À procura de si

À procura de si

Artigo publicado hoje n’O Popular.

Relendo Os Embaixadores, de Henry James (1843-1916). A excelente tradução é de Marcelo Pen, lançada pela Cosac Naify em 2010. Espero que alguma outra casa tenha adquirido os direitos da finada editora e se disponha a recolocar o livro nas prateleiras o quanto antes, pois ele é o mais importante da fase tardia do autor. A certa altura (primeiro capítulo da sexta parte), há a descrição de um pátio, trecho que, a meu ver, ilustra bem o estilo de James àquela altura da carreira.

“Ela ocupava, sua anfitriã”, ele começa (e aqui tomo a liberdade de engolir algumas palavras), “o primeiro andar de uma antiga residência ao qual nossos visitantes tiveram acesso por um pátio velho e bem cuidado. O pátio era amplo e aberto, cheio de revelações para nosso amigo sobre o costume da privacidade, o sossego dos espaços intermediários, a dignidade das distâncias e das aproximações (…)”. De fato, a prosa elegante e amiúde elusiva de James tem tudo a ver com o “sossego dos espaços intermediários” e com “a dignidade das distâncias e das aproximações”.

A sutileza de suas construções espelha à perfeição a sutileza das relações humanas ali observadas. Há um prazer evidente em circular por esse universo fadado à destruição, como alguém que caminhasse pelas ruas de uma cidade cuja devastação se aproxima e da qual esse “passeador” está ciente. Mesmo assim, a despeito dessa consciência da destruição, não se trata de um prazer estrangulado ou sequer nostálgico no sentido mais vulgar da palavra, aquele passadismo lamurioso ao qual tantos se entregam sem, contudo, refletir para valer sobre o que passou e o que ficou.

Strether, o protagonista de Os Embaixadores, é um norte-americano que vai a Paris para tentar convencer seu (talvez) futuro enteado a voltar para os EUA. Não entrarei nos detalhes dessa viagem. Para os meus propósitos aqui, basta dizer que Strether já esteve em Paris muitos anos antes, e que sua redescoberta da cidade equivale à descoberta de si. A beleza, em James, reside nas filigranas, nos gestos incompletos, naquilo que é apenas sugerido. Não por acaso, dada a força desse estilo, o crítico e historiador literário Ian Watt dedicou um ensaio inteiro “apenas” ao primeiro parágrafo da obra (esse ensaio consta da edição da Cosac e pode ser encontrado na internet).

Após descrever o pátio, na passagem que citei acima, James passa à casa e, por meio dela, à cidade, ou ao que a cidade significa para o protagonista. Embora narrado em terceira pessoa, o romance está sempre “grudado” em Strether: é por meio dele que sabemos (ou não, o que é mais frequente) o que acontece, e é apenas dele que conhecemos os pensamentos, sentimentos e pressentimentos — exceto, é claro, quando outro personagem expressa isso ou aquilo na presença dele.

Para o “espírito inquieto” de Strether, a casa “correspondia ao estilo nobre e despretensioso dos dias de antanho” e à “velha Paris da qual ele estava em perpétua procura — cuja presença às vezes sentia de modo intenso, cuja falta ainda percebia com intensidade ainda maior”. A questão não é a cidade, mas o indivíduo e o que ele procura, sim, perpetuamente.

O escárnio dos cúmplices

Artigo publicado hoje n’O Popular.

Embora despropositadas, as discussões mais frequentes na CPI da Covid — sobre os usos da hidroxicloroquina e o tal “tratamento precoce” no que se refere à doença, absurdamente defendidos ou, pelo menos, escusados pelos senadores governistas — explicam muito bem a pobreza e a desonestidade intelectuais típicas do bolsonarismo. Os crimes cometidos pelo presidente e por seus homens são evidentes, a ineficácia do medicamento supracitado em relação ao coronavírus já foi comprovada, e a única estratégia que restou aos bolsonaristas é investir na dissonância cognitiva, na distorção dos fatos e, em última instância, no caos — vide as grotescas intervenções de um dos filhos do presidente.

O senador Luis Carlos Heinze, do Rio Grande do Sul, atribui à hidroxicloroquina a pouca incidência de óbitos em Rancho Queimado-SC, quando, na verdade, a letalidade no local está em consonância com a média da doença, observada em toda parte. Segundo foi noticiado, Heinze espera ser apoiado por Bolsonaro em sua candidatura ao governo do RS, o que explica (mas não desculpa) a forma como o senador confunde correlação e causalidade. Tal confusão é muito comum entre os governistas.

Nas últimas semanas, observou-se uma queda das internações e mortes por Covid em todo o Brasil. Não é uma queda acentuada, uma vez que os números estacionaram em um patamar muito elevado, com uma média diária de quase dois mil mortos (até o momento em que escrevo). A queda se deu pelas políticas de isolamento adotadas por governadores e prefeitos mais responsáveis, não obstante todas as pressões que sofreram e ainda sofrem por conta disso. Não por acaso, com a flexibilização ocorrida nas últimas semanas, há quem veja a chegada de uma terceira onda.

Uma projeção da Universidade de Washington aponta que, no pior cenário, teremos 970 mil brasileiros mortos por Covid até setembro do corrente ano. Quase um milhão. A projeção mais otimista? 779 mil óbitos. Em vista disso, a atuação dos defensores do indefensável, baseada em uma demagogia claudicante e obscurantista, é algo que deve ficar registrado como um dos pontos mais baixos da história do Congresso Nacional. A estratégia cínica, a retórica canhestra e as distorções repetidas à exaustão por senadores como Heinze e Marcos Rogério, de Rondônia, ofendem a memória dos quase meio milhão de cadáveres que a inépcia de Jair Bolsonaro ajudou a empilhar até o presente momento.

Confesso que não entendo o cálculo político desses senhores. Nada justifica essa lealdade ao desgoverno, ao descalabro e ao genocídio. Nenhum acordo político, nenhuma liberação de verba, nenhum toma-lá-dá-cá, nada justifica essa atitude tão pusilânime, tão desprezível, tão irresponsável. Precisamos nos lembrar deles. Precisamos não esquecer seus nomes. E precisamos observá-los com atenção, pois uma tragédia como essa pela qual passamos (e da qual não sairemos tão cedo) tem muitos pais, e os mais obtusos são aqueles que aceitam de bom grado o papel de cúmplices.

O zoológico bombardeado

Artigo publicado hoje n’O Popular.

No começo da década de 1940, com a Segunda Guerra Mundial já em andamento, o primeiro-ministro iugoslavo firmou um pacto com a Alemanha nazista. O nome do sujeito era Dragiša Cvetković. Ele fez um acordo com Adolf Hitler mesmo depois de ter sido alertado por Winston Churchill, primeiro-ministro britânico, de que isso não seria uma boa ideia.

O pacto com os nazistas foi firmado em 22 de março de 1941. Depois, em cerca de 48 horas, o serviço de inteligência britânico “instigou e financiou um golpe militar em Belgrado”. Recorro, aqui, ao escritor norte-americano Nicholson Baker e seu excelente Fumaça Humana (tradução: Luiz A. de Araújo. Companhia das Letras). Com o golpe, o príncipe regente, Paulo, foi forçado a abdicar e acabou exilado na Grécia. Bandeiras inglesas e francesas foram hasteadas e o povo tomou as ruas, celebrando. No trono, Churchill colocou um adolescente, Pedro II. Depois, anunciou no rádio: “Esta madrugada, a nação iugoslava encontrou sua alma”.

Ao saber do golpe, Hitler não acreditou (ele nunca acreditava quando as coisas iam mal, e depois culpava os outros pelos percalços). Em seguida, como de praxe, ordenou que a Iugoslávia fosse destruída, sem “mensagens diplomáticas, sem ultimato”. Churchill descreveu o estado de espírito do Führer como o de uma “jiboia que, já tendo coberto a presa de imunda saliva, a visse subitamente arrancada de seus anéis constritores”.

Mas Hitler cumpriu a ameaça, deflagrando a Operação Strafgericht (não havia espaço para sutilezas na cabeça do líder nazista). Partindo da Romênia, a força aérea alemã bombardeou Belgrado por três dias. “Destruíram a estação ferroviária”, escreve Baker, “a ópera, a usina elétrica e muito mais.” Segundo um jornalista da United Press, os moradores da cidade ficaram dias trancados nos porões, com medo de sair às ruas. O cônsul norte-americano descreveu Belgrado como “uma cidade da morte”. Churchill transmitiu mensagens radiofônicas em servo-croata, solidarizando-se com as vítimas, dizendo que os britânicos passavam por uma situação similar e instigando os camponeses iugoslavos a se insurgirem contra a agressão nazista. A resistência, contudo, foi sufocada.

Em seus diários, Churchill descreveu o bombardeio do zoológico de Belgrado: “Uma cegonha ferida passou mancando pelo hotel principal, que era uma massa de fogo. Com passos titubeantes, um urso atordoado e confuso arrastava-se pelo inferno rumo ao Danúbio”.

O bombardeio do zoológico foi reconstituído de maneira ímpar logo no começo de Underground – Mentiras de Guerra (1995), de Emir Kusturica. O filme, agraciado com a Palma de Ouro em Cannes, é um mergulho delirante, de ecos fellinianos — um Fellini de pesadelo, lisérgico-raivoso —, na história da (hoje ex-)Iugoslávia no século XX. Dois conflitos marcam o longa e o percurso brutalmente acidentado do ex-país: a Segunda Guerra Mundial e a Guerra da Bósnia (1992-1995). O recorte expõe o nascimento (forçado) e a morte (fratricida) de uma nação. Os animais no zoológico simbolizam à perfeição — como notou Churchill, sem precisar dizê-lo explicitamente — os civis destroçados pela violência, pelas bombas e pela estupidez dos líderes despreparados e genocidas.

Experiências radicais

Artigo publicado hoje n’O Popular.

Em 20 de fevereiro de 1934, Adolf Hitler se reuniu com industriais alemães a fim de acalmá-los. Os donos do PIB estavam desconfiados do novo regime. Hitler queria privilegiar os gastos militares, coisa que fez de uma forma ou de outra, criando um enorme desequilíbrio econômico — aliás, uma das maiores mentiras sobre a ditadura nazista é a de que as políticas do Führer teriam sido “boas” para a economia da Alemanha. Nós, brasileiros, estamos bem familiarizados com as falácias dos “milagres econômicos” e suas consequências: desequilíbrio fiscal, inflação, desemprego, instabilidade, fome. O “bolo” implode antes que possa ser dividido.

Dias antes daquela reunião com os industriais, em 8 de fevereiro, durante uma discussão do gabinete sobre a construção de uma represa na Alta Silésia, Hitler interveio e disse que “os próximos cinco anos devem ser devotados à restauração da capacidade de defesa do povo alemão”. Ou seja, todos os projetos e políticas de Estado deveriam ser canalizados para o rearmamento, contornando o Tratado de Versalhes e ignorando as necessidades mais urgentes da população. Vale ressaltar que ninguém questionou Hitler ali. E ele conseguiu financiar o rearmamento usando um esquema espúrio de títulos no Reichsbank, o banco central do país. Não havia um plano econômico abrangente. Havia um plano militar e totalitário, com o qual as forças armadas concordaram. Essas reuniões estão muito bem documentadas, e a fonte que utilizo é a biografia Hitler (Cia. das Letras, tradução de Pedro Mais Soares), do historiador britânico Ian Kershaw.

“De sua parte”, escreve Kershaw, “os líderes militares tinham seus interesses atendidos” e confiavam em Hitler como aquele capaz de “devolver ao Exército sua devida posição de poder dentro do Estado”. Claro que o tiro saiu pela culatra, pois, “em cinco anos, a tradicional elite de poder do corpo de oficiais seria transformada em mera elite funcional”, ou seja, em marionetes de um desvairado e genocida. Ao que parece (e isso pode ser constatado em regimes totalitários à direita e à esquerda), a ingenuidade de alguns líderes militares é um problema comum.

Mas não só dos militares, é claro. Os desastres políticos, econômicos e humanitários sempre têm muitos pais. Naquela reunião em 20 de fevereiro de 1934, Hitler ofereceu aos industriais seu “tratamento clássico”, monologando por uma hora e meia de forma vaga e inflamada. Defendeu a propriedade privada e a empresa individual, “negando os rumores de que planejava fazer experiências radicais na economia”. O melhor veio no fim: “Três milhões de marcos foram prometidos e entregues em poucas semanas. Com essa doação, o empresariado ajudava a consolidar o poder de Hitler”.

Kershaw afirma que se tratou de uma “extorsão política”, não de “um apoio entusiástico”. O que se sabe é que, poucas semanas depois, a Associação da Indústria do Reich foi substituída por um órgão inteiramente nazificado, o Estado Imperial da Indústria Alemã — e ninguém deu um pio. Graças às políticas populistas e a outras ações com as quais Hitler nada teve a ver e que sequer compreendia (como o Programa Reinhardt), a economia da Alemanha “bombou” por um tempo. Depois, é claro, vieram as bombas.

Sobre o terror

Artigo publicado hoje n’O Popular.

Quando estava em Israel, conheci um sujeito que escapou por pouco de um atentado terrorista, a explosão de uma pizzaria (por obra e desgraça de um homem-bomba) numa das principais ruas de Jerusalém. No caso, ele teve a sorte da impontualidade: atrasado para um encontro, viu o estabelecimento ir pelos ares a uma distância segura. Sei bem o que é viver em um lugar sob a ameaça constante do terrorismo. Quando lá estive, em 2009, os atentados a bomba já não eram frequentes, mas os terroristas usavam de outros métodos: atropelar pedestres, tiroteios à moda norte-americana, esfaqueamentos. Isso é terrorismo. A possibilidade real de ser alvejado, atropelado, esfaqueado ou feito em mil pedaços por um desvairado.

Falo em terrorismo porque tramita no congresso nacional um projeto de lei que altera a legislação antiterrorismo vigente no Brasil. O trambolho é de autoria do deputado goiano Vitor Hugo (PSL) — na verdade, é um requentado de outro projeto, proposto por um certo Jair Messias Bolsonaro anos atrás, quando era deputado federal. Não é preciso ser jurista para entender que ele visa única e exclusivamente o cerceamento da liberdade de expressão e do debate democrático em nosso país, criminalizando lideranças e movimentos sociais, por exemplo.

O deputado Vitor Hugo conseguiu ressuscitar o projeto por meio de uma manobra regimental que, na prática, agiliza o processo, pulando várias etapas. Criou-se uma comissão especial que, entre outros luminares, inclui aquele mesmo Osmar Terra que passou meses e meses minimizando a pandemia e trabalhando contra as medidas de isolamento e prevenção, ou seja, labutando a favor do vírus que já matou mais de trezentos mil brasileiros. Há mais um menos um ano, Terra “previu” que o coronavírus mataria menos que o H1N1, e afirmou com todas as letras que as mortes por Covid-19 chegariam a, no máximo, duas mil.

O projeto antiterrorista amplia a tipificação da coisa, incluindo “atos preparatórios”, abre a possibilidade do “excludente de ilicitude” (essa aberração estúpida e bárbara) e de “técnicas operacionais sigilosas”. Bem-vindo ao DOPS 2.0. Regras? Não há. Ou, dizendo de forma mais clara, não há regras que impeçam o solapamento da democracia e o recrudescimento do estado de exceção.

Todos sentimos o bodum desse caldo autoritário, e alguns já foram obrigados a prová-lo. Note-se o uso desse dejeto ditatorial chamado Lei de Segurança Nacional para calar opositores do bolsonarismo, em especial aqueles que chamam o presidente de “genocida”. Note-se, também, que a mesma lei (mal) fundamentou a prisão do deputado Daniel Silveira por ordem do Supremo Tribunal Federal. Não me entenda mal: considero desprezíveis as agressões do referido deputado aos ministros do STF e a animada defesa do terrorismo militar representado pelo AI-5 que ele perpetrou naquele vídeo abjeto, mas julgo sagrado o direito à liberdade de expressão — por mais absurdo que seja aquilo que é expressado. Ou há liberdade de expressão, ou não há.

O projeto do deputado Vitor Hugo é mais um esforço no sentido da “ucranização” do Brasil. Em nome de uma democracia seletiva, que só sustenta, apoia e protege os partidários do bolsonarismo (ou seja, em nome de uma pseudodemocracia), ele asfixia a democracia de fato. Ao não distinguir entre terrorismo e crime comum, o projeto lança mais combustível ao fogo totalitário que consome o Brasil. Em relação a isso, o bolsonarismo é pontualíssimo.

Liberais iliberais

Artigo publicado em 02.03.2021 n’O Popular.

“Qualquer coisa, menos liberal”, disse a economista norte-americana Deirdre McCloskey há mais de um ano. Foi em uma entrevista ao jornal O Estado de São Paulo (edição de 24 de janeiro de 2020), que você pode encontrar facilmente na internet. Ela se referia, claro, a Jair Bolsonaro. Não obstante a nomeação de Paulo Guedes como ministro da economia, o caráter iliberal de Bolsonaro sempre me pareceu óbvio. A estupidez da fórmula “liberal na economia, conservador nos costumes” era apenas a faceta mais visível e risível de tal iliberalidade. A própria McCloskey explicou na ocasião: “A ideia principal do liberalismo é que não haja hierarquias: homem sobre mulher, heterossexuais sobre gays ou Estado sobre indivíduos”. Ou seja, não é possível separar o aspecto econômico do sociocultural. Ou o indivíduo é liberal na economia e nos costumes, ou não é liberal. Simples assim.

No Brasil, sempre houve muita confusão a respeito do liberalismo. O governo Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, por conta de algumas privatizações bem-vindas (e malfeitas), foi taxado de “neoliberal”, o que é uma idiotice: o Estado entre 1995 e 2001 era tão paquidérmico, insustentável e obtuso quanto antes ou depois. Em governos tucanos e petistas, e agora no bolsonarismo, temos no máximo o “liberal do bolso alheio”, aquela criatura liberalíssima em relação ao patrimônio dos outros, mas que defende com unhas e dentes o direito de mamar nas tetas estatais e garantir os próprios caraminguás às custas da União. Guedes é um exemplo acabado de liberal do bolso alheio. Na verdade, tacanho e acovardado como poucos, o ministro é um exemplo acabado de muitas coisas, todas bem ruins. Nesse sentido, uma vez que as reformas e privatizações que ele propõe foram porcamente pensadas e seriam abestalhadamente levadas a cabo, é uma boa notícia que Bolsonaro o tenha castrado.

Não, não estou dizendo que Bolsonaro “acertou”: ao aparelhar a Petrobrás e outras estatais, intervir de maneira equina e cavar uma crise que se revelará onerosíssima (para o nosso bolso) e incontornável, suas atitudes cavalgaram, relinchando, para o outro extremo, e são as piores possíveis. A ironia é que, no começo da década passada, a sra. Dilma Rousseff cometeu exatamente os mesmos erros. Deu no que deu, embora eu não seja tão otimista em relação ao destino de Bolsonaro, dado o apoio dos coturnos (sobretudo policialescos) que ele arregimentou. Em 2023, sentiremos saudades de 2021.

Voltando àquilo que eu falava sobre o nosso iliberalismo, aproveito para pontuar que o professor João Cezar de Castro Rocha tem falado a esse respeito por aí. Ele é autor do melhor estudo sobre os tempos sifilíticos que vivemos: Guerra Cultural e Retórica do Ódio, lançado há pouco pela Caminhos (falarei a respeito no futuro). Junto com A Tirania dos Especialistas (ed. Civilização Brasileira), de Martim Vasques da Cunha, é uma leitura imprescindível para mensurar a cova em que nos enfiamos. Ou, melhor dizendo, covas: mais de 250 mil brasileiros já morreram por culpa da incompetência e da desumanidade de Bolsonaro no (anti)tratamento da Covid-19. Não há vacina que nos salve do iliberalismo e da voracidade genocida.

Aquino e a fronteira

Artigo publicado em 16.02.2021 n’O Popular.

Outro dia escrevi alhures que a grande literatura policial não é nada sem os espaços geográficos em que se desenrola, os quais sempre aparecem ligados de modo inextricável aos espaços morais. É impossível pensar em James Ellroy ou Paula L. Woods sem Los Angeles, Donna Leon sem Veneza, Dennis Lehane sem Boston, Ian Rankin sem Edimburgo, Edyr Augusto sem Belém do Pará, Sara Paretsky sem Chicago, George Pelecanos sem Washington e Garcia-Roza sem Copacabana e o bairro Peixoto, no Rio. Pela sua própria natureza, em que se combinam extroversão e introversão, fraturas expostas e hemorragias internas, todo romance policial é também a história de um palmilhar atento por ruas e avenidas, ermos e multidões, silêncios e confissões, becos e vielas, almas e consciências, cortiços e mansões, fronteiras e interiores.

E não há gênero literário que apresente de forma mais direta as transformações sofridas por essa ou aquela localidade no decorrer do tempo. As peculiaridades de cada lugar são expostas pelos crimes que ocorrem e pelas maneiras como os envolvidos lidam com eles. Não me refiro à mecânica mais geral da coisa (mata-se por dinheiro, vingança ou loucura), mas às especificidades — nos melhores livros, as peças e os encaixes daquela mecânica são tão particulares quanto as receitas culinárias.

Tenho pensado nessas coisas por duas razões. A primeira é que assino o posfácio da nova edição de Calibre 22, penúltimo livro de Rubem Fonseca. O livro deve chegar às livrarias ainda em 2021, por obra e graça da Nova Fronteira (a editora vem relançando desde o ano passado, com um projeto gráfico porreta, a obra completa de Zé Rubem, morto no ano passado). E a segunda razão é que, após mais de uma década lidando com outros meios e projetos, Marçal Aquino lançará um novo romance, Baixo Esplendor, em abril. Que “o mais cruel dos meses” traga algo tão bom é o tipo de coisa que só acontece no Brasil, lugar onde todos os meses são cruéis, ainda mais nesses tempos dilaceradores que vivemos.

Se o gigante Zé Rubem dispensa apresentações, Aquino é um autor que merece bem mais atenção da nossa parte. Não se trata, é claro, de um escritor obscuro como eu, até porque várias de suas narrativas foram muito bem adaptadas para o cinema, a maioria pelo cineasta Beto Brant: Os Matadores (baseado em conto que pode ser lido na coletânea Famílias Terrivelmente Felizes), O Invasor e Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios; há também Ação Entre Amigos, mas, salvo engano, o roteiro desse é original. O ator Marco Ricca estreou na direção com uma bela adaptação de Cabeça a Prêmio, meu livro predileto do sujeito.

Dada a importância dos espaços geográficos a que aludi nos primeiros parágrafos, note-se que a “zona” devassada por Aquino é, muitas vezes, a fronteiriça. Pensando por esse lado, é curioso como a atmosfera de “terra de ninguém” vem se espalhando pelo Brasil. É como se o nosso país se tornasse, inteiro, uma região fronteiriça, conflagrada, “aberta” no mais amplo sentido Velho Oeste do termo. Isso, para mim, só reafirma a relevância das narrativas de Aquino para a compreensão de um estado de coisas — criminoso e armado até os dentes — que se torna cada vez mais generalizado.

Dois artigos n’O Popular

Os pequenos artigos abaixo foram publicados, respectivamente, em 19.01.2021 e 02.02.2021 no jornal O Popular.

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DÉCADAS PERDIDAS

Eu me lembro de quando era moleque, ali por 1993, e os entendidos chamavam os anos oitenta de “década perdida”. Eu olhava para trás com os meus olhos já um tanto calejados e via: o último dos ditadores (Figueiredo), que dizia preferir “cheiro de cavalo a cheiro de povo” e que “um povo que não sabe nem escovar os dentes não está preparado para votar”; um presidente civil (Tancredo Neves, eleito indiretamente) adoecendo e morrendo antes que pudesse fazer qualquer coisa boa ou ruim; José Sarney, vice do falecido e literato de quinta categoria, assumindo o cargo e chocando zero pessoas com sua incompetência; e a eleição de Fernando Collor de Mello, o “caçador de marajás”, tão inepto quanto seu antecessor, mas que pelo menos chegou lá pelas urnas e foi devidamente ejetado não muito depois.

Se a década de 1980 foi “perdida”, o que dizer dos ruidosos & ruinosos anos 2010? Dilma Rousseff foi tão incompetente quanto Sarney e Collor, e a exemplo deste último foi devidamente ejetada, mas Jair Bolsonaro vai muito além, não é mesmo? Atolado na inércia golpista e na retórica desumana e obscurantista, não me canso de repetir, Bolsonaro é responsável direto pela morte de centenas de milhares de brasileiros.

Completo 41 anos por esses dias. É desalentador pensar que, independentemente do que aconteça nos próximos anos e eleições, a devastação institucional, ambiental, econômica e sanitária causada por Bolsonaro não será reparada tão cedo. Estamos condenados a viver nas ruínas, praticando o canibalismo — figurativamente (e talvez literalmente dentro de alguns anos). E é provável que, ao expirar daqui a um tempinho, eu tenha passado bem mais do que dois terços da minha vida lidando com as dificuldades criadas e alimentadas por ineptos e criminosos, afogando no estrume que eles evacuaram e seguem evacuando sobre as nossas cabeças. Desalentador é pouco, bicho.

Nunca entendi aqueles que defendem e idolatram políticos. A meu ver, isso é um claro indício de paspalhice. Getulistas, brizolistas, lulistas, dilmistas, bolsonaristas. Não seria mais saudável desconfiar? Desconfiar de cada mísera palavra, fiscalizar ações e omissões, cobrar, criticar, ridicularizar (todo político é, por natureza, ridicularizável), sacanear, desmentir e jamais — eu disse jamais — festejar ou parabenizar pelo que quer que seja. Não se parabeniza políticos. Não se festeja políticos. Quando fazem algo de bom (é raríssimo, mas acontece), estão apenas cumprindo com a obrigação. Só isso, e nada mais. Pelo que recebem obscenamente bem, a propósito.

Aliás, “obscenidade” é uma palavra que serve muito bem para descrever a política brasileira em geral e o atual governo em particular. Exemplo: os partidários e agitadores da onda boçal-conservadora acham que obscenidade é uma exposição queer ou a galera brincando de golden shower no carnaval. Não, não. Obscenidade é um ministro da saúde propositalmente incapaz de traçar e executar uma estratégia de combate a uma pandemia. A ineficiência é o projeto bolsonarista. A ineficiência, o caos e o fogo. O governo arrasta os brasileiros pelos cabelos até o esgoto mais próximo e trata de afogá-los um por um. Sim, é isso mesmo. O governo quer matar você. Fique esperto.

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REPÚBLICA DO LEITE CONDENSADO

Ao que parece, morreremos todos afogados em leite condensado e cloroquina. Bom, não sei vocês, mas eu odeio leite condensado. E só descobri na semana passada que Jair Bolsonaro gosta de comer pão francês com essa iguaria pegajosa e insuportavelmente doce. Ao que parece, a infantilidade contamina até o paladar do presidente. Claro que esse é o menor dos problemas dele — e o menor dos nossos, também.

Com a cloroquina é outra história. É um grande problema. Ao contrário do que muitos dizem por aí de forma meio automática, não é que esse medicamento “não tenha eficácia comprovada no tratamento da Covid”. Não, não se trata disso. O correto é: a cloroquina é comprovadamente ineficaz no tratamento da Covid. Percebem a diferença? Nada impede que algo “sem eficácia comprovada” venha a ter comprovada essa eficácia no decorrer do tempo, por meio de mais estudos, testes etc. Mas a cloroquina é comprovadamente ineficaz. Ou seja, estudos, testes etc. foram realizados e verificou-se o que todo mundo (com alguma coisa na cabeça) já sabia: em se tratando da Covid, essa medicação não funciona, ministrada “precocemente” ou não.

Claro que isso não impediu o governo federal de gastar quase noventa milhões de reais em cloroquina e outros medicamentos comprovadamente ineficazes, como a azitromicina. Vocês sabem com que o governo federal NÃO gastou recursos públicos até outro dia? Vacinas, agulhas, seringas, campanhas de informação ou conscientização e outras coisas imprescindíveis no contexto de uma pandemia — a pior que enfrentamos em mais de um século. Na verdade, Jair Bolsonaro trabalhou ativamente pela desinformação, contra o isolamento social, contra a vacina e contra a própria população.

Eu já disse isso e volto a repetir: a postura, os discursos e a boçalidade de Jair Bolsonaro são (comprovadamente) responsáveis diretos pela morte de milhares de brasileiros. Meses atrás, citei aqui mesmo neste espaço um estudo a respeito disso. Há uma correlação direta entre o “trabalho” negacionista feito por gente como Bolsonaro, seus ministros, assessores e correligionários e a quantidade absurda de mortes por Covid no Brasil. Diante da postura abjeta do “mito” e das mentiras que ele inventa e espalha, muitos por aí se descuidam. Em uma pandemia, descuido custa vidas, mentiras custam vidas, palavras irrefletidas ou equivocadas custam vidas, desorganização e falta de planejamento custam vidas, desgoverno custa vidas, desumanidade custa vidas, Bolsonaro custa vidas.

A população brasileira corresponde a 2,7% da população mundial. No entanto, as mortes por Covid no Brasil correspondem a 9% do total no planeta inteiro. Isso não é por acaso. Não é uma tragédia natural, não é uma catástrofe inevitável, não é um tsunami contra o qual nada poderíamos fazer. Não. Isso é uma tragédia criada e alimentada dia após dia pelos atuais governantes. Vivemos e morremos na República do Leite Condensado, na República das Rachadinhas, na República do Centrão, na República dos Fura-Filas. Parafraseando James Joyce, o Brasil de Bolsonaro é uma porca que devora os próprios filhotes.