda” é o título de um poema de T. E. Hulme.

“Steele”: o tenente-coronel John Steele era o comandante do DTC. “Sangue” (“Blood”) seria o nome de um “trainee” do DTC; “Slaughter” seria um “soldado negro”, nas palavras de Steele.

“Δικη”: “justiça”. Epíteto utilizado ao final da Oresteia, onde o coro age como o júri e Atena tem o voto decisivo para considerar Orestes inocente.

“a definição não pode…”: a câmera registra, mas não determina o significado.

“onde não há pessoa responsável (…) endereço”: axioma fascista.

“não um direito, mas um dever”: palavras de Mussolini para se referir à liberdade.

“Presente!”: nas reuniões fascistas, quando o nome de alguém que morrera a serviço do movimento era chamado, os camaradas berravam: “Presente!”.

“(…) quando ele (Pellegrini) / disse: o dinheiro está lá”: repetição de algo já referido no Canto LXXIV. Gianpietro Pellegrini era o subsecretário do ministro das finanças na República de Salò. Em 27 de novembro de 1943, Pellegrini disse a Mussolini que iam lhe pagar 125 mil liras por mês como salário de chefe de estado. Mussolini disse que 4 mil liras bastavam, ao que o outro retrucou que ele devia aceitar as 125 mil, pois “o dinheiro está lá”.

“Tito”: Tito Vespasiano, imperador romano (69-79 d.C.) que sucedeu o desastroso reinado de Nero e empreendeu reformas que salvaram o Império. Pound sugere que Mussolini seria uma espécie de Vespasiano do século XX. “Antonino”, citado a seguir, foi outro bom imperador (um dos chamados “cinco bons”: Nerva, Trajano, Adriano, Antonino Pio e Marco Aurélio), reinando entre 138 e 161 d.C.

“Rostovseff”: Michael Ivanovich Rostovtzeff (1870-1952), historiador e classicista norte-americano.

“o-hon dit (…) tout”: “É algo que se diz no vilarejo / que um capacete não tem utilidade / nenhuma mesmo / Ele serve apenas para dar coragem / àqueles que não têm nenhuma”.

“San Zeno”: basílica de arquitetura românica em Verona.

“Farinata”: Farinata degli Uberti (1212-1264), aristocrata italiano, líder militar da facção gibelina em Florença. Ele foi considerado um herege por alguns contemporâneos, incluindo Dante Alighieri, que o colocou no Inferno (no canto X, especificamente, em covas ardentes). Em 1283, os corpos de Farinata e de sua esposa, Adaleta, foram exumados, julgados e condenados postumamente por heresia. Seus restos, assim, foram cerimoniosamente mutilados. A heresia de Farinata teria sido descrer que houvesse vida após a morte e professar certo epicurismo. Os versos de Pound descrevem uma estátua de Farinata em San Zeno. Alguns versos depois, Pound cita outro líder gibelino, Can Grande della Scala (1291-1329). Este foi amigo e protetor de Dante.

“E fa (…) tremare”: “E faz o ar tremer com a claridade.”

“Assim lá sentamos”: Pound, Eliot e D. M. G. Adams em seu passeio no começo dos anos 1920. “Thiy”: Bride Scratton (o apelido veio de uma antiga rainha egípcia); o “decaduto” (“decadente”) seria Eliot. “Rochefoucauld” é uma referência a um poema de Eliot, “The Boston Evening Transcript” (leia AQUI). O Café Dante ficava em Verona.

“aram vult nemos”: “o bosque precisa de um altar” (v. Canto LXXIV).

“como sob os altares (…) confusões)”: Analectos XXI, 1; “‘Decidiu Kao-yao (…) se mandaram”: Analectos, XXII, 3-6.

A “disputa no senado” diz respeito às discussões acerca da 18ª emenda e a Liga das Nações. Lodge e Knox eram congressistas contrários à entrada dos EUA na Liga das Nações. A 18ª emenda instituiu a Lei Seca (1919-1933).

“Odon”: O. Por (1883-?) foi um escritor italiano que abordava problemas sociais e econômicos. Um dos prediletos de Pound.

Churchill e Midas: ref. à desastrosa reinstituição do padrão ouro pelos britânicos em 1925.

O ideograma é “Tao”, “o processo” ou o “caminho taoísta”.

Nos versos seguintes, Pound delineia alguns preceitos da teoria do crédito social e reitera a história de que tentara convencer Mussolini e adotar essas ideias, mas ele “foi dependurado pelos calcanhares (…) ‘Por um porco'” (segundo o romancista inglês Edgar Jepson) antes que pudesse fazer isso.

“O Roubo da Égua”: O Celebrado Romance do Roubo da Égua é um romance medieval muito popular no Norte da África. Foi traduzido do árabe por Lady Anne Blunt e versificado por Wilfred Scawen Blunt em 1892.

“casûs bellorum”: eventos ou circunstâncias usados para justificar uma guerra.

“mãos cerradas”: no original, “mits”. O tradutor comeu bola aqui. Trata-se de mais uma alusão à canção sobre a moça cujos seios são tão grandes quanto as luvas (“mitts”) de Jack Dempsey. O “Sr. Wilson” era o “trainee” no American Disciplinary Training Center (DTC) que cantava: “My girl’s got great big tits / Just like Jack Dempsey’s mitts”. Pound erra a grafia de “mitts”.

“Harriet”: Harriette Wilson (1789-1846), em cujas Memoirs (1825) há uma discussão entre ela e Wellington (o próprio Arthur Wellesley (1769·1852), 1º Duque de Wellington, general britânico que derrotou Napoleão em Waterloo) sobre ser ou não apropriado que um homem não tire as botas para transar. Ao que parece, a coisa teria a ver com o duque e a duquesa de Marlborough.

“videt et urbes”: tradução latina da Odisseia I, 2, “qui mores hominum multorum vidit et urbes”, “as muitas urbes que mirou” (Trajano Vieira, ed. 34).

: “polumétis”, “multiversátil” (epíteto de Odisseu).

“ce rusé personnage”: “esse personagem astuto”. Foi assim que W. H. D. Rouse (1863-1950) traduziu “polumétis”, solução aprovada por Pound. James Otis (1725-1783), referido em seguida, foi um advogado e patriota norte-americano que se opôs à Lei do Selo (1765). Ele também renunciou ao cargo de advogado-geral em Boston por ser contrário à emissão dos “writs of assistance” (permissões para que os agentes da coroa fizessem buscas em embarcações e residências sem a necessidade de mandados; na prática, eles podiam proceder buscas quando e onde quisessem, sem atestar causa provável ou nada do tipo).

“asfódelo”: ref. Odisseia XXIV, 10-14. A “campina asfodélica” era uma das três regiões do mundo ínfero dos mortos (as outras duas eram os Campos Elísios e o Tártaro).

“No hay amor (…) amor”: “Não há amor sem ciúmes / Sem segredo não há amor” — o título de uma peça do dramaturgo espanhol Lope de Vega (1562-1635).

“Doña Juana la loca”: Joana (1479-1555), filha de Fernando de Aragão e Isabel de Castela, mãe de Carlos V. Enlouqueceu com a morte do marido, Filipe, do qual nutria ciúmes doentios (sobretudo nos últimos anos de vida dele). O apelido “La loca” também se aplica à atriz Lucia de Salcedo, por quem Lope de Vega foi apaixonado. Quanto a Cunizza, v. Canto VI e Canto XXIX.

“tédio daquele romano nas escadas de Olivia”: não se sabe quem é o “romano”; “Olivia” é a britânica Olivia Rossetti Agresti (1875-1960), ativista e intelectual, filha do crítico de arte William Michael Rossetti e da artista e modelo Lucy Madox Brown. Agresti viveu por muitos anos em Roma e se correspondeu com Pound. Ideologicamente, ela foi do anarquismo ao fascismo, o que seria cômico se não fosse estúpido. Com sua irmã Helen Rossetti Angeli (1879-1969), publicou um jornal anarquista, The Torch. Depois, usando o pseudônimo “Isabel Meredith”, elas publicaram o livro A Girl Among the Anarchists. Ela já apareceu logo no começo do Canto LXXVI. Alguns versos depois, Pound fala no “Dr. Williams”; trata-se do poeta William Carlos Williams, com quem Pound estudou na Universidade da Pensilvânia.

“A Primavera e o Outono”: os Anais da Primavera e do Outono (Ch’un Ch’iu), o último dos Cinco Clássicos. Trata-se de um relato cronológico dos principais eventos ocorridos na província de Lu entre 722 e 484 a.C., geralmente atribuído a Confúcio (Lu era o estado natal dele). Nos Anais, conforme Mêncio, é dito que não há guerras justas (mas há exemplos de guerras melhores do que outras).

Canto LXXVII

Pound utiliza vários ideogramas nesse canto. Suas respectivas traduções são oferecidas por ele logo após o poema, no “Canto 77 – explicação”. Note-se que, a exemplo de outras ocorrências, ele costuma antepor a tradução de alguns desses ideogramas nos próprios versos. Logo, é só prestar atenção que a coisa faz sentido de imediato

“Abner” era um dos prisioneiros do DTC.

“Maukch”: Gothardt Maukshk foi um vendedor de livros que trabalhava para Sansoni, um editor em Florença. Pound visitou Maukshk em 1959, acompanhado por Ricardo degli Uberti.

“Katin”: ou Katyn, um vilarejo russo próximo de Smolensk. A região foi ocupada pelos alemães na Segunda Guerra. Em abril de 1943, os alemães descobriram valas comuns na floresta homônima próxima do vilarejo. Três anos antes, em abril e maio de 1940, autoridades soviéticas executaram e enterraram ali cerca de 22 mil militares poloneses e outros prisioneiros de guerra (a União Soviética invadira o leste da Polônia em 1939). Após a descoberta das covas, os soviéticos disseram que os nazistas eram responsáveis pelo massacre, mas, na época em que Pound escreveu esse canto, já havia evidências de que as execuções em massa foram ordenadas por Stálin e levadas a cabo pelo NKVD. Foi apenas em 1990 que a URSS reconheceu ter sido responsável pelo morticínio e pela tentativa de acobertamento.

“as fossas comuns em Katin”: no original, “the mass graves at Katin”. Creio que a melhor tradução seria “covas” ou “valas comuns”.

“le beau monde gouverne (…) toujours”: o “belo mundo”, isto é, as “altas rodas”, a elite social e econômica que “sempre” governa.

A citação que se inicia em “e tendo-os pego” é de Confúcio (grafado logo em seguida como “Kungfutseu”).

“Entrou no empório dos Irmãos Watson em Clinton, N.Y. (…) objetivo imediato”: algo que Pound teria observado quando tinha cerca de 19 anos e estudava no Hamilton College.

“Arcturus”: uma grande estrela da constelação Boötes.

“e a hennia de Awoi”: referência à Lady Awoi da peça Nō Awoi no uye, traduzida por Pound a partir das anotações de Fenollosa. Awoi, a primeira mulher de Genji, é consumida pelos ciúmes das demais esposas dele. A hennia é um espírito maligno nas peças Nō.

“homens ascenderam de X86vos”: “da terra”, os homens ascenderam “da terra”.

O “kylin” é um animal mitológico que tem o corpo de um cervo, a calda de um touro, as patas de um cavalo, um chifre carnudo, a crina parcialmente colorida e a barriga amarela.

“(a dança é um meio)”: as referências à dança nesse canto e noutros dessa série (LXXVIII/477, LXXIX/491 e LXXXI/518) derivam do artigo “Ceremonial Game-Playing and Dancing in Mediaeval Churches”, de George Robert Stow Mead, em especial da seção “The Pelota Ball-Dance of Auxerre”. O artigo foi publicado na revista The Quest (vol. 4, nº 1, outubro de 1912, págs. 91-123).

A “montanha de origem” (“native mountain”, no original) é uma expressão japonesa que designa o local de nascimento de alguém.

A citação em grego é das Meditações de Marco Aurélio (IV, 41), um dito que ele atribui a Epíteto: “És uma pequena alma que soergue um cadáver” (na tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2019).

Alguns versos depois, a citação em inglês antigo, “summe fugol othbaer”, é o verso 81 de The Wanderer e pode ser traduzido como “o navio [ou o pássaro] levou um deles embora”.

: “com belas madeixas” ou “cachos”.

“Ida” e “Nemi” são, respectivamente, o Monte Ida (onde Afrodite e Anquises se casam e o julgamento de Páris ocorre, entre outras coisas) e o Lago Nemi (localizado no Lácio, em cujas proximidades ficaria o bosque consagrado a Diana).

“dum capitolium scandet”: das Odes de Horácio (III, 30). Os versos são “Non omnis moriar, multaque pars mei / vitabit Libitinam: usque ego postera / crescam laude recens, dum Capitolium // scandet cum tacita virgina pontifex”. Na tradução de Pedro Braga Falcão (São Paulo: Editora 34, 2021), “Nem tudo de mim morrerá, de mim grande parte / escapará a Libitina: jovem para sempre crescerei / no louvor dos vindouros, enquanto o pontífice // com a tácita virgem subir ao Capitólio”. Nessa ode, Horácio discorre sobre como teria erigido um “monumento mais duradouro que o bronze”, que “escapará a Libitina” (a deusa romana que acompanhava os funerais) etc. A “virgem” é a vestal que subia ao Capitólio (símbolo da eternidade de Roma) a fim de orar pelo bem da cidade.

“como as duas metades de um selo ou uma vara de medição?”: Shun e Wan viveram em momentos distintos e vieram de regiões distintas (leste e oeste, respectivamente), mas ambos tiveram disposições e ideais similares no que diz respeito ao Reino Médio, daí Pound dizer que seus “desígnios eram um só”. Nos tempos antigos, como símbolo da investidura, o imperador entregava a metade de uma vara ou pedra, mantendo consigo a outra metade.  Quando a ocasião requeria, essas metades eram reunidas, reafirmando a unidade.

“1766 ante Christum”: em 1766 a.C., o imperador Ch’eng T’ang abriu uma mina de cobre e cedeu os lucros obtidos para que as pessoas comprassem grãos.

“Κύθηρα”: Citera (ref. Afrodite).

“sob a terra.”

“terra” (referência aos homens que, no mito de Cadmo, brotam da terra, armados e prontos para lutar). No caso, o verso seria melhor traduzido como “as formas dos homens emergem da” terra.

“qual uma seta…”: Analectos XV, 6.

A referência a Pirandello diz respeito a algo que ele teria dito sobre Cocteau no Café Campari, em Milão. Cocteau estaria tentando adaptar Édipo Rei, e Pirandello disse temer que ele resvalasse na psicanálise, mas depois achou que isso não aconteceria, pois “é um excelente poeta”.

“Gaudier”: Henri Gaudier Brzeska (1891-1915), escultor francês e um dos amigos mais queridos de Pound. Alistou-se para lutar na Primeira Guerra Mundial e morreu em Neuville St. Vaast no dia 5 de junho de 1915. Pound escreveu uma homenagem a ele, Gaudier Brzeska. A Memoir (1916).

“Miss Lowell”: Amy Lowell (1874-1925), poeta e crítica norte-americana, foi para Londres em 1914 e entrou para as fileiras do imagismo. Era uma mulher enorme, muito voluptuosa, daí a referência à sua “massa telúrica”. Como fosse rica e muito dinâmica, atraiu várias pessoas para o movimento, que passou a ser chamado de “amygismo”. No dia 17 de julho de 1914, ela ofereceu um jantar no restaurante Dieudonné para celebrar o lançamento da primeira antologia imagista. Eram doze convidados, incluindo Ezra e Dorothy Pound, Allen Upward e Brzeska. Este, maravilhado com a voluptuosidade de Lowell, teria mensurado as formas e ângulos da mulher, daí a referência às “duas tetas de Tellus” alguns versos antes. Quando Lowell se levantou para falar, Brzeska teria dito a Pound: “Meu Deus! Gostaria de vê-la nua”.

Upward (1863-1926) seria alguém muito incerto, daí oscilar entre as mentes de Platão e Bacon.

“Não dens focê baixões bolíticas?”: imitação de um forte sotaque russo-alemão. No caso, de Henry Slonimsky (1884-1970). Nascido em Minsk, foi colega de Pound na Universidade de Penn (1902-3). Em 1912, concluiu o doutorado na Universidade de Marburg com uma tese sobre Heráclito e Parmênides. A frase teria sido dita por Slonimsky para Pound em 1912.

“Miscio”: Michio Ito (c.1892-1961), bailarino japonês, egresso de uma família de samurais, estudou balé no Japão, em Paris (com Nijinsky e o Balé Russo) e na Alemanha. Foi para Londres após o início da Primeira Guerra e viveu em extrema pobreza por um tempo. Morava em uma pensão dirigida por uma irlandesa (provável que a “Sra. Tinkey” referida alguns versos depois). Depois de penhorar tudo o que tinha, incluindo suas gravatas, ficou sem um tostão e passou três dias sem aquecimento e energia elétrica (“… sentou-se no escuro sem ter um tostão para o gasômetro”). Um amigo pintor levou-o a uma festa na casa de Ottoline Morrell, onde conheceu Lady Cunard; esta o convidou para jantar no dia seguinte. A partir daí, Ito passou a dançar em festas e saraus. Certa vez, após dançar para um público considerável, um senhor distinto puxou conversa, perguntando sobre arte japonesa. Ito disse que não falava inglês muito bem, mas, caso o interlocutor conseguisse, poderiam papear em alemão (“Fala alemão?”). O sujeito era ninguém menos que o primeiro-ministro britânico H. H. Asquith, e eles conversaram em alemão.

“Ainley” era Henry Ainley (1879-1945), um célebre ator inglês. Ele e Ito atuaram juntos em uma montagem da peça At the Hawk’s Well, de Yeats, na sala da casa de Lady Cunard, em 2 de abril de 1916.

“Tal como as luvas de Jack Dempsey”: Wilson era um trainee no American Disciplinary Training Center (DTC), onde Pound ficou encalacrado. Ele costumava cantar: “My girl’s got great big tits / Just like Jack Dempsey’s mitts”.

“o velho piloto de Dublin”: em um artigo intitulado “John Synge and the Habits of Criticism”, publicado em The Egoist (fevereiro de 1914], Pound escreveu sobre um velho marujo que se referia nesses termos (o lance da pulga) aos amores que tivera na juventude.

“bal seno”: “belo seio”; “Δημήτηρ”: Deméter; “copulatrix”: aquela que copula.

“Ciano”: Galeazzo Ciano di Cortelazzo (1903-44), genro de Mussolini, ocupou diversos cargos no governo e, dizia-se, era bastante corrupto. O “almirante” que fala é Ubaldo degli Uberti (1881-1945), oficial naval italiano que se aposentou em 1931, mas retornou à ativa para lutar na Segunda Guerra Mundial. As famílias de Pound e Uberti se tornaram amigas em 1934; Uberti ajudou Pound a traduzir e publicar seus escritos na Itália. O “ele” que devia se livrar de Ciano é, claro, Mussolini. A frota italiana se rendeu aos Aliados em setembro de 1943. Uberti foi vítima de uma emboscada e alvejado por soldados russos-alemães (eles pensaram que o carro pertencia a partisans) e morreu num hospital em 28 de abril de 1945.

“Chilanti”: Felice Chilanti (1914-1982), jornalista e autor de romances, um fascista dissidente de cujas ideias Pound discordava, embora o visitasse com certa regularidade para ouvir o que tinha a dizer.

“Gais” é a vila no Tirol onde a filha de Pound e Olga Rudge, Mary de Rachewiltz, foi criada.

“Chung Ni” é Confúcio (v. cantos LIII e LVI).

“estátua do alpino”: monumento em Bruneck (“Brunik”) no qual os tiroleses faziam manifestações exigindo que os italianos fossem embora.

“Jactância (…) de trabalho”: a crença de Mussolini e muitos fascistas (incluindo Pound) de que seu governo caíra por conta da corrupção, não pelos problemas inerentes à ideologia. Havia a esperança de que República de Saló não incorreria nos mesmos erros.

“Alice e Edmée”: Alice May e o artista e ilustrador Edmund Dulac (1882-1953), nascido na França mas residente na Inglaterra (e eventualmente tornado cidadão britânico) desde 1905.

: “e a deusa Ida”.

“E La Miranda”: Isa Miranda (1909-1982), atriz italiana.

“Romano Ramona”: provavelmente um guarda no DTC.

A palavra em grego significa “merda”.

“Margherita”: uma criança que, abandonada pelos pais, foi criada pela família que hospedava Mary de Rachewiltz. Seu apelido era Margit. O verso “Ó Margaret das sete aflições” remete à canção “Spring and Fall: To a Young Child”, de Hopkins.

“Lanier”: Sidney Lanier (1842-1881), poeta norte-americano, autor de The Symphony, poema épico no qual é discutida a interação entre ética e comércio. “Jeff Davis” é, claro, o “presidente” confederado Jefferson Davies (1808-1889).

“Ils n’existent… existence”: “Eles não existem, seu ambiente lhes confere uma existência.”

O “velho André” é André Spire (1868-1966), poeta francês defensor do sionismo (daí que ele “pregava o vers libre com fúria isaíaca”).

“Un curé (…) déguisé”: “Um padre disfarçado”; “‘Me parece um padre disfarçado’ à porta”; “Não sei, senhor, ele me parece um padre disfarçado.”

É improvável que o ultraconservador Leon Daudet (1867-1942), líder da Action Française, ajudasse Cocteau a se tornar membro da mesma.

“La Comtesse”: Nadajda de la Rousseliere-Clouard, que se casou em 1901 com Guillaume-Joseph-Marie, conde de Rohan-Chabot. A condessa vivia na av. Henri-Martin, em Paris, e isso remete Pound a outro Martin, o o deputado republicano por Massachussetts Joseph William Martin, muito poderoso à época da Segunda Guerra (o “mal” que ele fez foi se opor a George Tinkham). A referência aos “30.000” é algo que Pound teria ouvido: alguém pagou 30 mil para conseguir a nomeação à presidência, quando bastariam 6 mil, o que evidenciaria a debilidade do Partido Republicano; é provável que tenha sido Alfred Mossman Landon (governador do Kansas e, de fato, candidato à presidência em 1936), citado no verso seguinte. Wendell Willkie foi o candidato republicano à presidência em 1940.

“Roi je ne (…) daigne”: “Eu não sou o rei, não condescendo em ser o príncipe” — variação do lema da Casa de Rohan. Diz-se que o rei Vittorio Emanuele (referido alguns versos depois) teria proposto a Mussolini torná-lo um nobre, coisa que o fascista recusou (ou teria recusado) citando o lema dos Rohan ou uma variação do mesmo. Os “decretos” assinados pelo rei dizem respeito à destituição de Mussolini e à rendição da Itália aos Aliados.

“se casco…”: “Se caio, não caio de joelhos” — Bianca Capello, uma duquesa Médici de Florença, teria dito isso. Para Pound, Mussolini pensou algo similar, indo para o Norte estabelecer a República de Saló.

“Schinafoja” (ou Schinafoia) é o palácio construído por Alberto d’Este em Ferrara, em 1391, famoso pelos afrescos de Cosimo Tura e Francesco del Cossa, referidos em outros cantos.

Após uma série de frases soltas, sugerindo conversas e traços de conversas que Pound ouviu quando estava no DTC (os nomes citados são de prisioneiros e soldados de lá), há uma referência ao “tio William”, isto é, W. B, Yeats, que também viveu em Rapallo.

“Kitson”: Arthur Kitson (1860-1937), escritor britânico, autor de obras sobre o dinheiro e os sistemas monetários que Pound julgava excelentes e divulgava, como The Money Problem e Trade Fallacies. “Vetta”, “cume”: referência ao Promontório Portofino, um parque próximo de Rapallo.

“Shah Nameh”: no caso, Shah Namah, o Livro dos Reis, épico persa composto por volta do ano 1000 d.C. “Basil” é o poeta inglês Basil Bunting, amigo de Pound que o visitava sempre em Rapallo. “Firdush” é o pseudônimo de Abul Kasim Mansur (c.940-1020), autor do Shah Namah. Os caracteres correspondem ao nome “Firdush” em persa.

“Kabir”: um dos doze discípulos de Ramananda, foi um reformador que viveu no Norte da Índia no século XV. “Rabindranath” é Tagore (1861-1941), poeta bengali nobelizado em 1931. Pound gostava da obra dele.

“Montagu: Sir Montague de Pomeroy (v. canto LXXXIV).

“bunya”: “agiota” em hindu.

“Kohinoor” é o mais famoso diamante indiano, agora entre as joias da coroa britânica.

“Tom” era um dos trainees no DTC, e o “disco de lata” diz respeito à placa de identificação que os soldados usam dependuradas no pescoço.

“Das Bankgeschäft”: “o negócio bancário”.

“Wabash” refere-se à canção “The Wabash Cannonball”, que tocavam no sistema de som do DTC.

“Sorella, mia sorella (…) zecchin'”: “Irmã, minha irmã / que dançava sobre uma moeda de ouro.”

Violência em Tito Lívio e Maquiavel

 

A VIOLÊNCIA NA CONSTITUIÇÃO E NA MANUTENÇÃO DO ESTADO
EM TITO LÍVIO E MAQUIAVEL

 

Intro.

O itinerário deste texto se concentra sobretudo no livro I dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, nos capítulos (19 e 20, entre outros) em que o pensador florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527) aborda a importância dos príncipes fortes (belicistas) e, por conseguinte, do papel da violência na criação e na sustentação do Estado. Os alicerces de Roma, por exemplo, foram lançados e firmados por dois reinados ferozes (Rômulo e Tulo Hostílio), os quais foram entremeados por um ordenador da vida civil (Numa) que, nas palavras de Tito Lívio (1989, p. 45), refundou a cidade “com base no direito, na lei e nos bons costumes”.

Em um primeiro momento, discorrerei sobre essa distinção maquiaveliana, contrapondo-a ao tom menos belicoso adotado pelo autor da História de Roma. A narrativa acerca do reinado de Numa, tido por Maquiavel como um príncipe fraco, mas por Tito Lívio como responsável por uma contribuição muito importante para a grandeza de Roma, servirá para ressaltar o que há de diferente nessas abordagens.

Na parte seguinte, ancorado nas distinções já traçadas, abordarei a noção de um príncipe coletivo, surgido após o fim do período monárquico romano. Tanto Maquiavel quanto Tito Lívio concordam que a liberdade só se tornou possível após a instituição da república ou, nas palavras do primeiro, depois “que Roma expulsou os reis”, não estando mais “exposta aos perigos (…) da sucessão de um rei fraco ou mau” (MAQUIAVEL, 2007, p.79). Há, contudo, discordâncias entre eles quanto ao caráter da relação entre a plebe e os patrícios, sobre as quais tenciono digressionar.

Tito Lívio fala, por exemplo, em reconciliação após os conflitos que culminaram na criação dos tribunos da plebe, no século V a.C. Maquiavel, por sua vez, postula uma inexorável mecânica conflituosa, cuja administração, por assim dizer, seria imprescindível para a sustentação da república, na medida em que mantém as ambições e os desejos privados dos partidários sob controle, sem (muito) prejuízo do bem comum e do Estado.

 

1. Príncipes fortes e príncipes fracos.

No capítulo 19 dos Discursos, Maquiavel ressalta a imensa fortuna de Roma, que teve dois reis fortes entre os seus três primeiros governantes (Rômulo, Numa e Tulo Hostílio): “o primeiro rei foi ferocíssimo e belicoso, enquanto o segundo foi tranquilo e religioso, ao passo que o terceiro se assemelhou em ferocidade a Rômulo” (MAQUIAVEL, 2007, p. 76-7). No entender do pensador florentino, um príncipe fraco é todo aquele que não guerreia, que não se ocupa da guerra. É nesse sentido que devemos encarar a “fraqueza” de Numa, cuja importância, contudo, não pode ser diminuída, na medida em que ele atuou como um “ordenador da vida civil” (Ibid., p. 77).

Segundo rei de “uma cidade jovem fundada pela força das armas”, Numa tratou de “fundá-la novamente com base no direito, na lei e nos bons costumes” (TITO LÍVIO, 1989, p. 45). Tal refundação, no entender do monarca, não seria factível em meio a uma série interminável de conflitos armados. Assim, ele trabalhou para alcançar a paz com os vizinhos por meio de tratados e alianças, dirimindo as possibilidades de novas invasões e embates, e encontrou na religião uma forma de organizar a vida citadina e canalizar a brutalidade dos súditos:

(…) Mas para que a ausência de perigo externo e a paz não enfraquecessem o caráter daqueles homens até então contidos pelo medo do inimigo e pela disciplina militar, [Numa] achou que o meio mais eficaz seria infundir no espírito daquela multidão ignorante e ainda rude o sentimento poderoso de temor aos deuses. E como era impossível fazê-lo penetrar nos corações sem o auxílio de algum prodígio, simulou ter entrevistas noturnas com a deusa Egéria (Ibid., p. 46).

Ao que parece, em sua intenção de ordenar a vida civil, Numa percebeu que não seria possível simplesmente suprimir a violência essencial que animava o povo, sobretudo após um reinado como o de Rômulo. Nesse sentido, o temor aos deuses infundido por meio da religião (e de uma trapaça) mostrou-se uma ferramenta muito eficaz para a supracitada canalização. Sem o perigo representado pelas ameaças externas e com os instintos do povaréu sob controle, em mais de quatro décadas de reinado, Numa pôde negociar e manter os tratados e alianças com os povos vizinhos[1], e instituir as leis e instituições que julgava imprescindíveis para a cidade.

“Assim”, lemos na História de Roma, “dois reis sucessivamente, por caminhos diversos, um pela guerra, outro pela paz, contribuíram para a grandeza de Roma” (Ibid., p. 48-49). Numa desempenhou muito bem o seu papel para com a cidade, no entender de Tito Lívio. Não há, na História de Roma, qualquer ressalva ou crítica ao comportamento pacifista do sucessor de Rômulo.

Maquiavel, por sua vez, não ignora a importância de um “ordenador da vida civil” como Numa, mas entende que “depois era necessário que os outros reis retomassem a virtù[2] de Rômulo”, pois, “se isso não ocorresse, a cidade se tornaria efeminada e presa fácil dos vizinhos” (MAQUIAVEL, 2007, p. 77). Roma sobreviveu à “fraqueza” de Numa, à sua aversão à guerra e ao conflito, e beneficiou-se grandemente da organização por ele engendrada, mas talvez não tivesse sobrevivido a um sucessor que partilhasse do mesmo caráter pacífico.

Tulo Hostílio, o terceiro rei de Roma, resgatou a virtù de Rômulo, sendo “ainda mais belicoso”: ele acreditava que “a cidade enfraquecia por inércia [ócio]” e, por isso, procurou por pretextos para guerrear (TITO LÍVIO, 1989, p. 49). Desnecessário pontuar que logo encontrou o que buscava.

Conforme aponta o professor José Luiz Ames no artigo “Lei e violência ou a legitimação política em Maquiavel”, a concepção maquiaveliana afirma que um Estado só consegue manter “sua autoridade por meio de um retorno contínuo ao momento da origem”, isto é, “àquele momento da violência de Rômulo, e essa volta repõe a lei na indeterminação originária que, por sua vez, a recoloca em movimento” (AMES, 2011, p. 22). Na leitura de Ames, a violência fundadora do Estado e a violência constitutiva da lei são uma só e a mesma violência, cujo objetivo é extinguir a violência anterior e/ou marginal a tais fundação e constituição.

Em “Que é Autoridade?”, Hannah Arendt (2009, p. 184) remete à afirmação maquiaveliana sobre a necessidade de violência “para fundar novos Estados e para reformar os degenerados”. A fundação seria “a ação política central, o único grande feito que estabelecia o domínio público-político e que tornava possível a política” (Ibid., p. 184). Maquiavel teria plena consciência do caráter circular da história, bem como da corrupção inerente a qualquer Estado ou organização política. Com vistas a conter o inevitável avanço da corrupção e a consequente ruína do Estado, torna-se necessária a refundação, isto é, um retorno àquele instante originário — em se tratando de Roma, um retorno à ferocidade de Rômulo.

Sem esse retorno à violência originária, capaz de engajar toda a cidade em torno de um objetivo comum, é possível que o enfraquecimento percebido por Tulo chegasse a tal ponto que arruinasse Roma. Acostumada à paz e assim desarmada, a cidade se tornaria presa fácil para quaisquer invasores e inimigos. E, antes disso (ou concomitantemente a isso), sem um objetivo comum e ulterior, público, as ambições individuais levariam aos vícios institucionais e “pouco republicanos” (para usar uma formulação contemporânea, e pedindo desculpas pelo anacronismo), ou seja, levariam à corrupção generalizada e à depauperação do Estado.

Maquiavel sublinha que tal perigo, o de ser governada por uma sucessão de reis fracos que acabariam por destruí-la, e/ou por vários reis malvados e tirânicos, como Tarquínio, o Soberbo, pairou sobre Roma até a eleição dos primeiros cônsules — e o próprio Tito Lívio (1989, p. 105) identifica o fim da realeza com a libertação do povo romano, a partir daí “sob o governo de magistrados eleitos anualmente e sob a autoridade de leis superiores à autoridade dos homens”.

Para Maquiavel, um governante similar a Numa pode ou não manter o Estado, conforme os humores dos tempos e da fortuna (e, nesse sentido, ele teve a boa fortuna de ser antecedido por alguém como Rômulo e sucedido por Tulo), ao passo que um governante como Rômulo, “sendo como ele armado de prudência e de armas”, manterá o Estado “de qualquer modo, desde que ele não lhe seja arrebatado por força obstinada e extraordinária” (MAQUIAVEL, 2007, p. 78). Segundo esse ponto de vista, a sucessão romana possibilitou que a cidade assegurasse, por um lado (via Numa), o desenvolvimento e a sedimentação de suas leis, mas, por outro (via Rômulo e Tulo), as suas próprias existência e grandeza.

Em outras palavras, conforme a interpretação maquiaveliana, é possível afirmar que, sem os “príncipes fortes”, Roma talvez tivesse naufragado antes de alcançar a glória pela qual se tornou conhecida. Em seu período inicial, quando governada por reis e vulnerável à possibilidade de se ver submetida a monarcas fracos ou malvados, afirma Maquiavel, Roma sempre flertou com a ruína.

 

2. Príncipe coletivo.

Como vimos, Tito Lívio considera o povo romano livre a partir do momento em que passa a eleger seus cônsules. E, por seu turno, conforme exposto acima, Maquiavel fala na “expulsão” dos reis como o fato que libertou Roma do “perigo de ser arruinada” por um governante “fraco ou mau”:

Porque aos cônsules foi dado o poder supremo, não por herança, fraudes ou ambição violenta, mas por sufrágio livre; e eram sempre excelentes homens: Roma, valendo-se de tempos em tempos da virtù e da fortuna deles, pôde atingir o máximo de grandeza num número de anos igual ao que estivera sob os reis (MAQUIAVEL, 2007, p.79).

É possível falar, então, na substituição de um príncipe forte ou fraco, feroz ou não, por um príncipe coletivo, que elege regularmente seus representantes tendo em vista não ambições individuais, mas o bem comum da cidade ou Estado. Em termos de violência ou ferocidade, esse príncipe coletivo seria forte, sempre disposto a se ocupar da guerra (o que explicaria a expansão romana nos séculos posteriores à “expulsão” dos reis) e jamais fugindo à mecânica conflituosa ali instaurada.

Maquiavel chama a atenção nos Discursos (I,4) para o fato de que foi o caráter “tumultuário” da república romana que possibilitou a sua liberdade: “em toda república há dois humores diferentes, o do povo, e o dos grandes”, e todas as leis concebidas “em favor da liberdade nascem da desunião deles”. No extremo, não há concórdia possível, ou melhor, não existe nenhum estado de coisas ou lugar no qual vigore alguma espécie de harmonia absoluta e plena. Há sempre tensão e confronto, e isso é saudável, pois os “bons exemplos nascem da boa educação”, a qual surge das boas leis, ao passo que as boas leis advêm dos tumultos (Ibid., p. 22). Os romanos souberam lidar com esses tumultos, usando-os para aliviar os desejos e a insubmissão do povo, por um lado, e refrear a ambição dos patrícios, por outro.

Maquiavel nos alerta para o fato de que “os desejos dos povos livres raras vezes são perniciosos à liberdade, visto que nascem ou de serem oprimidos ou da suspeita de que virão a sê-lo” (Ibid., p. 23). Assim, sempre que instado a fazer algo que percebia contrário aos seus próprios interesses ou quando almejava a aprovação de alguma lei, mas esbarrava na pressão ou na recusa dos grandes, o povo reagia com ferocidade, paralisava o comércio, tomava as ruas, cercava o senado, recusava o alistamento e, em um momento particularmente tenso, chegou a abandonar a cidade. Em suma, o povo fazia o que estava ao seu alcance para ser ouvido e tomar a parte que lhe cabia na condução da cidade.

Aqui, mais uma vez, talvez seja interessante discernir as visões de Maquiavel e Tito Lívio. Ao discorrer sobre os conflitos entre a plebe e o senado e os cônsules por causa das prisões por dívidas e do alistamento obrigatório, o historiador romano nos conta o seguinte:

(…) O Senado então exigiu-lhes [dos cônsules] que procedessem ao recrutamento com o maior rigor possível, pois a ociosidade era a causa da insolência da plebe.
Encerrada a sessão, os cônsules subiram à tribuna e fizeram a chamada nominal dos jovens. Como ninguém respondesse, a multidão presente cercou os cônsules (…) e declarou que ninguém mais enganaria a plebe, que não conseguiriam mais um único soldado, a menos que o Estado permanecesse fiel a seus compromissos. Era preciso dar liberdade a todos os cidadãos antes de dar-lhes armas (TITO LÍVIO, 1989, p. 143-144).

A situação degringolou ao ponto de se tornar insustentável. Roma viu-se paralisada pelo medo e pelo terror, com todos os cidadãos desconfiados uns dos outros. Dado esse calamitoso estado de coisas, a reconciliação entre patrícios e plebeus era imprescindível para a sobrevivência do Estado. Menênio Agripa, “estimado pelo povo por suas origens plebeias”, foi escalado para apaziguar os ânimos, e o fez por meio de um discurso no qual comparou as discordâncias e conflitos em curso a um corpo humano cujos membros e órgãos se rebelaram contra o estômago, “que obtinha tudo à custa de seus cuidados, seu trabalho e serviços, ao passo que ele próprio, ocioso”, apenas gozava “dos prazeres que lhe eram dados”. Assim, a mão deixou de levar o alimento à boca, que não mais o receberia, os dentes não mastigariam etc. Foi preciso que o corpo chegasse ao esgotamento para que os membros percebessem o papel desempenhado pelo estômago na digestão dos alimentos e na sustentação do organismo.

Em sua fala, Menênio Agripa procurou fazer com que os plebeus entendessem que sua revolta contra os patrícios era análoga à do restante do corpo contra o estômago, e que se fazia necessário que cada parte compreendesse a importância da outra. Claro que, para alcançar tal concordância, foi preciso que os patrícios fizessem algumas concessões. A mais importante delas foi a criação dos tribunos da plebe, “magistrados próprios, invioláveis, que se encarregariam de defendê-la contra os cônsules” (Ibid., p. 150-151). Assim, referindo-se sobremaneira à criação dos tribunos, Tito Lívio fala em uma efetiva reconciliação entre as partes.

Em Maquiavel, reitere-se, não há reconciliação, mas, sim, a compreensão de uma desunião fundamental e incontornável. Mais do que isso, há a existência daquela mecânica conflituosa e “tumultuária” que assegura a liberdade. Ele afirma com todas as letras que, “se o estado romano se tornasse mais tranquilo, decorreria o inconveniente de tornar-se também mais fraco” (MAQUIAVEL, 2007, p. 29). Desde que essa mecânica não se torne doentia, desde que as inimizades não sejam determinadas por ambições privadas e, enquanto tais, infensas ao bem comum, o Estado tende a viver sob um ordenamento justo, saudavelmente conflituoso, uma estrutura política que não é corrompida pelos tumultos, mas animada e sustentada por eles.

09-12.2022.

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NOTAS

[1] Tito Lívio escreve sobre como Roma passou a ser vista de outro modo pelos vizinhos após a revolução religiosa instituída por Numa: “E enquanto em Roma as pessoas pautavam seu comportamento pelo do rei como único exemplo a seguir, os povos vizinhos que até então consideravam Roma não como uma cidade, mas como um campo de batalha situado entre eles para perturbar a paz de todos, viram-se obrigados a venerá-la a ponto de considerarem um sacrilégio atacar uma nação inteiramente voltada para o culto dos deuses” (Ibid., p. 48).

[2] Recorro a Hannah Arendt: “A virtù (…), segundo Maquiavel a qualidade humana especificamente política, não possui a conotação de caráter moral da virtus romana, e tampouco a de uma excelência moralmente neutra à maneira da areté grega. A virtù é a resposta que o homem dá ao mundo, ou, antes, à constelação da fortuna em que o mundo se abre, se apresenta e se oferece a ele, à sua virtù. Não há virtù sem fortuna e não há fortuna sem virtù (…)” (ARENDT, 2009, p. 182).

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BIBLIO

AMES, José Luiz. “Lei e violência ou a legitimação política em Maquiavel.” Trans/Form/Ação, v.34, n.1, p.21-42. São Paulo: Marília, 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/trans/a/Db8Vskc95xdnLBddQPNNqZJ/?lang=pt
ARENDT, Hannah. “Que é Autoridade?”, em Entre o passado e o futuro. Tradução: Mauro W. Barbosa. 6ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2009.
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Glossário e revisão técnica: Patrícia Fontoura Aranovich. Tradução: MF. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
TITO LÍVIO, História de Roma – Ad Urbe Condita Libri. Volume primeiro. Introdução, tradução e notas: Paulo Matos Peixoto. São Paulo: Paumape, 1989.

‘Black music’, de Arthur Dapieve, mergulha na violência com humor

Resenha publicada no Jornal do Brasil em 31.10.2008.

As metrópoles brasileiras, repletas de violência e barbárie, estão se transformando ou já se transformaram em verdadeiros playgrounds de maníacos e marginais. Muitos escreveram e muitos ainda escreverão a respeito. O romance Black music (Objetiva, 112 páginas. R$ 24, 90), de Arthur Dapieve, talvez se inscrevesse, à primeira vista, em uma certa tradição da literatura brasileira que chegou ao céu (ou ao inferno, o que também é bom) com o Rubem Fonseca de tempos atrás, aquele que engendrou O cobrador e A coleira do cão. Entretanto, e felizmente, uma vez que todos estão cansados de imitadores baratos de Fonseca, Dapieve surpreende ao partir para um outro tipo de abordagem.

A premissa poderia resultar em vários romances, quase todos muito ruins (não é o caso de Black music): no Rio, Michael Philips, garoto negro norte-americano, rico, fã de jazz e de basquete, é seqüestrado por três sujeitos usando máscaras de Osama Bin Laden. O líder do bando é um traficante branquelo apelidado de He-Man. Por ser o dono do morro , He-Man enfileira namoradas. Uma delas, Jô, fica encarregada de alimentar o seqüestrado. O triângulo está formado, e é claro que as coisas não vão melhorar: o pai de Michael (ou Maicon Filipe , como quer He-Man) enrola para pagar o resgate, os traficantes do morro estão em guerra com outros traficantes e o FBI (!), por conta de um mal entendido, começa a fechar o cerco.

Black music foge do óbvio graças à inteligência do autor, que estrutura o livro em três partes (além de um prólogo), cada uma narrada por um dos três vértices do triângulo. Pela ordem: Michael, He-Man e Jô. Faz-se questão de sublinhar as diferenças abissais entre os personagens de todos os modos possíveis, inclusive graficamente.

A primeira parte seria a mais convencional mas não menos interessante e terrivelmente engraçada, com o seqüestrado narrando os primeiros dias no cativeiro, seu contato com os bandidos e, claro, com a mulher do bandido. Em que uma coisa dessas é ou pode ser terrivelmente engraçada? Por exemplo, como os seqüestradores usam máscaras de Bin Laden, Michael acredita por um tempo que é refém de uma célula terrorista. Dapieve consegue achados como este: Fiquei nervoso e comecei a contar os tiros como se eles fossem carneiros, na esperança de voltar a cair no sono . Afinal de contas, conforme o próprio Michael diz: A gente se acostuma com tudo .

A segunda parte, narrada por He-Man, vem na forma de letra de rap. He-Man sonha em se tornar o maior rapper brasileiro e não economiza nas rimas para contar a sua própria história. Coisas como Eu não sou D2, mas também tiro onda / Zoou comigo, vai parar no microonda tomam as páginas. Na terceira e melhor parte, narrada por Jô, o autor recorre a um outro recurso para caracterizar a personagem: o uso de maiúsculas. Conforme somos informados desde a primeira parte, Jô sempre fala alto demais, e é gritando que nos conta sobre a irmã ex-prostituta que se casou com um gringo e mudou para a Suíça. Enquanto isso, a tragédia continua se avizinhando, tornando-se inevitável. Os momentos engraçados, seja pela fala da narradora (que afirma ter loção de ridículo ), seja por algumas situações descritas, não param de se avolumar. O mal-estar resultante não é pequeno, uma vez que o riso está longe de aliviar o peso dos absurdos narrados.

O que salta aos olhos em Black music é a brutal incompreensão de cada personagem em relação aos demais. Impressiona, ainda, como toda e qualquer tentativa de aproximação ou de entendimento resulta, invariavelmente, em violência. Dapieve transforma o que poderia ser uma grotesca e irresponsável comédia de horrores em algo vigoroso, imaginativo e até mesmo carregado de algum lirismo.

Manoela Sawitzki tematiza a impossibilidade dos encontros efetivos

Resenha publicada no Jornal do Brasil em 11.09.2009.

Alguém morre de tristeza, e o livro começa. Suíte Dama da Noite, segundo romance da também dramaturga e jornalista Manoela Sawitzki, avança por meio de pequenas homorragias, pequenos cortes , uma voz ao mesmo tempo próxima e distante, familiar e intraduzível. É, acima de tudo, um livro sobre a espera ou, nas palavras da autora, o hiato entre o desejo e a realização , o fardo de um amor que nunca chegaria ao seu destino .

A protagonista tem, não por acaso, nome de personagem de romance barato, Julia Capovilla. Como em um folhetim, ela reencontra Leonardo, um amor que embalsamara muitos anos antes, mas ele está prestes a se casar com Ariana, que, por sua vez, é irmã de Klaus, esposo de Júlia. A ciranda está completa, mas é algo quebradiço, como se aqueles que a formam estivessem todos com os braços quebrados. Júlia e Leonardo, evidentemente, tornam-se amantes. Pode-se dizer que o livro vive mais dos momentos entre os encontros dos personagens do que dos encontros propriamente ditos. Ou talvez ele seja justamente sobre a impossibilidade de encontros efetivos, isto é, um romance inteiro alimentado por hiatos, pelo cansaço anterior ou posterior à consumação de algo que, de resto, nunca se consuma realmente.

Em um segundo momento, de heroína de folhetim (ou personagem frustrada de conto de fadas), é possível enxergar Júlia como um ser essencialmente trágico, uma espécie de prima de Emma Bovary, só que um pouco mais autoconsciente. O escritor norte-americano John Barth disse certa vez que o autoconhecimento é sempre uma má notícia . De maneira certa ou errada, Júlia parece saber de si mesma, e não seria de todo insensato ou pueril ler Suíte Dama da Noite como um acúmulo de más notícias alinhavadas de forma talentosa.

O livro é, evidentemente, uma ficção, mas uma ficção que se alimenta de uma série infindável de outras ficções criadas pela protagonista para si, sobre aqueles que a rodeiam. Júlia, de uma forma ou de outra, está quase sempre mentindo, para os outros e para si. Tudo nela, dela e para ela é uma invenção ou passa por invenções cada vez mais complexas, desde o que sente ou pensa sentir até o que vive ou pensa viver. Essa piscadela metalinguística serve não como desculpa para um exercício masturbatório, algo que se esgota em si mesmo, mas é justamente o que torna o livro invulgar na medida em que diz muito, quase tudo, da personagem principal e do mundo engendrado por ela.

Apenas ao final, quando jorra sins para o mundo e para si , Júlia Capovilla parece intuir o que Molly Bloom, que no desfecho do Ulisses de James Joyce também jorra sins para o mundo e para si , sabe tão completamente: experimentar sem pressa a vida que se apresenta como um movimento sempre presente . Ou talvez tudo não passe de uma falsa epifania, uma ficção a mais, outra mentira. Cada leitor que descubra por si.

Romance narra adultério pelo ponto de vista da mulher traída

Resenha publicada no Jornal do Brasil em 10.04.2010.

No romance Nada a dizer, de Elvira Vigna, temos a narrativa obsessivamente detalhada de um adultério. Surpreende que a voz que conta essa história em todos os seus mínimos detalhes seja não a de um dos amantes, mas, sim, a voz da mulher traída.

Com pouco mais de 60 anos, ela reconstitui cada passo do companheiro, Paulo, em sua malfadada aventura extraconjugal, bem como vários eventos anteriores e posteriores. A descrição cuidadosa, com toques masoquistas, de algo tão doloroso acaba se revelando um esforço da narradora no sentido de reconhecer ou, pior, vir a finalmente conhecer o seu companheiro, entender quem ele de fato é e como ele veio a se tornar quem se tornou.

Mais do que isso: ao não reconhecer ou desconhecer alguém com quem vivia há tanto tempo, a narradora também deixa de reconhecer ou passa a desconhecer a si própria: “Eu não esperava que isso fosse possível. Que eu pudesse não existir, que a minha existência pudesse não ser contabilizada pela pessoa que mais me conhecia no mundo”. Assim, além de administrar a dor pela traição, ela também se vê inteiramente esvaziada de sua identidade. Tudo aquilo que era ou julgava ser como que escorre pelos dedos de suas mãos.

Para além da crise conjugal, há uma espécie de mapeamento do que significa esse episódio para a narradora em função do que ela pensou e viveu desde a juventude, nos anos 60. Nas palavras dela: “Fomos nós, os que fizemos 60 anos no início do século 21, os que lutaram e enfrentaram hostilidades de todo tipo para que pudéssemos viver, todos, do jeito que quiséssemos (…)”.

Ao relembrar o percurso de sua relação com Paulo, ela chama a atenção para as mudanças ocorridas não só em seu relacionamento, mas no mundo. Há 40 anos, eles defendiam o ideário esquerdista e lutavam pela liberdade e pelos direitos do proletariado . Panfletavam, acolhiam fugitivos da ditadura, enfrentavam o calamitoso estado de coisas vigente no Brasil.

Não muito tempo depois, com o fim da repressão, ela vê o companheiro empregar-se em uma grande companhia e colocar em dúvida opiniões que eles sempre tiveram e sobre as quais não havia como ter dúvidas . No discurso, eles renegavam esses papéis predeterminados, toda a suposta imbecilidade pequeno-burguesa ou coisa que o valha.

Na prática, e aqui está a ironia, o leitor vê como eles, sobretudo Paulo, acabam se encaixando justamente nos papéis predeterminados. Vemos o descompasso cada vez maior entre o discurso e as expectativas de outrora e os rumos que suas vidas e o mundo tomaram e continuam a tomar.

A narradora, contudo, não sugere que a decadência de seu relacionamento se deva, de uma forma ou de outra, seja direta ou indiretamente, à falência de todo aquele ideário. Não se trata disso. O que ela faz é conferir tridimensionalidade a esses personagens e às suas motivações por meio de uma contextualização histórica e também pelo registro dessas mudanças bastante significativas, de quem eles foram um dia e de quem eles se tornaram, tanto um para outro quanto em relação ao mundo.

Assim, os acontecimentos narrados ganham maior ressonância e Nada a dizer, longe de se tornar um exemplo de prosa confessional monocórdia e autoindulgente, exibe toda a riqueza de um ponto de vista consciente de si, do outro e do que os cerca.