O escárnio dos cúmplices

Artigo publicado hoje n’O Popular.

Embora despropositadas, as discussões mais frequentes na CPI da Covid — sobre os usos da hidroxicloroquina e o tal “tratamento precoce” no que se refere à doença, absurdamente defendidos ou, pelo menos, escusados pelos senadores governistas — explicam muito bem a pobreza e a desonestidade intelectuais típicas do bolsonarismo. Os crimes cometidos pelo presidente e por seus homens são evidentes, a ineficácia do medicamento supracitado em relação ao coronavírus já foi comprovada, e a única estratégia que restou aos bolsonaristas é investir na dissonância cognitiva, na distorção dos fatos e, em última instância, no caos — vide as grotescas intervenções de um dos filhos do presidente.

O senador Luis Carlos Heinze, do Rio Grande do Sul, atribui à hidroxicloroquina a pouca incidência de óbitos em Rancho Queimado-SC, quando, na verdade, a letalidade no local está em consonância com a média da doença, observada em toda parte. Segundo foi noticiado, Heinze espera ser apoiado por Bolsonaro em sua candidatura ao governo do RS, o que explica (mas não desculpa) a forma como o senador confunde correlação e causalidade. Tal confusão é muito comum entre os governistas.

Nas últimas semanas, observou-se uma queda das internações e mortes por Covid em todo o Brasil. Não é uma queda acentuada, uma vez que os números estacionaram em um patamar muito elevado, com uma média diária de quase dois mil mortos (até o momento em que escrevo). A queda se deu pelas políticas de isolamento adotadas por governadores e prefeitos mais responsáveis, não obstante todas as pressões que sofreram e ainda sofrem por conta disso. Não por acaso, com a flexibilização ocorrida nas últimas semanas, há quem veja a chegada de uma terceira onda.

Uma projeção da Universidade de Washington aponta que, no pior cenário, teremos 970 mil brasileiros mortos por Covid até setembro do corrente ano. Quase um milhão. A projeção mais otimista? 779 mil óbitos. Em vista disso, a atuação dos defensores do indefensável, baseada em uma demagogia claudicante e obscurantista, é algo que deve ficar registrado como um dos pontos mais baixos da história do Congresso Nacional. A estratégia cínica, a retórica canhestra e as distorções repetidas à exaustão por senadores como Heinze e Marcos Rogério, de Rondônia, ofendem a memória dos quase meio milhão de cadáveres que a inépcia de Jair Bolsonaro ajudou a empilhar até o presente momento.

Confesso que não entendo o cálculo político desses senhores. Nada justifica essa lealdade ao desgoverno, ao descalabro e ao genocídio. Nenhum acordo político, nenhuma liberação de verba, nenhum toma-lá-dá-cá, nada justifica essa atitude tão pusilânime, tão desprezível, tão irresponsável. Precisamos nos lembrar deles. Precisamos não esquecer seus nomes. E precisamos observá-los com atenção, pois uma tragédia como essa pela qual passamos (e da qual não sairemos tão cedo) tem muitos pais, e os mais obtusos são aqueles que aceitam de bom grado o papel de cúmplices.