Dois artigos n’O Popular

Os pequenos artigos abaixo foram publicados, respectivamente, em 19.01.2021 e 02.02.2021 no jornal O Popular.

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DÉCADAS PERDIDAS

Eu me lembro de quando era moleque, ali por 1993, e os entendidos chamavam os anos oitenta de “década perdida”. Eu olhava para trás com os meus olhos já um tanto calejados e via: o último dos ditadores (Figueiredo), que dizia preferir “cheiro de cavalo a cheiro de povo” e que “um povo que não sabe nem escovar os dentes não está preparado para votar”; um presidente civil (Tancredo Neves, eleito indiretamente) adoecendo e morrendo antes que pudesse fazer qualquer coisa boa ou ruim; José Sarney, vice do falecido e literato de quinta categoria, assumindo o cargo e chocando zero pessoas com sua incompetência; e a eleição de Fernando Collor de Mello, o “caçador de marajás”, tão inepto quanto seu antecessor, mas que pelo menos chegou lá pelas urnas e foi devidamente ejetado não muito depois.

Se a década de 1980 foi “perdida”, o que dizer dos ruidosos & ruinosos anos 2010? Dilma Rousseff foi tão incompetente quanto Sarney e Collor, e a exemplo deste último foi devidamente ejetada, mas Jair Bolsonaro vai muito além, não é mesmo? Atolado na inércia golpista e na retórica desumana e obscurantista, não me canso de repetir, Bolsonaro é responsável direto pela morte de centenas de milhares de brasileiros.

Completo 41 anos por esses dias. É desalentador pensar que, independentemente do que aconteça nos próximos anos e eleições, a devastação institucional, ambiental, econômica e sanitária causada por Bolsonaro não será reparada tão cedo. Estamos condenados a viver nas ruínas, praticando o canibalismo — figurativamente (e talvez literalmente dentro de alguns anos). E é provável que, ao expirar daqui a um tempinho, eu tenha passado bem mais do que dois terços da minha vida lidando com as dificuldades criadas e alimentadas por ineptos e criminosos, afogando no estrume que eles evacuaram e seguem evacuando sobre as nossas cabeças. Desalentador é pouco, bicho.

Nunca entendi aqueles que defendem e idolatram políticos. A meu ver, isso é um claro indício de paspalhice. Getulistas, brizolistas, lulistas, dilmistas, bolsonaristas. Não seria mais saudável desconfiar? Desconfiar de cada mísera palavra, fiscalizar ações e omissões, cobrar, criticar, ridicularizar (todo político é, por natureza, ridicularizável), sacanear, desmentir e jamais — eu disse jamais — festejar ou parabenizar pelo que quer que seja. Não se parabeniza políticos. Não se festeja políticos. Quando fazem algo de bom (é raríssimo, mas acontece), estão apenas cumprindo com a obrigação. Só isso, e nada mais. Pelo que recebem obscenamente bem, a propósito.

Aliás, “obscenidade” é uma palavra que serve muito bem para descrever a política brasileira em geral e o atual governo em particular. Exemplo: os partidários e agitadores da onda boçal-conservadora acham que obscenidade é uma exposição queer ou a galera brincando de golden shower no carnaval. Não, não. Obscenidade é um ministro da saúde propositalmente incapaz de traçar e executar uma estratégia de combate a uma pandemia. A ineficiência é o projeto bolsonarista. A ineficiência, o caos e o fogo. O governo arrasta os brasileiros pelos cabelos até o esgoto mais próximo e trata de afogá-los um por um. Sim, é isso mesmo. O governo quer matar você. Fique esperto.

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REPÚBLICA DO LEITE CONDENSADO

Ao que parece, morreremos todos afogados em leite condensado e cloroquina. Bom, não sei vocês, mas eu odeio leite condensado. E só descobri na semana passada que Jair Bolsonaro gosta de comer pão francês com essa iguaria pegajosa e insuportavelmente doce. Ao que parece, a infantilidade contamina até o paladar do presidente. Claro que esse é o menor dos problemas dele — e o menor dos nossos, também.

Com a cloroquina é outra história. É um grande problema. Ao contrário do que muitos dizem por aí de forma meio automática, não é que esse medicamento “não tenha eficácia comprovada no tratamento da Covid”. Não, não se trata disso. O correto é: a cloroquina é comprovadamente ineficaz no tratamento da Covid. Percebem a diferença? Nada impede que algo “sem eficácia comprovada” venha a ter comprovada essa eficácia no decorrer do tempo, por meio de mais estudos, testes etc. Mas a cloroquina é comprovadamente ineficaz. Ou seja, estudos, testes etc. foram realizados e verificou-se o que todo mundo (com alguma coisa na cabeça) já sabia: em se tratando da Covid, essa medicação não funciona, ministrada “precocemente” ou não.

Claro que isso não impediu o governo federal de gastar quase noventa milhões de reais em cloroquina e outros medicamentos comprovadamente ineficazes, como a azitromicina. Vocês sabem com que o governo federal NÃO gastou recursos públicos até outro dia? Vacinas, agulhas, seringas, campanhas de informação ou conscientização e outras coisas imprescindíveis no contexto de uma pandemia — a pior que enfrentamos em mais de um século. Na verdade, Jair Bolsonaro trabalhou ativamente pela desinformação, contra o isolamento social, contra a vacina e contra a própria população.

Eu já disse isso e volto a repetir: a postura, os discursos e a boçalidade de Jair Bolsonaro são (comprovadamente) responsáveis diretos pela morte de milhares de brasileiros. Meses atrás, citei aqui mesmo neste espaço um estudo a respeito disso. Há uma correlação direta entre o “trabalho” negacionista feito por gente como Bolsonaro, seus ministros, assessores e correligionários e a quantidade absurda de mortes por Covid no Brasil. Diante da postura abjeta do “mito” e das mentiras que ele inventa e espalha, muitos por aí se descuidam. Em uma pandemia, descuido custa vidas, mentiras custam vidas, palavras irrefletidas ou equivocadas custam vidas, desorganização e falta de planejamento custam vidas, desgoverno custa vidas, desumanidade custa vidas, Bolsonaro custa vidas.

A população brasileira corresponde a 2,7% da população mundial. No entanto, as mortes por Covid no Brasil correspondem a 9% do total no planeta inteiro. Isso não é por acaso. Não é uma tragédia natural, não é uma catástrofe inevitável, não é um tsunami contra o qual nada poderíamos fazer. Não. Isso é uma tragédia criada e alimentada dia após dia pelos atuais governantes. Vivemos e morremos na República do Leite Condensado, na República das Rachadinhas, na República do Centrão, na República dos Fura-Filas. Parafraseando James Joyce, o Brasil de Bolsonaro é uma porca que devora os próprios filhotes.