Resenha de “O rei pálido”

Mabe

[Texto originalmente publicado na revista Vida Simples,
em meados de 2010
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A última tela de Manabu Mabe continua em seu ateliê, confortavelmente recostada em um cavalete. Ela traz uma das imagens-assinatura do pintor, uma figura algo disforme, meio arredondada. O fundo preto ao mesmo tempo realça e oprime as cores vivas (vermelho, amarelo, azul) da figura em primeiro plano, como se ela estivesse sendo abraçada ou engolfada pela escuridão. Nesse sentido, a tela talvez possa ser observada como uma metáfora sobre o fim: Mabe faleceu em 1997, antes de terminá-la.

Muito embora seja um dos pintores abstratos mais importantes e premiados do século XX, o interesse pela sua obra, ao invés de aumentar, arrefeceu desde a sua morte. Isso se deveu a uma série de fatores, como, por exemplo, uma gestão política sofrível, que não prima pela preservação e divulgação dos nossos bens culturais e artísticos, e também ao fato de o mercado estar repleto de compradores emergentes que, sem o devido conhecimento de arte, negociam obras irrefletidamente. Com a desvalorização, houve também um crescente desinteresse midiático pelo pintor. Felizmente, graças a diversas iniciativas perpetradas pelo Instituto Manabu Mabe, isso começou a mudar e ele, aos poucos, reassume o lugar que lhe é devido.

Dentre essas iniciativas, está a inauguração de um museu nipo-brasileiro de artes visuais que funcionará no prédio do antigo Colégio Campos Salles, na Liberdade, tradicional bairro paulistano de imigrantes orientais, e um espetáculo de butô-MA inspirado nas telas de Mabe e coreografado pelo respeitadíssimo Tadashi Endo. O museu era um sonho antigo do próprio Mabe, e a ideia original era instalá-lo em sua própria residência. Para tanto, ele começou, inclusive, a comprar de volta algumas de suas obras; Mabe viajava muito e produziu uma quantidade considerável de telas que foi deixando pelo mundo. Hoje, uma das atribuições do Instituto (em parceria com o Espaço Arte e Cultura), capitaneado por Joh e Yugo Mabe e Ely Sayemi Iutaka, respectivamente filhos e sobrinha do pintor, é localizar e registrar essas obras. Quando possível, catalogá-las e consegui-las de volta a fim de expor no futuro museu.

 

MABISMO

Mabe veio para o Brasil aos dez anos, em 1934, a bordo do navio La Plata Maru. Com ele, vieram os pais, os irmãos e os crayons que usava para desenhar na escola primária no Japão. A família veio, a exemplo de tantos outros imigrantes japoneses, para trabalhar nos cafezais do interior paulista (não por acaso, a autobiografia de Mabe, lançada em 1994 e esgotada há anos, intitula-se “Chove no Cafezal”). Estabeleceram-se primeiro na região de Birigui, no noroeste do estado, depois em Guararapes e posteriormente em Lins, a oeste. Sempre que o trabalho na lavoura permitia, Mabe desenhava. Em 1945, comprou um tubo de tinta a óleo e começou a pintar com esse material. Pintava paisagens e naturezas mortas em papelões e tábuas de madeira, dissolvendo a tinta em querosene. Também fazia cópias de pinturas de Antonio Parreiras (1860-1937) publicadas em calendários. Ele conta em sua autobiografia: “Como o cafezal exigia meu trabalho até aos sábados, e como meus amigos contavam comigo, constantemente, para jogar beisebol, a pintura ficava reservada aos domingos, feriados e dias de chuva”.

Seu primeiro professor foi um fotógrafo de Lins que estudara pintura, Teisuke Kumazaka. Com ele, Mabe aprendeu a preparar a tela, a dissolver a tinta com terebentina e óleo de linhaça e, sobretudo, a fazer croquis. Em 1947, durante uma passagem por São Paulo, visitou Tomoo Handa (1906-1996), pintor e jornalista bastante respeitado na época, mostrou a ele algumas pinturas e recebeu conselhos valiosos, como: “Não pinte conceitualmente. Observe melhor”. Dois anos depois, perderia o pai, vitimado por um câncer no estômago. Mesmo no hospital, Mabe aproveitava para praticar, desenhando seus croquis.

Por essa época, foi convidado a frequentar o Grupo Quinze, criado por artistas como Handa, Yoshiya Takaoka (1909-1978), Yuji Tamaki (1916-1979) e Tadashi Kaminagai (1899-1982), entre outros. O próprio Mabe narra, em sua autobiografia, como foi a primeira reunião com o grupo, um estudo de nu: “A modelo era uma brasileira de 23 anos. Pela primeira vez, vi uma mulher nua. Os melhores ângulos, entretanto, estavam todos ocupados pelos que chegaram primeiro. O único lugar disponível era aos pés da moça deitada, sob um ângulo muito delicado da modelo, vista por baixo. Era totalmente impossível produzir uma pintura naquelas condições”.

família no mesmo ano em que ele, 1934. Tiveram três filhos: Joh, Yugo, que hoje também pinta, e Ken, arquiteto. Com o passar do tempo, a pintura se tornara a atividade mais importante para Mabe, em vez de ser apenas um hobby, conforme lhe sugerira o pai. Assim, em 1957, disposto a arriscar, ele vendeu o cafezal e se mudou com a mulher e os filhos para São Paulo. Passaram por muitas dificuldades a princípio, com o artista fazendo molduras, tingindo gravatas e até mesmo pintando placas para sobreviver. Sua persistência, contudo, foi recompensada.

A revista Time, em um artigo dedicado a ele e publicado na edição de 02 de novembro de 1959, chamaria aquele de “o ano de Manabu Mabe”: foi considerado o melhor pintor nacional na V Bienal de São Paulo, quando recebeu o certificado das mãos de Juscelino Kubitschek, e, pouco depois, premiado na I Bienal Jovem de Paris. No decorrer dos anos e décadas seguintes, continuaria expondo em museus, bienais e galerias de todo o mundo, incluindo em seu país natal.

Artisticamente, a evolução de sua técnica levou inclusive à criação de uma categoria, o “mabismo”. Inadvertidamente, a melhor descrição desse estilo, que nunca deixou de sofrer mudanças, isto é, de evoluir, foi feita pelo próprio artista em sua autobiografia, referindo-se a um outro gênio: “Mas, depois que passei ao abstrato, sinto-me atraído pelo estilo de vida de Picasso, que pintasse o que quisesse, seria sempre Picasso. Sente-se o seu cheiro, na sua pintura”. De fato, sobretudo a partir dos anos de 1950, quando completou sua “fase de estudo” e experimentou o expressionismo abstrato, o impressionismo e o fauvismo para, mais tarde, abraçar um abstracionismo de cores cada vez mais vibrantes, é impossível olhar para uma tela de Mabe sem se sentir jogado em uma espiral sinestésica, em que cheiros e sons particularíssimos vêm à mente do observador. O estilo seria, ainda, fruto de uma junção oriente-ocidente: seus traços e formas denotam uma sensibilidade japonesa, ao passo que as cores fortes, vivas, dizem respeito à brasilidade desenvolvida desde que aportou em Santos.

 

MA BE MA

O espetáculo inspirado nas telas de Mabe intitula-se Ma be Ma e foi coreografado por Tasashi Endo, um dos maiores dançarinos e coreógrafos de butô em todo o mundo. Endo foi discípulo de Kazuo Ohno e, a exemplo de Mabe, criou um estilo próprio e inconfundível no âmbito de sua arte, chamado de butô-MA. No entanto, não é “apenas” isso que aproxima os dois artistas: a exemplo de Mabe, Endo também se mudou cedo para um outro país (no caso, a Alemanha, onde vive há quarenta anos) e ali desenvolveu o seu trabalho. Tanto quanto o pintor, o coreógrafo compreende perfeitamente o que é estar entre dois lugares, duas culturas, e criar artisticamente a partir desse estado de suspensão. Na verdade, é justamente esse o conceito do butô-MA: colocar-se no espaço que há entre as coisas.

Ma be Ma estreou em São Paulo em agosto, no SESC Ipiranga, onde teve três apresentações. Outras estariam previstas para meados de setembro. O Museu Manabu Mabe, por sua vez, está praticamente pronto e logo será inaugurado. Será um espaço para que se conheça e aprecie não só a obra de Mabe, mas também as de outros artistas nipo-brasileiros. Levando-se em conta a grandeza de Manabu Mabe, estava mais do que na hora de sua arte voltar à ordem do dia.

 

Saiba mais sobre Manabu Mabe e as ações do Instituto Manabu Mabe clicando AQUI.

Coreanos

Um conto.

 

Nunca teve problemas com vizinhos. Até que começou a ter problemas com vizinhos. Mas, por meses e meses, não obstante os problemas, preferiu não reclamar com a síndica. Torcia para que os problemas se resolvessem sozinhos. Talvez eles passem a se comportar de outra forma, pensava, talvez se mudem, talvez morram, talvez se matem, olha como brigam, os filhos da puta. Mas os vizinhos não passaram a se comportar de outra forma, não se mudaram, não morreram.
E assim os problemas continuaram.
Certa manhã de domingo, por volta das sete, ao acordar pela enésima vez com uma canção gospel, o arrastar de um móvel e o som de berros e passos, quem anda de salto alto às sete da manhã de um domingo?, concluiu que não tinha mais escolha. Fez uma reclamação por escrito. A síndica disse que ia tomar providências, mas não fez nada. Semanas depois, os vizinhos tiveram a pior briga até ali. A mulher berrava. O homem berrava. Objetos foram atirados. Portas batendo. Urros. Xingamentos. Outra reclamação por escrito. A síndica não gostava de problemas com os vizinhos, e sua política se tornou evidente: a não ser que seja caso de polícia, o condomínio se limita a advertir os moradores problemáticos.
Uma advertência, e mais nada?
Veja bem…
Nem mesmo uma multa?
Não.
Ele vai acabar esganando essa mulher. Daí a senhora vai ter o seu problema de polícia.
Isso não vai acontecer. Aqui só mora gente de bem.
Ela berrou que vai partir a cabeça dele com um martelo.
O senhor deve ter ouvido errado.
Eu ouvi certinho.
O senhor deve ter ouvido errado.
As paredes são finas, o teto parece de papelão, dá pra ouvir tudo.
O senhor deve ter ouvido errado.
Se estou deitado na cama e esse vizinho vai ao banheiro, eu ouço o sujeito mijando e peidando e cagando.
Que horror. Por que o senhor ouve essas coisas?
Porque é impossível não ouvir.
O senhor não devia ouvir isso.
Mas é o que estou tentando te dizer. É impossível não ouvir. As paredes são finas, o teto parece de papelão, dá pra ouvir tudo. E eles berram. Eles sempre berram. Eles berram o tempo todo, sem parar.
Ninguém berra o tempo todo, sem parar.
Eles berram quase que o tempo todo. Ficou melhor assim?
É bem difícil entender o que uma pessoa diz quando berra.
Eu não acho nem um pouco difícil entender o que uma pessoa diz quando berra. Eu acho difícil entender o que uma pessoa diz quando fala baixinho. E aqueles dois são incapazes de falar baixinho. Eles nunca cogitaram falar baixinho na vida. Acho que eles nem sabem o que é falar baixinho. Eles devem achar que nem existe isso de falar baixinho. Falar baixinho não é uma opção pra eles. E é por isso que eles só sabem berrar. E eles berram quase que o tempo todo. E ela berrou que vai partir a cabeça dele com um martelo.
O senhor deve ter ouvido errado, aqui só mora gente de bem.
Gente de bem.
Eles são casados há pouco tempo.
O que isso tem a ver?
Tem casal que demora a se acertar.
Eles ficam o tempo inteiro se acertando.
Aqui só mora gente de bem.
Gente de bem? Que diabo é isso?
Gente de bem é gente de bem. Todo mundo sabe o que é gente de bem, ora essa.
Gente de bem, gente de bem, gente de bem. Minha senhora, presta atenção: não existe gente de bem NA PORRA DESSE PAÍS.
Como as advertências da síndica não surtissem efeito (na verdade, ele começou a duvidar que a síndica os tivesse advertido; a única coisa que os acalmava era interfonar para a portaria e pedir ao porteiro que interfonasse para os vizinhos, dizendo que alguém estava reclamando dos barulhos e da gritaria; envergonhados, os dois evitavam brigar por alguns dias, mas a vergonha passava logo, ou o ódio mútuo — e o ódio dela à sogra — suplantava a vergonha, e tudo recomeçava), e sem saber o que fazer, ele resolveu papear com um dos zeladores do condomínio, o mais falastrão deles. Quem eram os vizinhos, afinal? Sabia muita coisa acerca do casamento (como foi dito, a mulher não suportava a sogra, e as piores brigas ocorriam às vésperas dos feriados prolongados, quando a visita da sogra ou à casa da sogra era incontornável; embora casados há pouco tempo (segundo a síndica), raramente trepavam, e ele culpava a mulher por isso, aos berros, ao que ela respondia, também aos berros e chorando, que ele era um animal, você que é uma frígida de merda, eu não sou frígida, você é que é um bruto, bruto?, é, um bruto, um bronco, um bicho, você gosta, gosto porra nenhuma, toda mulher gosta, gosta porra nenhuma, gosta, sim, você me machuca, você é um animal, ah, vai se foder, vai você se foder, seu babaca, cala essa boca, sua frígida, eu vou partir a sua cabeça com um martelo, tá me ouvindo? TÁ ME OUVINDO?) e da rotina deles (iam a uma igreja evangélica nos finais de semana, daí a barulheira dominical, música gospel às sete da manhã, o apreço do homem por berrar que ela estava atrasada de novo, ao que ela respondia, e daí?, só vou nessa merda pra você não me encher o saco, pois não precisa ir se não quiser, ah, mas eu vou, sim, pra você e pra bosta da sua mãe não me encherem o saco, você é que enche o meu saco, vou contar pro merda do seu pastor o animal que você é, pode contar, não tô nem aí, vou contar mesmo, e eu vou contar que você é uma frígida de merda que não dá essa sua bucetinha de ouro pro marido, se o meu marido não fosse um animal escroto eu talvez sentisse vontade de transar com ele, porra nenhuma, você sempre foi essa merda frígida, por que casou comigo, então?, porque eu sou burro, eu sou burro pra caralho, bem que a minha mãe avisou, avisou que você é burro, burro pra caralho?, vai tomar no cu, vai tomar no cu você e a bosta da sua mãe, a sua mãe que se foda, não fala assim da minha mãe, eu falo como eu quiser daquela vaca, vai tomar no cu, sua frígida babaca, para de me chamar disso, então para de me encher o saco e para de xingar a minha mãe, pega a porcaria da toalha pra mim, pega você, eu tô saindo do chuveiro, azar o seu, vou molhar o quarto inteiro, azar o seu, quê que custa levantar essa sua bunda gorda da cama, abrir o armário e pegar a porcaria duma toalha pra mim?, quê que custa não se atrasar pra igreja?, vou atrasar mais ainda se você não pegar logo essa toalha, seu jumento, vou pegar a toalha, mas é pra enfiar no seu cu, que inferno, pega a toalha, por favor, só pega a toalha, que toalha que nada, eu vou enfiar é outra coisa no seu cu, sua cretina, que é pra você aprender, enfiar o quê?, você sabe muito bem o quê, vai enfiar porra nenhuma, me provoca pra você ver, essa sua lombriga aí nem fica dura direito, seu porco meia-bomba, não fica dura porque você é uma cretina e ninguém tem tesão em mulher cretina, e ninguém tem tesão num hipopótamo gordo, desajeitado e bruto que nem você, vai à merda, vai cagar, vai você, vai você, babaca, babaca é você, você que é, você), mas não sabia quem e como eram.
Coreanos, respondeu o zelador. Mas tem certeza que o barulho vem do apartamento deles?
Absoluta.
Essas coisas enganam, às vezes.
Tenho certeza.
Eles são caladinhos e educadinhos.
Ela tava no banho e pediu pra ele pegar uma toalha. Ele disse que ia pegar, sim, mas pra enfiar no cu dela.
Eita.
Isso foi a coisa mais leve que ele falou.
Rapaz.
Os dois aos berros.
Jesus.
Eles não são caladinhos nem educadinhos.
Caralho.
Já reclamei por escrito duas vezes, já falei com a síndica, mas ela não fez nem vai fazer porra nenhuma, isso eu já entendi.
Ela é gente de bem.
Claro que é. Aqui só mora gente de bem. Como é que a síndica não ia ser gente de bem?
Calma. Ela só gosta de conversar bastante antes de multar ou coisa parecida. Na verdade, pra ser sincero, acho que ela nunca multou ninguém na vida. Fica só na base da conversa mesmo, mas tudo acaba se resolvendo. A gente nunca teve nenhum problema assim sério aqui.
Pois eu acho que ela nem falou com eles. Só disse que ia falar pr’eu sair do pé dela.
É possível. Ela não gosta de bate-boca.
Que bate-boca? Ela é a síndica. É só pedir pro casalzinho dar uma maneirada.
A gente nunca sabe como as pessoas vão reagir.
Mas isso faz parte do trabalho dela, caramba.
Ela é meio tímida, fica sem graça de chamar a atenção dos outros.
Ela fica dizendo que eu tô ouvindo errado.
Olha, pode ser.
Eu não tô ouvindo errado.
Se o senhor diz, eu acredito no senhor. Mas pode ser.
Não durmo direito faz um tempão. Eles não têm hora pra brigar. Chego no banco parecendo um zumbi. Não consigo dormir nem no domingo.
Por quê?
Eles me acordam todo domingo com a desgraça daquela música insuportável.
Que música?
Gospel.
O senhor me desculpe, mas não tem nada de errado com música de louvor.
Não tô dizendo que tem algo de errado com a desgraça dessa música.
Louvor e adoração não fazem mal pra ninguém.
Tô dizendo que é errado ligar o som na maior altura às sete da manhã de domingo.
“Deus proverá.”
Tô dizendo que é errado ficar berrando, berrando, berrando feito dois possuídos.
Não fala uma coisa dessas, por favor.
Achei que seria apropriado, dadas as circunstâncias e o rumo dessa conversa.
Olha só, eu…
O quê?
Já que o senhor insiste, eu vou trocar uma ideia com o irmão. Ele é gente boa.
Ele não é nada bom com a porra da mulher dele.
O senhor xinga demais, isso não é bonito.
A minha vida não anda nada bonita, e a culpa é desses dois arrombados.
Eu prefiro não sair por aí xingando e julgando os outros.
Bom, eu me reservo o direito de xingar e julgar quem fica berrando na minha orelha.
Vou falar com ele.
“Deus proverá.”
Não é certo fazer piada com isso.
Eu não tô rindo, não.
Tá, sim, senhor. Mas tudo bem. Cada um sabe da própria vida.
E eu sei da vida desses dois, mas a verdade é que eu não queria saber, não. Não queria saber nada.
Vou falar com ele.
Obrigado. Até mais.
Se o zelador conversou ou não com o sujeito, ele não soube nem procurou saber. Provável que tenham se reunido para falar mal dele. Sujeitinho desrespeitoso, o senhor precisava ver. Deve ser ateu. Trabalha em banco, mas aposto que é comunista.
Etc.
E os problemas continuaram.
Agora, pelo menos, ele sabia quem eram. Coreanos. Passou a prestar mais atenção. E não demorou muito para encontrá-los no elevador. Sorriram, simpáticos. Ele, gordo, mais de 1,90 de altura, camiseta, bermuda e tênis. Ela, 1,50, magrinha, de saltos e terninho, crachá de empresa de TI, cabelos tingidos de castanho-claro, rosto bonito, bem maquiada. Ambos na faixa dos 20 e tantos anos. Trocaram sorrisos e cumprimentos. Sabiam que era ele o vizinho reclamão? Provável que sim. O zelador sempre com muito a dizer. Reclamou da música de vocês. Que espécie de pessoa reclama de louvor a adoração? Eu achava que aqui só morava gente de bem. Esse sujeito é um debochado. Toma cuidado com esse tipo de pessoa.
Etc.
Naquela noite, por coincidência, ele os ouviu trepando. Era raro, mas acontecia. O homem fazia um som monótono, similar a um motor estacionário. A mulher respondia a cada estocada com uma sequência regular de oh oh oh oh oh oh oh oh oh oh, sem quaisquer variações de intensidade ou volume. Às vezes, reclamava que doía, assim não, porra, mas era ignorada. Pelo som da coisa, percebeu que ela estava de quatro, num extremo da cama, e ele de pé, as solas arrastando no chão de vez em quando. Dada a grande diferença de estatura, talvez fosse a melhor opção disponível. Como de hábito, e para a sorte dela, a brincadeira não demorou. Ou melhor, ele não demorou: menos de três minutos na função e o motor estacionário fez um som mais grosso, como se uma correia estivesse prestes a arrebentar, o ritmo das estocadas aumentou, os intervalos entre os oh oh oh oh oh dela ficaram mais curtos, e então houve um instante de silêncio absoluto (Eles são caladinhos e educadinhos.), e a próxima coisa que se ouviu foi o som de passos, seguido pelo de uma camisinha sendo retirada e jogada na privada. Em seguida, o coreano mijou. E a voz fina da coreana pediu (o berro se sobrepondo ao som da caixa de descarga em processo de reabastecimento) um copo d’água.
Vai buscar você, respondeu o marido, batendo a porta do banheiro.
Ele conheceu poucos coreanos na vida, a maioria no trabalho, como gerente de contas jurídicas em uma agência da Caixa na Liberdade, e achou todos muito simpáticos. Também teve um colega coreano na faculdade, gente finíssima, engraçado, tranquilo. Mas os vizinhos eram simpáticos. Eram simpáticos com o zelador, com a síndica. Eram simpáticos no elevador. Mas não eram simpáticos entre si.
E os problemas continuaram.
Os mesmos: discussões terríveis duas ou três vezes por semana, e as ruidosas manhãs de domingo, música gospel, bate-bocas, berros, xingamentos, portas batendo, arrastar de móveis, saltos.
Até que, certo dia, tudo parou.
Ele não percebeu de imediato porque estava acompanhado. Havia meses que não trazia ninguém para casa. A colega recém-transferida, divorciada há pouco, querendo trepar menos porque gostasse dele e mais porque quisesse exorcizar o ex-marido. Como isso não fizesse a menor diferença para ambos, foram a um bar após o expediente e depois para o apartamento mais próximo — o dele. Largada na cama, pernas abertas e olhos fechados, a colega disse que preferia não ser chupada (Tô imunda.), recusou-se a chupá-lo (Gosto muito disso, não.), insistiu que a coisa não demorasse muito (Fico meio assada depois, não sei o que acontece.), mas convidou-o a gozar onde quisesse (Menos na cara, sempre esguicha um pouco no cabelo e é um saco pra lavar depois.). Ele a chupou mesmo assim (ela resistiu no começo, mas depois relaxou e gozou uma vez), após o que ela gentilmente se dispôs a retribuir (por pouco tempo, pois chupava mal, os dentes machucando a glande, e ele disse, disfarçando: Que tesão, quero meter, vem.), e a coisa se prolongou sem maiores ruídos e em duas posições (De quatro, não. Tenho vergonha da minha bunda, viu como é quadradona?). Por fim, ele gozou com ela rebolando sobre, os olhos sempre fechados e os peitos que amamentaram quatro filhos (Junior fez direito e trabalha com o pai, mas quer prestar concurso e virar juiz, Janaína tá quase se formando em fisioterapia, Juliana só quer saber de farrear e encher a cara, Jussara era boa aluna, mas agora descobriu os meninos. Você nunca casou nem teve filho, né?) pendendo e balançando, agridoces, conforme o andamento dos trabalhos. Depois, deitados na cama, até para que ela parasse de falar do caso do ex-marido com a estagiária (Levou a piranha prum resort em Foz e me disse que tava numa convenção em Goiânia, o desgraçado.), ele contou sobre os coreanos. A colega sugeriu um processo, ao que ele retrucou que era uma possibilidade, mas só em último caso. Sem que tivessem falado ou combinado nada, passaram a noite de sexta e o dia de sábado juntos, a nítida sensação de que nenhum deles tinham para onde ir ou coisa melhor para fazer. A segunda trepada, na manhã seguinte, depois que se banharam (primeiro ela, depois ele, a porta do banheiro fechada em ambos os turnos), foi melhor. Ele explicou que o uso dos dentes era incômodo e ela prestou um pouco mais de atenção ao que fazia (mal, ainda, mas uma chupada é uma chupada). Ela se deixou chupar e gozou duas vezes em sequência, o segundo orgasmo de uma intensidade tremenda.
Mais tarde, à mesa da sala, comendo uma macarronada que cozinharam juntos, ela disse: Gosto de pau grande.
Por que tá me dizendo isso?
Por nada. Só conversando. Meu marido tem um pau enorme. Ex-marido. Ex-pau, sorriu.
A maioria das mulheres que conheci dizia não gostar de pau grande. Machuca. É o que elas falavam pra mim, pelo menos.
Bom, acho que tem gosto pra tudo. Minha instrutora de pilates adora dar o cu, coisa que só fiz uma vez e foi um horror. Outro dia, sem querer, ouvi a Juliana falando pruma amiga que adora engolir porra. Te juro, meu ex gozou na minha boca uma vez, gozou sem avisar, o filho da puta, porque ele é escroto assim, ele gozou na minha boca e eu vomitei.
Sério?
Corri pro banheiro e vomitei na mesma hora.
Caramba.
Mas pode ser que uma ou outra das suas conhecidas tenha dito aquilo pra não te deixar sem graça. Seu pau não é muito grande.
Meu pau é pequeno, pode dizer.
Ela riu. Pelo menos não me deixou assada.
Você não gozou comigo metendo.
Sempre tive dificuldade pra gozar com penetração, sei lá por quê. Com qualquer um.
Acontece.
Mas você chupa gostoso. Meu ex não chupava direito.
Se ele não chupava direito e você tem dificuldade pra gozar com penetração, então você não gozava muito.
Transando com ele? Quase nunca. Mas eu tenho os meus brinquedos e ele viajava bastante.
Você só teve o seu ex-marido?
Não. Tive outros antes dele. E outros depois. Nenhum durante. Devia ter tido. Casamento é um troço desgraçado demais.
Meus vizinhos coreanos que o digam.
Desgraçado demais.
Nunca casei. E, a essa altura da vida, acho que não vai rolar, não.
Nunca se sabe. Essas coisas acontecem quando menos se espera.
Que coisas?
A gente se apaixona sem mais nem menos.
Ah, é?
Vai por mim. É como pegar uma doença.
Depois, terminado o jantar, pediu a ela que escolhesse um filme. Viram Margin Call.
Esse Kevin Spacey é maravilhoso, ela comentou ao final.
Era meia-noite quando voltaram para o quarto. Ele a chupou de novo. Ela o masturbou, oferecendo os peitos. Dormiram logo depois.
Ele só percebeu o silêncio dos coreanos na manhã seguinte. Domingo, mas nada de música gospel. Nenhum berro. Silêncio total.
Acho que o zelador e a síndica estão certos, disse a colega. Estavam na porta, despedindo-se. Ela ia almoçar com a filha que só enchia a cara e gostava de engolir porra. Você está imaginando coisas.
Pode ser, ele sorriu.
Bom, até amanhã. Obrigada pelo finde.
Por nada. Tchau.
Passou o dia todo com os ouvidos atentos. Teriam viajado? A única explicação possível. Então, por volta das duas da madrugada seguinte, acordou com o som de algo muito pesado sendo arrastado. A coreana gemia. Era o mesmo oh oh oh oh oh oh oh de quando ela e o marido fodiam, mas era óbvio que não estavam fazendo nada disso. A coisa era arrastada para fora do quarto. Ele se levantou e acompanhou o ruído. Corredor, sala. Ouviu a porta do apartamento deles sendo aberta. O arrastar chegando à área comum. Não havia câmeras nas áreas comuns, apenas nos elevadores. Será que. Num impulso, fechou a porta do apartamento e correu para as escadas. Descalço, ficou ali parado, procurando não fazer barulho. O arrastar e os oh oh oh oh oh vinham desde o andar superior. Um oh mais forte, algo sendo empurrado. Uma sequência de baques nos degraus, e então uma coisa enorme, enrolada em vários sacos plásticos pretos e fita isolante, caiu no intervalo entre os dois lances de escadas que ligavam os andares. A coreana veio logo atrás, ofegando, de tênis e moletom vermelhos, os cabelos presos num rabo de cavalo. Assustou-se ao vê-lo parado ali, ao final do lance seguinte, e ergueu as mãos como quem se rende; as mãos estavam repletas de calos e bolhas. Ficaram imóveis por algum tempo, encarando-se. Então, ele respirou fundo, abriu um sorriso tranquilizador e disse: Me espera aqui. Vou calçar uns tênis.
Ela hesitou, mas fez que sim com a cabeça.
Antes de deixar as escadas, ouviu a voz surpreendentemente baixa: Traz uma muda de roupas também.
Levaram dez minutos para descer os seis andares que faltavam. Foi só quando chegaram à garagem que ele se lembrou de que ali embaixo havia câmeras. A gente tá fodido.
Relaxa.
Relaxar como?
Só estão funcionando as do outro lado.
Desde quando?
Desde que eu dei um jeito nas desse lado.
Quando?
Agorinha mesmo.
Como?
O sistema do condomínio é uma porcaria.
Tá, mas.
Me espera aqui. Vou trazer o carro aqui pra perto.
Depois de arrastar o pacote até o Corolla, o porta-malas aberto e à espera, ele voltou a falar das câmeras. Ela suspirou como se lidasse com um oligofrênico e não disse mais nada. Em todo caso, era tarde demais.
A coreana dirigiu por uma hora, até uma pequena chácara não muito distante de Mairiporã. Não trocaram nenhuma palavra durante o trajeto. O buraco já cavado no quintal, a uns trinta metros dos fundos da casa. Tiraram o pacote do porta-malas e o arrastaram até a cova. Começou a chover. Em silêncio, ele pegou uma pá que estava por ali e terminou o serviço. Durante todo o tempo, ela ficou agachada, a cabeça coberta pelo capuz do moletom, apontando a lanterna na direção do buraco que ele fechava pouco a pouco.
Posso tomar um banho?, perguntou ao terminar.
Estava exausto. A coreana destrancou a porta dos fundos e o levou pela mão até a suíte. Não acendeu nenhuma das luzes, exceto a do banheiro, e se sentou sobre a tampa do vaso sanitário. Respirou fundo e fechou os olhos por um instante. Ainda segurava a lanterna com a mão direita. Como ela não indicasse que o deixaria só, ele se despiu, abriu o chuveiro e entrou no box. Água gelada. Foi só então que ela saiu. Voltou pouco depois com a muda de roupas que ele trouxera e uma toalha. Deixou tudo sobre a tampa do vaso, depois se abaixou, pegou as roupas sujas e desapareceu outra vez.
Foi reencontrá-la no quarto penumbroso, iluminado apenas pela luz que vinha do banheiro; estava sentada na beirada da cama, as mãos sobre o colo, olhando para o chão. A chuva lá fora engrossara. Depois eu queimo as suas roupas, disse em um tom baixo, gentil; nem parecia a mesma voz que berrava com o marido.
Eu tava pensando… e a mãe dele?
Morreu na semana passada, respondeu sem se virar.
Irmãos, primos?
Ele não tinha mais ninguém. Relaxa. Vai dar tudo certo.
Vai dar tudo certo, repetiu maquinalmente. O que você fez? Deu uma martelada na cabeça dele?
Ela riu de súbito, tapando a boca, o gesto de uma adolescente envergonhada. E depois: Não. Muita sujeira. Foi veneno.
Veneno.
Veneno. Relaxa. Eu cuidei de tudo. Vai dar tudo certo. Você quer dormir aqui?
Não seria melhor eu voltar? Manter a rotina? Tenho que trabalhar daqui a pouco.
Tem razão.
E eles voltaram. De novo, nenhuma palavra trocada no trajeto. Quase seis da manhã quando chegaram à rua em que moravam.
Me deixa ali na esquina.
Em silêncio, ela parou o carro.
Tem algum dinheiro?
Dinheiro?
Deixei minha carteira em casa.
Alcança a minha bolsa. Taí no banco de trás.
Uns vinte reais, só.
Ela achou uma nota de cinquenta e jogou a bolsa de volta.
Sem dizer mais nada, ele pegou o dinheiro, desceu e tomou a direção contrária à do prédio, ouvindo o carro arrancar às suas costas. Rua e calçadas desertas, o bairro sempre tranquilo àquela hora. Às segundas, tomava café na padaria.
Manter a rotina, repetiu.
Em casa, meia hora depois, tomou outro banho e se vestiu para trabalhar. Não estava atrasado. Ficou sentado na beirada da cama, a mesma posição que ela assumira na chácara, mãos sobre o colo, olhando para o chão. A cama desfeita. Ainda um cheiro forte de sexo no cômodo. No apartamento de cima, o som de passos, da tampa do vaso sendo abaixada, dela urinando, da descarga, da torneira da pia sendo aberta e fechada, mais passos, e o que ela fez? Não saiu do quarto. Deitou-se? É provável. Eu me deitaria, se pudesse. Como não pudesse, levantou-se e foi trabalhar.
Que cara é essa?, a colega perguntou tão logo entrou na agência. Parecendo um zumbi.
Dormi mal. Dormi pouco.
Sentiu a minha falta, foi isso?
Foram os coreanos.
Com uma expressão desinteressada, a colega suspirou e se encaminhou para a mesa que ocupava, não sem antes dizer: Malditos coreanos.
O dia se arrastou, monótono. Foi direto para casa ao final do expediente. E, então, viu-se na mesma posição daquela manhã, vestido e calçado, sentado na beirada da cama, mãos sobre o colo, olhando para o chão. E, como antes, ouviu quase os mesmos sons no apartamento de cima, passos, a tampa já abaixada porque o homem da casa não estava mais lá, a urina, a descarga, a torneira, mais passos, mas dessa vez os passos seguiram pelo corredor, seguiram até que não os ouvisse mais. Pouco depois, a campainha tocou. Ele destrancou a porta e abriu passagem. Sem dizer nada, ela caminhou até o quarto e se estirou na cama. Usava um pijama azul-marinho. Estava descalça, os cabelos desgrenhados. Nenhuma maquiagem. Ele descalçou os sapatos e se deitou ao lado dela. Ficaram olhando para o teto.
Dormi o dia inteiro, ela disse após alguns minutos.
Eu ainda não dormi.
Eu sei. Pode dormir agora.
Tá bom.
Que cheiro é esse?
Cheiro?
Esse cheiro.
Desculpa. Esqueci de trocar as roupas de cama.
Alguém veio aqui? Você esteve com alguém?
Pensou em mentir, mas por que faria isso? E respondeu: Na sexta, no sábado. Uma colega de trabalho.
Com um gesto rápido, meio ansioso, alcançou a mão direita dele. Entrelaçadas. Um aperto firme. E perguntou: Ela vai voltar?
Ele fechou os olhos antes de responder, sorrindo, que: Não. Ela não vai voltar, não.

 

***

 

Imagem: óleo sobre tela de Carina Aerden.

“Ulysses” aos cem

Escrevi um pequeno texto para a edição de hoje do caderno Pensar, d’O Estado de Minas, sobre as traduções de que dispomos do Ulysses, de James Joyce. Leia clicando na imagem abaixo. O romance completa cem anos de seu lançamento no dia 2 de fevereiro. Mais textos que escrevi sobre o Ulysses e outros livros de Joyce AQUI.

Um prólogo.

Abaixo, na íntegra, o prólogo do meu novo romance, que será lançado pela Record em 2023. Publiquei uma versão anterior desse mesmo trecho meses atrás. Esta é a versão final (acho). O romance é uma narrativa policialesca, espécie de “pequi noir que se passa sobretudo em Goiás e Brasília, em 1983. A imagem que ilustra o post é Garota com arma rosa (óleo sobre tela, 2012), de Claudia Alvarez.

………

P R Ó L O G O

T Á R T A R O

[1º.ABR.1983]

Desci ontem ao centro da cidade, ele diz após riscar um fósforo e antes de acender o cigarro que pende da boca, o levíssimo sotaque estrangeiro e a voz meio empostada insuflando cada vogal com algo que remete à ameaça de um bocejo. Dei uma boa olhada na festa.
Festa?
Uma primeira tragada, os olhos fixos na água corrente, depois na ponta do cigarro encaixado entre os dedos indicador e médio da mão direita, mão que agora repousa sobre a coxa. As cadeiras de metal a três passos da água; ele as trouxe no porta-malas do carro, emprestadas pelo pai dela, a ideia de se sentar no chão ou numa toalha estendida não apetecendo a nenhum dos dois. Estão ambos descalços, com bonés e roupas de banho, ela de biquini verde e bermuda jeans, ele usando uma sunga azul e uma camiseta com a bandeira do Arizona estampada, os treze raios vermelhos e dourados como o pôr-do-sol no estado do Grand Canyon, treze como as treze colônias originais, e a estrela acobreada, tenho um amigo que mora em Scottsdale, explicou minutos antes, comprei isso na última vez em que passei por lá para visitá-lo, ele não anda nada bem. No chão, entre as cadeiras, três garrafas grandes de água mineral, uma delas aberta e pela metade, e uma sacola plástica com a boca aberta e os restos do café da manhã: nacos e farelos de biscoitos de queijo e sanduíches de mortadela, dois caroços de maçã, três latinhas de refrigerante, vazias e meio amassadas, além de um amontoado de cascas de amendoim.
Festa?
Ele se abaixa e deixa o maço de Dunhill e o pacote de fósforos no chão, ao lado das garrafas de água mineral, depois alcança, em meio aos restos, uma das latinhas para usar como cinzeiro, endireita o corpo e dá outra tragada. Vou parar de fumar depois da páscoa, diz, batendo as cinzas.
Desde quando ateu faz promessa desse tipo?
Não sou ateu, e não é uma promessa.
Ah, não?
Uma decisão, só isso.
Uma escolha?
Sim, ele responde, abrindo os braços e um sorriso. Contemple as minhas boas escolhas.
Prefiro contemplar as suas bolas.
Minhas bolas ficam lisonjeadas.
E não é uma festa.
O quê?
Não sei se dá pra chamar aquilo de festa.
E chamaremos de quê?
Acho que o nome certo é procissão mesmo.
O nome correto?
Isso. Correto, apropriado.
Procissão, ele diz e sorri outra vez, depois leva o cigarro à boca, fechando os olhos ao tragar.
Procissão. Isso aí.
Expelindo a fumaça para o céu aberto: Certo. O que mais?
Também não sei se dá pra dizer que você desceu.
Mas eu senti como se descesse.
Ela cantarola: “Da planície racional, uns desceram sem razão…” Sabe o que foi essa porcaria toda?
Não, mas consigo imaginar.
Cachaça. Muita cachaça ontem.
Bebi menos do que você.
Sim, mas é disso que se trata.
Disso o quê?
Você bebeu muito e sentiu como se descesse. Eu bebi ainda mais e senti como se… qual é mesmo a palavra?… ascendesse.
Ele gargalha, batendo as cinzas na boca da latinha. Você ascendeu, sim, pequena.
Não foi?
Uma nova tragada e: Foi, sim. Você ascendeu do chão do banheiro à boca da privada e, entre uma golfada e outra, calhou de fazer umas previsões apocalípticas.
Ela sorri, satisfeita consigo mesma. É, acho que fiz isso.
Sim, você fez.
Eu fiz, sim.
E houve quem achasse assustador.
Claro que houve.
A velha do quarto vizinho disse que você estava possuída.
Uma gargalhada sincera, a cabeça lançada para trás. Ai, ai, ai. Quem sabe, né?
Mas você se lembra das coisas que falou?
Mais ou menos.
Entre outras bobagens que não consegui discernir, você disse que Goiás será consumido pelo fogo, e que isso vai acontecer muito em breve.
Mas isso não é uma bobagem.
Ah, não?
E não é uma previsão apocalíptica. Isso é uma previsão agrária. Essa merda acontece todo ano.
A dona da pousada veio falar comigo ontem à noite, quando voltei da procissão.
Falar o quê?
Ela ficou preocupada com o seu estado.
Vou sobreviver.
Foi o que eu disse pra ela. A velha e outros hóspedes reclamaram. Disseram que a nossa conduta foi um tanto desrespeitosa. Creio que alguém usou o termo “blasfêmia”. Estamos na Semana Santa, afinal.
E?
Nada. Você vai sobreviver. E a dona da pousada segurava o riso ao falar comigo. Acho que não estamos enrascados.
E os carolas que se fodam.
Porque alguém precisa se foder.
Sempre.
Outra tragada e ele se lembra de que: Era engraçado como você pronunciava fogo, engrossando a voz e subindo o tom de repente, e depois gargalhava de um jeito meio demoníaco.
Ou seja, a apreensão dos fiéis é compreensível.
Bastante compreensível.
Mas, agora que eu sei de tudo isso, sabe o que não é compreensível? Me deixar sozinha naquela merda de pousada, à mercê desses desvairados.
Você caiu no sono. Parecia bem.
Apedrejamentos, cruzadas e linchamentos foram promovidos por menos que minhas palavras junto à privada, eminência.
Suas previsões agrárias.
O fogo caminha com as próprias pernas.
Assim como eu. Saí e voltei bem rápido, você nem se deu conta.
Me deixou sozinha naquela bosta de quarto.
Eu queria ver a procissão, já que viemos até aqui.
Um turista.
Quando me convém. E agora os meus pés estão me matando.
O que dói é a porra da minha cabeça, ela esfrega os olhos com o polegar e o indicador da mão esquerda. Preciso rebater.
Achei muito bonita a procissão.
O turista achou muito bonita a procissão e disse: “Achei muito bonita a procissão”, disse o turista, que achou muito bonita a procissão.
Uma risada curta e ele dá uma última tragada, depois se abaixa, apaga o cigarro numa das pernas da cadeira e joga a guimba dentro da latinha, que devolve à sacola com os restos. Em seguida, endireita o corpo e corrige: Turista, não. Visitante.
Tá bom. O visitante achou muito bonita a procissão.
Achei mesmo. Estou falando sério. As luzes da cidade apagadas e todas aquelas tochas e velas, os tambores, a cantoria das pessoas. Só as roupas são meio tenebrosas.
Farricocos.
Como?
Tá falando das roupas dos caras que levam as tochas?
Sim.
Eles são chamados de farricocos. Representam os soldados romanos que vão atrás de Cristo.
Ah, sim. Essa parte eu entendi. Também gostei que Jesus seja representado por um… qual é o nome daquilo mesmo?
Sei lá. Estandarte?
Isso. Gostei que Jesus seja representado por um estandarte, e não por um ator não profissional, um amador de carne, osso e sotaque goiano.
Não é fácil ser o Messias.
Imagino que não.
Ainda mais em Goiás.
Não creio que seja fácil em lugar nenhum.
Mas você tem razão, é bem melhor usar a joça desse estandarte do que, sei lá, botar uma fantasia no sobrinho barbudo do sacristão.
Você sabe de onde é que veio tudo isso? Como foi que começou?
Ela respira fundo, coçando o queixo. Acho que um padre começou a brincadeira uns duzentos anos atrás. Claro que o troço não nasceu aqui, em Goiás. Lá na terrinha, na época da Inquisição, a brincadeira já rolava.
Bons tempos.
Ainda rola, na verdade.
Na Europa?
Em Portugal.
A Inquisição?
Não, seu palhaço. A procissão.
Foi o que eu imaginei.
Procissão do Ecce Homo ou das Endoenças.
Como é que você sabe de tudo isso?
Encolhe os ombros: Ué, sabendo. A procissão acontece todo ano, é claro. E todo ano tem matéria no jornal, na TV, e o escambau. Do que mais os caras vão falar na quaresma?
Endoenças, você disse?
Sim. Porque é na Quinta-Feira Santa, o dia das endoenças, das indulgências, do perdão, da limpeza.
Em vista de tudo isso, ele diz, meio sério, preciso confessar uma coisa.
Eu quero saber?
Não estou me sentindo particularmente limpo nesta manhã.
São as companhias.
Talvez eu dê um mergulho.
Mergulhou ontem.
Eu? Onde?
Na procissão. Sozinho.
Ah, sim. E meus pés estão me matando.
Acho que você consegue imaginar o quanto a brincadeira era mais animada no século XVIII, né? A galera se entregando à autoflagelação no meio da rua e tudo o mais.
E você não chama isso de festa?
Viu alguém chicoteando o próprio lombo ontem?
Infelizmente, não.
Ou, sei lá, o lombo de outro desvairado?
Infelizmente, não. Mas estava escuro.
E o senhor, bêbado.
Menos do que você.
Ascender é complicado.
Eu não saberia dizer.
Ela ri, esfregando os olhos outra vez. Nunca participei de procissão nenhuma. Acho tudo isso meio… sei lá.
Nenhum sentimento oceânico.
Não começa.
Quem sugeriu essa viagem foi você.
Não essa viagem. Não vim aqui pra acompanhar porra nenhuma de procissão.
Você não acompanhou a procissão.
Queria mesmo era vir pra cá.
Pra beira do rio.
Pra beira do rio, longe de todo mundo.
E aqui estamos.
Aqui estamos. Não vai mergulhar?
Pensando melhor, não.
Vou dar um pulinho no carro e pegar a cachaça.
Hora de rebater.
Hora de rebater.
Rebater. Sua ideia de endoença.
Como o senhor é perspicaz, ela diz e se levanta com dificuldade, ajeita a bermuda e capenga os doze metros até o Landau. Mas, antes de pegar a garrafa, para junto à traseira do carro, apoia-se no porta-malas e devolve o desjejum ao mundo exterior. Refrigerante, amendoim, biscoitinhos, pão, mortadela e queijo. Puta que pariu.
Dia das Endoenças, ouve, e uma gargalhada.
Vai tomar no cu!, berra. Isso foi ontem.
Se você diz.
Ela se abaixa e vomita mais um pouco. Acho que é tudo, pensa um instante depois. Biscoitinho maldito. E essa mortadela. E os amendoins que comeu a caminho dali, sacolejando na estrada. Queimação. Como se tivesse engolido as quarenta tochas dos farricocos. Ecce estômago. Minha procissão interior. Haja fígado. Ou do interior pro exterior. Ascensão? Espera mais um pouco. Ascensão. Então, contorna o carro, abre a porta do passageiro e alcança uma das garrafas sob o banco. Pouco mais de um terço. Alambique local. Fabricação artesanal. Os litros comprados num boteco de beira de estrada, não muito longe da cidade. Dois deles. Ou seja, na noite anterior, entornaram quase um litro, fora as cervejas. Eu entornei. Sim, a maior parte sozinha, porque esse gringo viado só fica bebericando. Quase dois terços. Uau. Melhor rebater mesmo. Vinde a mim o Cão. Tira a rolha, respira fundo. Um gole. Fogo. Como se tivesse engolido as quarenta tochas e os farricocos. Firma o golpe. Isso. Segura essa joça aí dentro. Isso, mulher. Contar até. Dez? Mais. Passado um minuto, a coisa parece se assentar. Sim: nem sinal de uma possível nova devolução. O poder de ablução da cachaça. O que ele tá cantarolando lá embaixo? Minha ideia de endoença: rebater. I get ideas, I get ideas. Mais um golezinho. Que belo vozeirão. Se o estômago é por nós, quem será contra nós? Ele canta safadezas. Estômago. Ele faz safadezas. Estômago, fígado. Ele vive de safadezas. Estômago, fígado, cabeça. Enfim. Cabeça: invadida a terra sacripanta. Cercada a cidadela. Derrubados os portões. Rompida a derradeira linha de defesa. Abatida a usurpadora — ressaca. Cabeças fincadas em estacas, nos muros, mas não a minha, jamais a minha. Agora: caos, pilhagem e devastação. É isso aí.
Na beira do rio, ele acendeu outro cigarro. Melhor?
Nada como o cheiro de vômito pela manhã, ela responde e, em vez de se sentar, coloca a garrafa no chão com todo o cuidado, livra-se da bermuda e a pendura no encosto da cadeira. Em seguida, alcança uma das garrafas de água mineral, abre e toma um gole bem longo, fecha, recoloca onde estava, entre as cadeiras, vira-se, pega a garrafa de cachaça e avança alguns passos, adentrando o rio até que a água cubra os joelhos. A correnteza ali não é forte. Ela se vira e mergulha a metade inferior da garrafa, malditos grãos de areia, depois se abaixa e, com a outra mão, joga um pouco de água no rosto, esfregando os olhos e os lábios. Quando termina, encara o homem sentado na margem. Uma troca de sorrisos. Do que é que eu falava mesmo, eminência?
Do cheiro de vômito pela manhã.
Ah, sim.
Que tal?
Cheira a vitória.
Se você diz.
Eu digo.
Cuidado pra não molhar o curativo.
Olha para a própria barriga e sorri. Essa porra tá quase boa.
Se você diz.
Eu digo, e em seguida tira a rolha da garrafa e toma outro gole. A careta se confunde com uma risada, e a risada dá lugar a um arroto curto, mas: Auspicioso. Curada, doutor.
Quase.
Quase. Seguimos.
Seguimos, ele repete, desviando os olhos para o rio. Bate as cinzas na boca da latinha. E diz, bem alto: Riverrun.
Que merda é essa?
Um rugido que precede um trovão.
Tá mais prum arroto, talvez?
O que você quiser que seja.
Se incomoda se eu…?
O quê? Ah, não. Capricha.
Não obstante estarem em plena Sexta-Feira da Paixão, a imagem é algo carnavalesca: ela puxa o biquini para o lado e deita um formidável jato de urina no leito do rio, dizendo com os olhos voltados para baixo: Note a alvura do mijo, excelência. Sublinhe, frise, destaque, celebre. Amarelo-claro, na verdade. Sim, excelência. Pareço saudável.
Prankquean, diz ele.
É a mãe.
Uma princesa.
Nesse caso, sorri, ajeitando o biquini, três tapinhas no púbis, euzinha mesmo.
Ele repete os gestos de antes: uma última tragada e se abaixa, apaga o cigarro numa das pernas da cadeira, depois joga a guimba dentro da latinha, que devolve à sacola com os restos. Me dá um gole, pede ao endireitar o corpo.
Dê-me um gole, diz a gramática do professor e do aluno e, salvo engano, do mulato sabido.
Sou um bom negro, retruca, piscando o olho esquerdo. Anda logo.
Rindo, vai até ele e diz ao estender a garrafa: Mas não da Nação Brasileira. Aqui, meu bom senhor.
Mas não da Nação Brasileira, ele concorda, pegando a garrafa. Agradecido, senhorita.
A senhorita vai se sentar, ela diz, sentando-se. E a senhorita acha que devia ter rebatido antes de comer. Devia ter rebatido antes de escovar os dentes, antes de levantar da cama, antes de abrir os olhos. Porra, a senhorita acha que devia ter rebatido antes de acordar.
Ele respira fundo e dá um golezinho, depois outro, e faz uma careta medonha.
Tudo bem por aí?
Deus me perdoe, mas estou pensando no meu fígado.
Não penso muito no meu, mas sei o que ele pensa de mim.
Devolve a garrafa, tossindo três vezes em sequência. Acho que vou me ater à cerveja a aos destilados mais amigáveis daqui por diante.
Outra promessa de ateu?
Quem vomitou foi você.
Um momento, coronel. Eu vomitei o desjejum antes de dar início aos trabalhos. Logo, a cachaça que ingeri está onde deveria estar, no estômago e pela corrente sanguínea, a caminho da cabeça.
E ontem? Vomitou o quê?
Ontem, conforme já discutimos e atestaram os testemunhos colhidos nas proximidades da cena do crime ou, melhor dizendo, nas proximidades da ocorrência, ontem foi um caso evidente de possessão demoníaca.
Ele sorri, concordando com a cabeça. Quando você foi ao carro, fiquei pensando que aqui é um bom lugar pra acampar.
Deve ser.
Embora eu não tenha mais idade pra dormir no meio do mato, dentro de uma barraca, ou consiga passar a noite ao redor de uma fogueira.
Fogueiras: melhor evitar.
Sobretudo em Goiás.
É isso aí. Ainda mais em Goiás.
William costuma vir aqui, certo? Pescar?
Sim. Quer dizer, não aqui, exatamente. Um pouco mais pra baixo. E também pros lados do Mato Grosso, perto da divisa dos estados. Britânia.
Britânia?
É o nome de uma cidade.
Ele sorri: Claro que é.
Meu pai gosta muito de pescar no Rio Vermelho.
E você?
Eu? Não, pescar não é comigo, não.
E ela negou três vezes.
Não, não e não. É isso aí.
William nunca te convidou?
Ele sempre me convida. Ele convida todo mundo, o tempo inteiro, sem parar. A vida dele é uma longa pescaria, com alguns intervalos. Quando não tá pescando, tá chamando os outros pra pescar. Ele já convidou você.
Sim, é verdade. Várias e várias vezes. Siga-me, e eu farei de você pescador de peixes.
Não, não e não.
Estive com ele na segunda-feira.
Ela toma um golezinho, pressentindo que a maldita conversa se aproxima e não terá para onde fugir. Colocaram o papo em dia?
Falamos sobre a sua barriga.
Um sorriso, a boca da garrafa ainda tocando os lábios. Ora, mas que surpresa, não é mesmo?
Quero saber o que aconteceu, pequena.
Gosto de como você vai direto ao ponto.
Direto ao ponto? Estamos juntos desde ontem e só agora perguntei a respeito.
Tecnicamente, você ainda não perguntou.
Não seja por isso. O que aconteceu?
Bom, ela pensa, tomando outro gole curto, se é pra falar dessa merda, melhor que seja agora e aqui, na beira do rio, uma conversa movida a cachaça e gracinhas, e não entocados num quarto de pousada ou no carro, ressacados, pegando a estrada. E diz, recolocando a rolha: Tá bom. O que aconteceu? Um corte. Fui cortada. Alguém me cortou.
E quanto aos detalhes?
Sorri: Claro, excelência. Os detalhes.
Olha para ela, sério: Sim, os detalhes. Por favor.
Eu acho que…
Não me entenda mal. Não quero te chatear, não quero te encher o saco. Sei como esse tipo de conversa pode ser sacal.
Quer o quê, então?
Eu me preocupo com você. Só isso. E não vou poder te ajudar se não souber o que aconteceu. Não me entenda mal.
O sorriso desapareceu, os olhos agora fixos na outra margem. No barranco. Eu sei, diz, passado um momento. Eu sei.
Parece que William e o Velho se estranharam.
Eu soube.
Você não está preocupada?
Um pouco, mas que merda eu posso fazer? E que merda eu podia fazer naquelas circunstâncias?
Eu não sei das circunstâncias. Não sei dos detalhes.
Tava fora.
Eu estava fora.
Tem passado muito tempo fora.
Trabalho. Que merda eu posso fazer?
É, eu sei.
Vai me contar o que aconteceu?
Vou te contar o que aconteceu.
Estou ouvindo.
Quê que você sabe?
Sei de uma confusão num boteco. Sei que você foi a esse lugar a pedido de alguém. Sei que acabou se machucando. E sei que sobrou pra essa outra pessoa, a pessoa que te machucou.
Sabe de uma coisa ou outra.
Algumas. Poucas.
É, poucas.
Como disse, não sei dos detalhes.
Não foi num boteco.
Não?
Foi num puteiro.
E o puteiro é do Velho? Daí a confusão?
Não, não, não. O puteiro não é do Velho.
E de quem é?
Arranca a rolha, frustrada, e toma outro gole, depois respira fundo. Ok, meritíssimo. Vamos aos detalhes. Conhece o Abaporu?
O quadro?
Não, caralho. O puteiro.
Abaporu?
Tem um puteiro com esse nome em Goiânia. Pensei que um cavalheiro como o senhor, enturmado como é, conhecesse o Abaporu.
Não frequento puteiros.
Mas frequenta pessoas que frequentam puteiros, e as pessoas falam, contam histórias, comentam, sei lá.
Abaporu.
Abaporu. Depois dessa história, é o Devil’s Whorehouse da música dos caras. Puta que pariu. Quando eu peco, peco pra valer.
Música de quem?
Como, de quem? Vou nem responder essa. Eu, hein? O senhor é um filisteu.
Depois eu procuro saber. Dou uma olhada nos seus discos.
A dona do Abaporu, Elizete, é amiga do meu pai. Amiga desde os tempos dele na Civil, sabe?
Sim, mas por que o puteiro se chama Abaporu?
Porque a Elizete teve elefantíase.
Uma gargalhada. Claro, claro.
O lugar tem outro nome, na verdade, mas algum engraçadinho apelidou de Abaporu e todo mundo só chama assim, inclusive quem não faz ideia do que significa a porra desse nome.
Entendi.
Eu tava na casa do meu pai, sozinha. Ele foi pescar numa chácara perto de Anápolis e me deixou lá, disse que voltava no domingo e a gente ia almoçar num lugar bacana. Passei a tarde de sábado na beira da piscina, fiz umas caipirinhas, ouvi música, e depois, à noite, pedi uma pizza, comi e fui cedo pra cama. Acordei com o telefone tocando. Duas da manhã, por aí.
Elizete.
A própria. Tava desesperada. Um sujeito tinha comido uma puta e se recusava a pagar porque a moça teria chupado o pau dele com uma bruta má vontade.
Acontece.
E aconteceu dele dar uns socos na cara da menina e chutar ela até um segurança entrar no quarto e deitar o imbecil na porrada. E agora cê deve tá pensando: um peão batendo numa puta a troco de nada?
Acontece o tempo todo.
E, porque acontece o tempo todo: o que Isabel e William têm a ver com essa confusão?
Você imita a minha voz muito mal, mas, sim, o que você e William têm a ver com essa confusão?
A questão, eminência, é quem era o sujeito, e o que fizeram com ele.
São duas questões, então.
Foda-se. A Elizete foi até o quarto pra ver o que tinha acontecido e reconheceu o desgraçado. Ele não era um peão, não era um cliente qualquer, não era um eletricista, contador ou borracheiro farreando no dia do pagamento. Nada disso. Ele era um funcionário do Velho. E a Elizete entrou em desespero, não sabia o que fazer. Daí, mandou o segurança arrastar o sujeito pro escritório dela, amarrar numa cadeira e amordaçar.
Que ideia estúpida.
Depois, ligou pra casa do meu pai.
Que não estava.
Mas eu, sim.
E você foi até lá.
Fui. Bêbada e desarmada, mas fui.
E por que foi desarmada?
Porque tava bêbada, chapada, morrendo de sono, saí numa correria desembestada e… enfim.
Enfim?
Foi isso. Cagada minha.
E o que aconteceu?
Cheguei lá e a cena era uma beleza. Todo mundo no escritório, o sujeito amarrado numa cadeira, pelado e com a fuça estourada, o segurança com cara de bunda, a menina com o nariz e uns dentes quebrados, segurando uma fronha de travesseiro assim junto da boca e gemendo de dor, e a Elizete arrancando os cabelos. Tirei a mordaça do imbecil e perguntei se ele me conhecia. Ele disse que me conhecia e conhecia o meu pai. Perguntei se não seria o caso de resolver a situação sem criar mais problema pra ninguém. Desescalar a coisa, por assim dizer. Ele respirou fundo e, pra minha surpresa, foi incrivelmente sensato. Disse que tava mais calmo e menos bêbado, pediu todas as desculpas do mundo, pediu que fosse desamarrado, disse que só queria tomar um banho e se vestir, disse que é claro que ia pagar tudo o que devia, arcar com todos os prejuízos, incluindo o conserto dos dentes da moça, ele disse moça, não puta, disse que ia pagar tudinho e iria embora numa boa, sem criar caso. Eu queria conversar mais um pouco, ver qual era, mas a Elizete já foi logo mandando o segurança desamarrar o cara.
Outra ideia estúpida.
Tanto quanto o segurança, que não conseguia desfazer a porra do nó.
O que ele fez?
Puxou um canivete.
É claro que ele puxou um canivete.
Puxou um canivete e cortou a corda. Só vi a cotovelada bem no meio da cara do segurança e o canivete já na mão do outro, que me deu um pontapé no peito e voou pra cima da moça. Ela tava sentadinha no sofá, coitada, zonza, mais preocupada com o sangue que ainda botava pelo nariz e pela boca, acho que nem entendeu direito o que acontecia. Ele meteu o canivete nela com gosto.
E o que você fez?
Bom, tudo isso aconteceu bem rápido, ele quebrar o nariz do segurança, pegar o canivete, me chutar e começar a furar a menina daquele jeito. Assim que consegui me levantar, alcancei uma garrafa quase vazia de Natu Nobilis que tava em cima da mesa e acertei na cabeça do vagabundo. Achei que ia ganhar um tempinho com isso, talvez até desmaiar o corno, mas ele já se virou rasgando a minha barriga. Dei um pulo pra trás, meio desequilibrada, mas consegui pegar uma cadeira e, a partir daí, a gente ficou se rodeando no meio do escritório, ele pelado e rindo e coberto de sangue, a moça estrebuchando, caída assim de lado no sofá, uns furos horríveis no pescoço, nos peitos e até na cara, o segurança ainda largado no chão, com o nariz sangrando, sendo inútil como só homem sabe ser nessas horas, e a burra da Elizete com os olhos esbugalhados atrás da mesa, paralisada. Não sei quanto tempo a gente ficou nisso, ele com o canivete na mão, rindo e xingando sem parar, e eu segurando a garrafa quebrada com a mão direita e a cadeira com a esquerda, igual a uma domadora.
Bela imagem.
Só diz isso porque não tava lá no meu lugar.
Em geral, é assim que funciona.
O quê?
As coisas que a gente diz.
Não é fácil a vida no circo.
Prossiga, por gentileza.
Pois não. Como eu disse, não sei quanto tempo a gente ficou se rodeando daquele jeito. Provável que menos de um minuto, mas pareceu uma eternidade, sabe como é. O corte na minha barriga sangrava um bocado, meu peito doía feito o diabo por causa do chute, e eu me lembro de ficar ali pensando que tava fodida porque não ia demorar muito pra desmaiar, o cara ia pular em cima de mim e me furar igual furou a coitada da menina. Só sei que, felizmente, a Elizete saiu do coma e resolveu tomar uma atitude, porque o desgraçado acusou um golpe assim do nada, soltou o canivete e colocou as duas mãos na boca do estômago.
Você não ouviu o tiro?
Não, não ouvi porcaria nenhuma, meus ouvidos tavam um zumbido só, e eu nem sabia que a paspalha da Elizete tinha uma arma ali, ou tinha pegado ao chegar, antes que desamarrassem o vagabundo. Primeira coisa que teria feito, pode apostar. Olhei pro lado e vi o 22 na mão da Elizete. Olhei pro sujeito e ele se tremia todo, tinha começado a chorar. Um bocado de merda escorria pelas pernas dele. Larguei a cadeira e a garrafa, tomei o revólver da mão da Elizete, cheguei bem perto do babaca e dei um tiro nos bagos dele. O cara foi direto pro chão e ficou lá se contorcendo e soltando uns berros curtos, como se não tivesse mais fôlego, todo encolhido e sujo de sangue e de bosta.
Caramba.
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Não é fácil a vida no circo.
Foi o que eu falei.
Foi o que você falou.
O desgraçado demorou um bocado pra morrer.
E depois?
Falei pra Elizete empacotar os corpos do jeito que desse, limpar a sujeira e mandar o segurança ou algum outro inútil que trabalhasse pra ela atrás do meu pai. Expliquei onde ele tinha ido pescar e tudo.
Quem cuidou do seu ferimento?
Liguei pro Chiquinho e ele mandou uma conhecida nossa, auxiliar de enfermagem. Ela fez o serviço lá no puteiro mesmo, num dos quartos. Trabalhou direitinho. Não infeccionou nem nada. Dormi por lá. Quando acordei, já tinham limpado a bagunça, e a Elizete veio me dizer que meu pai ia almoçar com o Velho pra colocar uns panos quentes na situação.
Na 85?
Isso, na churrascaria do Velho. Eu voltei pra casa do meu pai, tomei um banho, troquei o curativo e fiquei descansando.
Discutiram feio nesse almoço, pelo que eu soube.
Pois é. Meu pai voltou à tardezinha e me contou. Ele acabou oferecendo uma compensação.
Que o Velho aceitou.
Aceitou, né. Fez todo o cu doce do mundo, mas aceitou.
Mas as coisas ainda ficaram mal aparadas.
Ficaram. Foi uma bagunça desgraçada.
Quase sempre é, pequena.
Voltei pra casa uns dias depois e não pisei mais em Goiânia desde então. Achei melhor dar um tempo.
É o melhor a fazer.
Ela concorda com a cabeça e se levanta.
Uma bagunça desgraçada, repete, pensativo.
Outro aceno de concordância enquanto dá alguns passos rio adentro. Fica ali por um bom tempo, de costas para ele. Toma mais um gole de cachaça. Quase no fim. Quase . Os olhos se voltam para o céu por um instante. Talvez se chovesse, pensa. As gotas de chuva no rio. Água na água. Mas, e daí se chovesse? As costas ardem com o sol. Um dia virá um incêndio de verdade. Um incêndio pra valer. Era isso que falava na noite anterior, largada no chão do banheiro? Sorri. Fogo. Sim, era isso. Ou coisa parecida. Quando afinal se vira, ele já acendeu outro cigarro. Sente que precisa dizer alguma coisa. O quê? Não faz ideia. Mais um gole de cachaça e: Porra, eu não fui lá no Abaporu pra matar ninguém, não.
Eu sei.
Só queria resolver a bosta do problema.
Eu sei.
Problema que nem era meu.
Eu sei.
Pois é, diz e sai da água, os braços largados ao longo do corpo, a garrafa batendo contra a coxa direita. Fica parada defronte à cadeira, de costas para o rio. Outro gole. Devagar, pensa. Devagar? Não. Devagar é o caralho. E o encara: Cê falou com o Velho?
Falei, sim.
E?
Daquele jeito.
De que jeito?
Você sabe. Com essa história entalada na garganta.
Mesmo depois de receber a compensação.
Mesmo depois de receber a compensação.
Ela faz que sim com a cabeça, exausta. Pois é. Esse tipo de coisa nunca se resolve, nunca vai embora.
Acho que não.
Ainda mais com o Velho.
Acho que não.
Certeza que não.
Eu… não sei o que dizer.
Não tem o que dizer. Não tem o que fazer. Ele nunca aceitou isso de não controlar o meu pai.
Os dois são muito teimosos.
Inferno, ela diz, sentando-se outra vez.
Ele apaga o cigarro; é o último, mas há outro maço no porta-luvas do carro. Joga a latinha cheia de guimbas na sacola, depois pega a garrafa de água mineral, abre e toma um gole, depois outro, e mais outro, e então fica com a garrafa vazia sobre o colo, como se não soubesse o que fazer com ela.
Enquanto isso, meio que espelhando alguns dos gestos do parceiro, ela mata a cachaça com uns goles curtos e reencaixa a rolha, mas não retém o litro vazio — deixa cair e rolar pelo chão, na direção do rio. Adeus, parceira. Quase chega à água. Rolando. Mais alguns centímetros e. Descer o rio. Fica olhando para ela. Podia jogá-la na água. Assim, sem mais nem menos. Sem que nem por quê. Ou não. Não, não. Jogá-la, sim, mas com algum propósito. Aí, sim. Escrever alguma coisa num pedaço de papel, meter ali dentro e (aí, sim) jogar a porra da garrafa na bosta do rio. Mas. Não. Escrever? Escrever o quê? No momento, não tem nada a dizer para ninguém. Nada a informar. Nada a segredar. Nenhum mapa do tesouro. Nenhum tesouro. Nada. Um aviso, quem sabe. Sim. Um aviso. Fique longe do Abaporu. Se precisar ir até lá, não vá bêbada e desarmada. Fique longe de Goiás. Não. Melhor deixar a garrafa como e onde está. Vazia, a poucos centímetros da água. Longe da sacola com os restos. Longe do lixo. Vazia. A outra garrafa no carro, sob o banco do passageiro. Cheia. Passageira. Buscar daqui a pouco. Eu sou a passageira. Devagar? Devagar é o caralho.
No que está pensando?
Em buscar mais cachaça.
Eu busco.
Cuidado pra não pisar no meu vômito.
Quero pegar outro maço de cigarros.
Não.
Não o quê?
Espera.
O quê?
Espera um pouco. Fica aqui comigo.
Ok.
Mais um bom tempo olhando para a garrafa vazia no chão, perto da água, depois para os dedos dos pés, as pernas esticadas, depois para a outra garrafa, também vazia, que ele ainda segura.
Viajo de novo daqui a uns dias.
De novo?
De novo.
E quando é que volta?
Creio que no começo de junho.
Volta os olhos para o rio. Tá bom.
Você vai ficar bem?
Acho que sim.
Acha que sim?
Acho que consigo me virar sem você.
Tenho certeza disso, ele sorri. Tenho certeza que consegue.
Se você diz.
Eu digo.
Tá bom, então.
Antes de viajar, devo me encontrar outra vez com o Velho. Se eu sentir qualquer sinal de problema, dou um jeito de te avisar.
Certo. Obrigada.
Enquanto isso, permaneça quieta lá em Brasília.
Certo.
Até a poeira abaixar.
Certo.
Faça isso.
Vou fazer isso.
Ótimo.
Tô fazendo isso.
Ótimo.
Se preocupa, não. Eu sei me cuidar.
Sim. Você sabe se cuidar, pequena.
Isso vai se resolver.
Vai, sim. Isso vai se resolver.
De um jeito ou de outro.
De um jeito ou de outro.
Os olhos de ambos se perdem nos arredores. Sem cigarros, sem cachaça. Por enquanto. Até que um deles se levante e vá até o carro e contorne o vômito e pegue o outro maço no porta-luvas e a outra garrafa debaixo do banco. Melhor esperar mais um pouco, ela pensa. Melhor não saltar da ressaca pro porre. Melhor não saltar direto, pelo menos. Tem o dia todo. Eles têm o dia todo. Aproveitar o dia. Sexta-Feira da Paixão. Aproveitar a paisagem. Primeiro de Abril. Um bom lugar pra acampar. Isso é engraçado. Longe do resto. Justo num 1º de abril? Longe. Por que me abandonaste? Longe do quê? Te abandonei porra nenhuma, é 1º de abril. Sorri, olhando para o curativo no lado esquerdo da barriga. Um belo corte. Trago o corte comigo. Um corte: fui cortada: alguém me cortou. As coisas mal aparadas. Compensação paga. Um chute no peito, um corte na barriga. Compensações. Uma merda, tudo uma merda. Toda compensação é uma merda. A merda escorrendo pelas pernas do desgraçado. A puta sentada no sofá. Moça, não puta. Fodida por dentro e por fora. Porque alguém precisa se foder. Nariz, boca, dentes. Fodida de novo e de novo. Depois furada uma vez, duas, quatro, setenta vezes sete. Fodida por um imbecil. Rosto, pescoço, peitos. Fodida a troco de nada. Se eu não estivesse bêbada e apalermada. Não, não posso me culpar por causa disso. Se eu tivesse pensado. Mas fiz o melhor que pude, moça. Fodida a troco de. Fui correndo pra lá, não fui? Estrebuchando, morrendo. Fui e quase me estrepei. Morrendo. Fui e matei o desgraçado. Matando. A troco de nada. Matei. Troco (compensação?): os bagos estourados a bala. Estrebuchando. Não, não que isso sirva de consolo. Até morrer. Os mortos não serão consolados. (Clara que o diga, mas é melhor não pensar nisso agora.) (Evite pensar nisso.) (Evite pensar nela.) (Evite pensar em todas aquelas coisas.) Bagos estourados a bala: pelo menos isso. Os mortos não serão consolados, ninguém será consolado. Desfeito em merda e sangue. Não há consolo possível para ninguém. Mesmo assim, morto. Pelo menos isso. Desfeito em merda. Pelo menos isso. Desfeito em sangue. Pelo menos isso. Agora, repita um milhão de vezes: pelo menos isso. E esconda a porra do choro.
Isso vai se resolver, ele repete.
Um aceno com a cabeça, uma concordância tímida.
Ele estica o braço esquerdo e coloca a garrafa de água mineral junto com as demais, entre as cadeiras, como se não estivesse vazia.
Olha, ela diz, apontando na direção do rio.
O quê?
Ali. Descendo.
Uma enorme câmara de ar desce o rio. Preta, girando em meio às pedras; pneu de caminhão ou coisa que o valha.
Parece que alguém perdeu a boia.
Ele sorri, levantando-se. Tomara que não tenha se afogado.
Sim, ela concorda, também sorrindo. Pelo menos isso.

………