Mantel

Os anos dez – literatura de ficção

Sem mais delongas, os meus livros prediletos da década que se encerra hoje. Apenas obras de ficção, nacionais e estrangeiras (algumas ainda inéditas por aqui). Há mais romances do que narrativas breves porque vários dos melhores livros de contos que li nos últimos dez anos (como Tudo Destruído, Tudo Queimado, de Wells Tower, Como Respirar Debaixo D’Água, de Julie Orringer, Fascinação, de William Boyd, O Museu do Peixe Morto, de Charles D’Ambrosio, e Amostragem Complexa, de Simone Campos) foram lançados na década anterior.

 

 

Wolf Hall (trilogia), de Hilary Mantel.
The Dying Grass, de William T. Vollmann.
Noite Dentro da Noite, de Joca Reiners Terron.
Luz Antiga, de John Banville.
As Visitas que Hoje Estamos, de Antônio Geraldo Figueiredo Ferreira.
The Pale King, de David Foster Wallace.
Red or Dead, de David Peace.
Submissão, de Michel Houellebecq.
A Última Porta Antes da Noite, de António Lobo Antunes.
O Pintassilgo, de Donna Tartt.
O Sentido de um Fim, de Julian Barnes.
Uma Vida Pequena, de Hanya Yanagihara.
Berta Isla, de Javier Marías.
O Último Grito, de Thomas Pynchon.
Associação Robert Walser para Sósias Anônimos, de Tadeu Sarmento.
Ultraluminous, de Katherine Faw.
Azul-Corvo, de Adriana Lisboa.
The Bass Rock, de Evie Wyld.
Vida Querida, de Alice Munro.
Night Boat to Tangier, de Kevin Barry.
Anjo Noturno, de Sérgio Sant’Anna.
Breve História de Sete Assassinatos, de Marlon James.
Opulência, de Luis S. Krausz.
Lincoln no Limbo, de George Saunders.
MaddAddão, de Margaret Atwood.
O Sermão Sobre a Queda de Roma, de Jérôme Ferrari.
Digam a Satã que o Recado Foi Entendido, de Daniel Pellizzari.
Skagboys, de Irvine Welsh.
Talvez Esther, de Katja Petrowskaja.
Pssica, de Edyr Augusto.
Gostar de Ostras, de Bernardo Ajzenberg.
Autumn, de Ali Smith.
1Q84, de Haruki Murakami.
Hosana na Sarjeta, de Marcelo Mirisola.
Perfidia, de James Ellroy.
De Espaços Abandonados, de Luisa Geisler.
Zero K, de Don DeLillo.
Gog Magog, de Patrícia Melo.
Beijo na Nuca, de Dalton Trevisan.
Como se Estivéssemos em Palimpsestos de Putas, de Elvira Vigna.
The Mark and the Void, de Paul Murray.
Um Homem Burro Morreu, de Rafael Sperling.
De Gados e Homens, de Ana Paula Maia.
Bluebird, Bluebird, de Attica Locke.
Doutor Sono, de Stephen King.
Amálgama, de Rubem Fonseca.

 

Os anos dez — cinema

Agora que a década (mas não o inverno do nosso descontentamento) chegou ao fim, é meio inevitável — ao menos para mim — pensar sobre o que de melhor vi entre 2011 e 2020. É curioso como, enquanto as coisas degringolavam mais uma vez e passávamos de uma administração de ladrões para uma administração de ladrões e genocidas, o meu interesse imediato pelo que havia de “novo” foi esmorecendo. Em outras palavras, acompanhei com muito mais interesse as novidades na primeira metade da década, sobretudo no que diz respeito à Mostra e aos outros festivais. Mas, dando uma olhada nas listas de melhores cometidas por outrem, percebo que não deixei passar tanta coisa assim. Ao fazer a lista abaixo, procurei recuperar o entusiasmo que senti ao ver cada um desses filmes pela primeira vez. A cada ano que passa, valorizo mais o impacto da primeira impressão, até porque têm sido raríssimas as vezes em que algo melhora ou piora ao ser revisto e/ou repensado (no caso desta lista, há apenas Holy Motors). Incluí apenas um longa de cada diretor(a), e somente obras de ficção, daí a ausência de coisas estupendas como Time, Sono de Inverno, O Lobo de Wall StreetDetroitImagem e Palavra, Era Uma Vez em… Hollywood e Trama Fantasma. Por fim, há alguns filmes de 2010 na lista, pois só levei em conta a data de lançamento nos cinemas ou festivais brasileiros, e apenas um deles (The Nightingale) ainda não estreou no nosso circuito (é importante quebrar as próprias regras de vez em quando).

 

 

Era Uma Vez na Anatólia, de Nuri Bilge Ceylan.
Na Neblina, de Sergei Loznitsa.
A Hora Mais Escura, de Kathryn Bigelow.
O Cavalo de Turim, de Béla Tarr.
O Irlandês, de Martin Scorsese.
O Mestre, de Paul Thomas Anderson.
Tabu, de Miguel Gomes.
Mad Max: Estrada da Fúria, de George Miller.
O Lamento, de Na Hong-jin.
Adeus à Linguagem, de Jean-Luc Godard.
Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, de Apichatpong Weerasethakul.
A Árvore da Vida, de Terrence Malick.
Os Oito Odiados, de Quentin Tarantino.
O Espião Que Sabia Demais, de Tomas Alfredson.
Arábia, de Affonso Uchoa & João Dumans.
Um Lugar Qualquer, de Sofia Coppola.
Autoreiji: Biyondo, de Takeshi Kitano.
Amor, de Michael Haneke.
Um Animal Amarelo, de Felipe Bragança.
Acima das Nuvens, de Olivier Assayas.
Bem-vindo a Nova York, de Abel Ferrara.
The Nightingale, de Jennifer Kent.
Reality, de Matteo Garrone.
O Dia em que Ele Chegar, de Hong Sang-soo.
Drive, de Nicolas Winding Refn.
Inverno da Alma, de Debra Granik.
A Criada, de Park Chan-wook.
Z: A Cidade Perdida, de James Gray.
Roma, de Alfonso Cuáron.
Nós, de Jordan Peele.
Sicário, de Denis Villeneuve.
Melancolia, de Lars von Trier.
O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho.
Millennium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres, de David Fincher.
Lincoln, de Steven Spielberg.
Um Método Perigoso, de David Cronenberg.
Foxcatcher, de Bennett Miller.
Trapaça, de David O. Russell.
A Qualquer Custo, de David Mackenzie.
Joias Brutas, de Ben Safdie & Josh Safdie.
Sniper Americano, de Clint Eastwood.
A Bruxa, de Robert Eggers.
Três, de Johnnie To.
After Dark, de Kayden Kross.
Holy Motors, de Leos Carax.

 

Terraplanismo cinematográfico

Por essa eu não esperava. Christopher Nolan se superou. No apagar das luzes, nos estertores do pandêmico e horrendo 2020, ele conseguiu cometer o pior filme da década. Sendo sincero, até ver Tenet, eu considerava outro filme do diretor (o terceiro capítulo de sua trilogia d’O Cavaleiro das Trevas) o pior longa-metragem dos anos 2010. Eu me enganei. O homem realmente se superou.

Não creio que o hype em torno do cinema dele seja um fenômeno “apenas” cultural. Logo, acho que vale a pergunta: o que faz com que tanta gente receba como bons (em alguns casos, como obras-primas) esses filmes paquidérmicos, autoimportantes, porcamente escritos e tão mal dirigidos? Acredito que seja um problema cognitivo. O triunfo de Nolan equivale ao triunfo de uma espécie de terraplanismo cinematográfico.

Em Tenet, estão lá todos os garranchos que tornam a assinatura do diretor inconfundível: a trama simplória tornada “complexa” por meio de um malabarismo estrutural (que jamais é engenhoso, mas apenas gorduroso, confuso), os diálogos esquemáticos e coalhados de didatismos risíveis (Nolan leva a um novo patamar — um patamar abaixo, bem entendido — o conceito de fala “expositiva”), as cenas de ação que parecem concebidas por alguém que vive num mundo onde Hitchcock, Peckinpah e McTiernan não existiram (não há um entendimento orgânico, lúdico e agressivo das sequências como um todo e da própria técnica como um fim em si mesma, mas o investimento infantil em paralelismos toscos, a sucessão de planos incipientes e a ação como mera aceleração de vários nadas), o uso esdrúxulo da trilha-sonora (aqueles acordes estrondosos que arrancam o espectador do filme não só nas cenas de ação, mas também em sequências onde, por exemplo, há apenas pessoas conversando enquanto, por alguma razão, a câmera gira ao redor delas como se fosse operada por um técnico hiperativo e/ou cocainômano) e, claro, o gancho “científico” que procura legitimar os absurdos do enredo e escusar o espectador impressionável — a quantidade de gente limitada que se sente “inteligente” ao ver um filme como Tenet é uma grandeza.

Não tenho nada contra premissas absurdas e abordagens idem, desde que sejam encaradas e vendidas como tal. O problema é que Nolan — e isso é um sintoma dos nossos dias — vende imbecilidades como se fossem investigações “profundas” em torno de graves questões físicas, políticas e metafísicas. Em seu terraplanismo cinematográfico, ele faz questão de pingar cloroquina nos nossos olhos exaustos. É um enganador, um demagogo, um pseudoartista.

E é significativo como, em um longa com título palindrômico, ele baseie a trama na chamada “inversão da entropia”. Não se trata, portanto, de percorrer a mesma palavra (ou o mesmo espaço de tempo, ou um determinado conjunto de ações) em ambas as direções para obter uma mesma coisa, o mesmo “resultado”. Trata-se, e isso é muito engraçado, de aludir ao palíndromo só para destruí-lo ou, melhor dizendo, para destruir a si mesmo: a forma do termo latino que serve de título termina por, ironicamente, negar a própria (vá lá) essência do filme, o seu “princípio” norteador. O fim nega o princípio. Tenet se implode.

Desse modo, aquele conceito físico é violentado, estupidificado e tornado pseudometafísico para justificar a estupidez da narrativa. Reitero: nada tenho contra absurdos, desde que se apresentem como tais. O que me incomoda é a impostura, e o que me diverte (mas não como o diretor pretendia) é a maneira como, nesse emaranhado de cenas mal conduzidas, logo me vi torcendo pelo vilão — dadas as circunstâncias, o melhor talvez seja mesmo acabar com tudo.

A outra morte de Michael Corleone

Escrevi sobre O Poderoso Chefão – Desfecho: A Morte de Michael Corleone para a edição de hoje do caderno Pensar, do jornal Estado de Minas. Trinta anos após o lançamento, Coppola revisitou e remontou o terceiro filme da trilogia, e ficou muito bom. Leia o artigo AQUI (PDF) ou AQUI. Anos atrás, também escrevi alguns parágrafos sobre o Chefão III AQUI.

Sobre a beleza

Publiquei o texto abaixo (uma versão bem menor dele, na verdade) no jornal O Popular em 09.11.2020, por ocasião do aniversário de 60 anos de Diego Armando Maradona. Ele morreu hoje em Tigre, Argentina, vitimado por uma parada cardiorrespiratória.

Em 24 de junho de 1990, eu tinha dez anos de idade e bem pouca noção da vida, mas sabia de uma coisa: Diego Armando Maradona era o melhor jogador de futebol em atividade, e certamente um dos melhores de todos os tempos. Assistindo ao Show do Esporte todos os domingos e acompanhando os jogos do então melhor campeonato do mundo, o italiano, confirmava essa impressão semana após semana, rodada após rodada, com as atuações do baixinho pelo Napoli. Eu demorei a encontrar o meu time do coração (ou a ser encontrado por ele, pois a verdade é que esse tipo de coisa não se escolhe), e só fui encontrá-lo fora do Brasil, mas o primeiro ídolo, aquele indivíduo capaz de iluminar as minhas retinas com lances que me pareciam impossíveis, esse eu encontrei bem cedo, como se vê.

Antes disso, em 1986, quando Maradona pintou o gol mais bonito de todas as Copas do Mundo, aquela obra-prima de selvageria e resiliência, o lance em que destroça meio time inglês quatro anos após a Guerra das Malvinas, eu era muito novo para atentar para a grandiosidade daquele feito. Para ser franco, nem me lembro de ter assistido à partida. Brasileiros ressentidos e desinteligentes costumam se lembrar daquele jogo por causa do gol de mão. Brasileiros amantes do futebol preferem se lembrar da absoluta genialidade com que Maradona refundou o próprio país, que se recuperava de uma ditadura e da estupidez de uma guerra absurda, aos 55 minutos de um jogo de futebol.

Como disse, eu não me lembro se assisti àquele gol ao vivo. É bem provável que não. Mas a memória afetiva, pelo simples fato de eu então estar vivo e palmilhar pelo mesmo planeta em que Maradona corria, a memória afetiva teima em dizer que sim. Sendo um romancista, sempre opto pelo que ela me diz. Então, quando alguém me pergunta, ou mesmo quando ninguém me pergunta, costumo dizer que vi o gol mais bonito da história das Copas ao vivo, com o coração na boca e a alma preenchida por um rasgo de beleza extrema, o momento em que um homem sozinho, empurrado pela história do próprio país, pelos mortos, pelos fantasmas, pelos que partiram e pelos que restaram, pelo sofrimento e pela expectativa da alegria mais pura, correu com a bola dominada rumo ao gol não “apenas” para se vingar, mas para desvelar algo ulterior e exprimível apenas daquela forma e naquelas circunstâncias. Não se vê um gol daqueles — testemunha-se.

Em 1990, foi diferente. Quero dizer, diferente porque eu me lembro de tudo. Eu me lembro de meu pai indignado com os gols perdidos por Careca, o cruzamento bizarro de Müller a certa altura, o cabeceio de Dunga (na trave, assim como duas outras bolas no começo do segundo tempo), e por aí afora. E, acima de tudo, eu me lembro de Maradona chamar o jogo para si, ou melhor, eu me lembro do jogo, sabendo o que é — e por quem é feito — deixar-se, permitir-se jogar por Maradona: ele domina a bola no meio-campo, dá um corte seco em Alemão, escapa do carrinho de Dunga e, em seguida, atrai toda a defesa brasileira, deixando Caniggia livre para receber e arrematar.

Digo o seguinte: naquele momento, o momento em que a Argentina ejetou o Brasil de uma Copa do Mundo, eu sorri. Não porque eu torcesse “contra o Brasil” (isso veio depois, quando tomei consciência do que é a CBF, do que ela representa e de como depaupera e desgraça o futebol brasileiro), mas porque era Maradona, porque era futebol, porque era belo. Diante de um lance daqueles, todo o resto se apequena de forma incontornável. A beleza ignora tudo isso. A beleza diz respeito ao que é essencial, mas nunca, jamais, fácil: o gesto ou a sequência de gestos irrefreáveis, as opções imprevistas, os toques contraintuitivos, a criação do espaço, a desfibrilação do tempo, o paroxismo da anábase.

Em um célebre poema dedicado a Ademir da Guia, João Cabral de Melo Neto descreve como esse ídolo “impõe com seu jogo / o ritmo do chumbo (e o peso), / da lesma, da câmara lenta, / do homem dentro do pesadelo”. Maradona também “apodrecia” seus adversários (como João Cabral diz a respeito de Ademir no mesmo poema), mas de outra forma, com outra espécie de imposição, com outro jogo, que nada tinha de lento. Não, muito pelo contrário. Maradona era alígero. Seu ritmo não se infiltrava no adversário, não o entorpecia, não o atava, pois não havia tempo (nem necessidade) para isso. Seu ritmo aleijava, degringolava, deixava pelo caminho, os pés velozes e o impulso do corpo, corpo diminuto, abrindo clareira após clareira para melhor deslizar. Era um fenômeno peckinpahniano, acelerando e desacelerando conforme lhe aprouvesse, fragmentando um mesmo drible em dribles menores, adiantando um gesto só para resgatá-lo mais à frente, resgatá-lo e adensá-lo, encenando e reencenando o pesadelo para melhor fixá-lo na alma desenganada do adversário.

Não há poema que dê conta de Maradona. A atmosfera que ele enseja é rarefeita demais, parece nos lançar em um mundo repleto de inversões e impossibilidades. Em alguns momentos, a beleza é tamanha que me sinto estrangulado. Não é que me faltem palavras. Não, o que me falta é fôlego, o que me falta é oxigênio. Mas restam os olhos para ver, felizmente. Neles eu me fio.

Pelé, dizem, foi o melhor. Isso é bem possível. Mas, por inúmeras razões que transcendem o campo e se confundem com o que há de belo e hórrido no jogo e na vida, Maradona foi inegavelmente o maior.

Que descanse em paz.

 

A sujidade do desassossego

Um passeio pelas Estações Havana, de Leonardo Padura.
Ensaio publicado no Cândido.

1.

Antes, durante e após os crimes, os cadáveres, os interrogatórios, a fumaça dos cigarros, as ressacas etílicas e morais, as diligências, antes, durante e após tudo isso, estão a cidade e seus arredores. A grande literatura policial não é nada sem os espaços geográficos em que se desenrola, os quais sempre aparecem ligados de modo inextricável aos espaços morais, por assim dizer. Para citar apenas autores contemporâneos (ou a lista seria interminável), é impossível pensar em James Ellroy ou Paula L. Woods sem Los Angeles, Donna Leon sem Veneza, Dennis Lehane sem Boston, Ian Rankin sem Edimburgo, Edyr Augusto sem Belém do Pará, Sara Paretsky sem Chicago, George Pelecanos sem Washington e Leonardo Padura sem Havana. Parece-me óbvio que, pela sua própria natureza, em que se combinam extroversão e introversão, fraturas expostas e hemorragias internas, todo romance policial é também a história de um palmilhar atento por ruas e avenidas, silêncios e confissões, becos e vielas, almas e consciências, cortiços e mansões.

Por essas e outras, nesse tipo de narrativa, é fantástico acompanhar como a história de cada local se desenrola, ano após ano, década após década (nas séries mais longevas), junto com as histórias dos personagens. Não há gênero literário que apresente de forma mais direta as transformações sofridas por essa ou aquela localidade com o passar do tempo. As peculiaridades de cada lugar são expostas pelos crimes que ocorrem e pelas maneiras como os envolvidos lidam com eles. Não me refiro à mecânica mais geral da coisa (mata-se por dinheiro, vingança ou loucura), mas às especificidades — nos melhores livros, as peças e os encaixes daquela mecânica são tão particulares quanto as receitas das culinárias locais.

Chegamos, assim, à Havana de Leonardo Padura (1955). Não se trata de uma Havana qualquer, mas daquela situada em 1989, ano tormentoso no qual assistimos à queda do famigerado muro berlinense. Embora a ditadura cubana se mantenha até hoje, a União Soviética caiu de podre já no começo da década de 1990. Claro que esses desdobramentos geopolíticos não interessam aos quatro romances que compõem as Estações Havana (lançados no Brasil pela Boitempo), até porque o último deles termina em outubro, um mês antes da implosão da Cortina de Ferro. O tenente Mario Conde, protagonista das histórias, escritor frustrado e policial talentoso (o que só o deixa ainda mais frustrado), sempre tem coisas mais imediatas com as quais se preocupar: os crimes que investiga e o passado que ao mesmo tempo o sustenta e devora — pois, como diz seu melhor amigo, o Magro que não é mais magro, o Conde gosta de lembrar, é “um lembrador do cacete”.

2.

O primeiro volume da tetralogia é Passado Perfeito (tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman) e se desenrola no inverno, quando o tenente é arrancado de sua folga de ano-novo para investigar o sumiço de um figurão do Ministério da Indústria. Para complicar, o burocrata desaparecido é um ex-colega dos tempos de escola, um arrivista casado com Tamara, antiga paixão de Conde (“De quantas coisas terei de me lembrar”, ele se pergunta, aflito).

No primaveril Ventos de Quaresma (tradução: Rosa Freira D’Aguiar), o assassinato brutal de uma professora arroja Conde mais uma vez em seu passado imperfeito — a vítima lecionava no mesmo colégio onde ele estudou. “Olhe, meu amigo”, diz o Magro a certa altura (pág. 114), “você não pode passar a vida vivendo de nostalgia. A nostalgia nos ilude: traz de volta apenas o que a gente quer lembrar, e isso às vezes é muito saudável, mas quase sempre é moeda falsa.” Aqui, para variar, a corrupção da memória ecoa a corrupção do ambiente.

No verão de Máscaras (tradução: Rosa Freira D’Aguiar), o cadáver de um rapaz travestido conduz Conde a uma Havana em que a repressão à homossexualidade e aos artistas que “desobedecem” à ditadura são lados de uma mesmíssima moeda. O melhor personagem desse volume é Alberto Marqués, dramaturgo caído em desgraça e “transviado ideológico” que nos lembra: “esta ilha tem a missão histórica de estar sempre recomeçando (…), e o esquecimento costuma ser o bálsamo para todas as feridas que permanecem abertas” (pág. 99). Soa familiar?

Por fim, em Paisagem de Outono (tradução: Ivone Benedetti), temos o assassinato de um ex-funcionário do governo cubano, um “desertor” que teve a péssima ideia de retornar à ilha para resgatar um bem valioso — não o passado, mas um objeto roubado nos tempos em que trabalhava para o governo, expropriando os bens dos “inimigos da revolução”; o passado só está ali para matá-lo e castrá-lo, nessa ordem e literalmente.

3.

Há pouco, falei sobre a natureza extrovertida das narrativas policiais. Claro que isso diz respeito aos aspectos mais superficiais, àquele ostensivo palmilhar pelas ruas, pois a introversão de um personagem como Conde (“A gente não precisa passar a porra da vida pensando, refletiu”) também se faz muito presente e não contradiz em nada o andamento material, concreto, da coisa. Pelo contrário, é justamente por ser tão autoconsciente que ele é um investigador talentoso e um escritor (quase) sempre frustrado. Para um escritor, “pensar demais” nos primeiros estágios de um projeto pode ser o beijo da morte, aquilo que trava o impulso inicial (depois, sim, é preciso pensar e repensar tudo, à exaustão); para um investigador, o mesmo hábito é imprescindível para desvelar, sob “a alma mais limpa da cidade”, suas “histórias sórdidas e lacerantes”.

Em um certo sentido, os quatro romances dão conta de uma lenta e dolorosa transformação na alma desse personagem, muito ligada à alma de Havana: “No final somos parecidos, a cidade que me escolheu e eu, o escolhido: morremos um pouco, todo dia, de morte longa e prematura, feita de pequenas feridas, dores que crescem, tumores que progridem… E, embora eu queira me rebelar, esta cidade me mantém agarrado pela gola e me domina, com seus derradeiros mistérios” (Ventos, pág. 124). Conde precisa morrer como policial, ou matar o policial que há em si, para ter alguma chance de renascer como escritor, consciente de que o sucesso de tal renascimento não é garantido. O mais provável é que se frustre uma vez mais. “Você é um homem surpreendente”, diz Marqués (em Máscaras, pág. 192-3) após ler um de seus contos. “Tanto que acho que é um falso policial. É como um outro tipo de travestimento, não é?”

Em um país no qual “ninguém se perde, e no entanto se perde qualquer coisa” (Passado, pág. 109), o protagonista procura dar um jeito de reencontrar aquela fome criadora e de se manter fiel a ela e, por decorrência, a si mesmo. Enquanto isso, enquanto ele se esforça, os cadáveres, mentiras, desaparecimentos e corrupções se amontoam ao redor, tornando a rotina policial cada vez mais insuportável. Uma eventual caça às bruxas acaba por, previsivelmente, asfixiar e mesmo amputar membros importantes e, não raro, inocentes da Central de Polícia, como o major Rangel, a figura paterna que não se cansa de perguntar por que Conde entrou para a polícia, afinal (embora não consiga se virar sem o protegido).

Rangel e outros personagens fazem e repetem essa pergunta não porque Conde seja um mau policial. A questão é outra, e tem a ver com o preço que ele paga por ser tão bom no que faz. Nas palavras do major: “é melhor sair da polícia antes que você não tenha mais jeito. Ou vai terminar sendo um cínico, um insensível ou um sujeito ruim, para quem tanto faz ver um morto ou tomar um refresco” (Paisagem, pág. 212). Daí a “sujidade opressiva do desassossego” e a necessidade de arrancá-la, e o principal motivo pelo qual Conde precisa matar o policial dentro de si para, enfim, ser ou tentar ser outra coisa (no mesmo Paisagem, pág. 204):

A certeza de ter assistido ao desmoronamento definitivo de várias vidas lhe pusera diante dos olhos a mais cabal evidência do motivo pelo qual tinha sido incapaz de escrever (…): suas verdadeiras experiências costumavam andar por outros lugares, muito longe da beleza, e ele entendeu que deveria antes vomitar suas frustrações e seus ódios para depois ser capaz — se fosse (…) — de engendrar alguma coisa bela.

4.

Conde parece oscilar entre ser um “falso policial” e um “pseudoescritor”, mas, em seus melhores momentos, ao solucionar os mistérios criminais e lidar bem com os da ficção, é um policial e um escritor. Claro que, aqui e ali, a depender do humor e da ressaca, ele rejeita uma coisa ou outra, ou ambas, mas elas estão sempre inscritas nele, para o bem ou para o mal. Dessa forma, a responsabilidade para com o trabalho policial (para com o outro) e o apreço pela literatura não se anulam nem se esvaem.

Há essa oscilação e essa ambiguidade, e elas são intrínsecas e extrínsecas a ele. Observe, por exemplo, as maneiras como a cidade é vista por Conde e outros personagens. Em um certo momento, Havana é referida como “algo mágico”, de “um espírito poético invencível”, uma cidade com “alma”, “e não são muitas as cidades do mundo que podem se vangloriar de ter a alma assim, à flor da pele” (Máscaras, pág. 122). Em outra passagem, é um lugar destinado a “uma morte violenta”, uma cidade “forjada pela prolongada agonia do esquecimento” e que “morreria castrada, nova Atlântida afundada no mar por um pecado imperdoável” (Paisagem, pág. 44).

O espaço geográfico e o espaço moral, nas Estações Havana e em qualquer obra literária que se preze, sempre estabelecem diálogos afiados, por mais que haja momentos em que os ruídos atingem níveis insuportáveis. Diante da iminência de um furacão, Conde sente uma “estranha afinidade” pelo “sacana”, a quem exorta que venha logo. Ele se dispõe a solucionar mais um caso enquanto a devastação não chega; é o passo necessário para que, depois, sozinho na “madrugada ciclônica”, consiga experimentar alguma sensação de paz.

A memória da cidade e do corpo

Artigo publicado hoje n’O Popular.

Eu não estava em Goiânia no ano de 1987. Entre fins de 1986 e meados de 1988, eu, meus pais e irmão vivemos no interior do Pará. Assim, acompanhamos à distância, preocupados com os parentes e conhecidos, as notícias sobre o acidente radiológico ocorrido em Goiânia. Passada a tragédia, ficou a lembrança da mesma, o seu rumorejar, a sua forma acoplada, por assim dizer, à forma da cidade, como uma sombra azulada recendendo a morte. Restou, conforme o verso do escritor goiano Wesley Peres, uma “ferida aberta no organismo da cidade”. No livro O Corpo de uma Voz Despedaçada (ed. Martelo), ele interroga essa sombra escarificadora.

Não é a primeira vez que o autor manipula literariamente o Césio 137. O “cancro azul” se faz presente no romance As Pequenas Mortes (Rocco, 2013), por exemplo, em que o próprio corte azulado das páginas parece prestes a sangrar os nossos dedos. É curioso como a escrita de Wesley têm esse efeito físico; para um psicanalista, ele é bem direto, ciente de que a “palavra vive o que ela morre”, da carne “nada abstrata” que “confere larvas à escritura-corpo”, de que é “preciso dar corpo à voz eviscerada em pedaços”, às “chagas da menina expostas entre bonecas” e à “iminência da morte maldorosa” — referência lautreamontiana a Leide das Neves, uma das vítimas fatais do acidente radiológico.

Hoje, creio, poucos se lembram de que o caixão de Leide das Neves foi apedrejado por uma horda assustada e desesperada, naquilo que talvez seja um dos desdobramentos mais chocantes da tragédia do Césio. “Culpada”, escreve Wesley, “esse o veredicto dado pelo polvo de mãos alando e espedaçando lápides sobre o caixão da menina eviscerada pelo azul que não se vê”. Polvo: o povo e seus muitos braços e mãos que atiram pedras. Assim “devorada de azul e pedras e vitupérios”, Leide foi instada pelo “polvo” a morrer “uma segunda vez”. Em meio à tragédia, a turba assassina uma defunta. Diante disso, resta apenas “o consolo que a morte nos sabe”, traduzido pela “fala infectada de afeto” do poeta.

Diante da morte do outro (que é também um “eutro”, pois nele nos enxergamos e por isso o rejeitamos, com pedras nas mãos), o povo diz “não” da mesma forma como, por obra e desgraça do câncer e da vida (morte em andamento), uma “molécula diz não a outra molécula e a morte principia a destecer a colcha”. Aqui, a referência óbvia é a Clarice Lispector, e outra grande qualidade da poética de Wesley é o constante diálogo — jamais gratuito — que ele estabelece com o “barulho das vozes” de autores como James Joyce (cujo Dedalus esteve em Dublin e “andarilha” por Goiânia), Jacques Lacan (“sonho em carne viva”), Mallarmé, Novalis, Arseni Tarkóvski e o já citado Conde de Lautréamont.

Esse “Corpo” poético é trespassado pela tragédia concreta e, assim eviscerado, questiona a própria possibilidade de cantá-la. Ele procura pela “fórmula precisa, exata, / para dizer o nome do que não é nome”. Graças a essa autoconsciência, não há versos pedestres, sentimentais, mas a memória da carne que, em contato com a rarefação ambiente, debate-se e apodrece na cidade e na memória da cidade — “memoricidade”. Afinal, a “morte não é uma imagem, senão uma imagem rasurada rastejando pelas vísceras da palavra e do corpo”.

Depois do fogo

Conto publicado n’O Popular em 15.09.2020.

 

Ele se sentou à frente do examinador e olhou ao redor. Um escritório comum: estantes vazias, ventilador girando no teto, cortinas encardidas, pilhas de processos sobre a mesa. O examinador falava ao telefone, ou melhor, concordava ao telefone, sim, sim, sim. Pouco depois, ligação encerrada, o examinador olhou para ele. Não disse nada por quase um minuto. Haviam lhe avisado que costumavam fazer isso. “Você senta lá”, disseram, “e os caras ficam te testando, eles te testam o tempo inteiro, a entrevista inteira é um teste, ai de você se não passar.” “O que acontece?”, ele quis saber. Ninguém respondeu. E ninguém respondeu porque não se sabia ao certo, exceto que os reprovados desapareciam, não voltavam para o assentamento, não voltavam para as províncias de origem, não eram mais vistos. Assim, ele estava nervoso. Queria impressionar o examinador, mas não sabia como. Queria mostrar que tinha algo a oferecer, mas não sabia o quê. Por fim, o examinador mordeu a tampa da caneta, bufou e disse: “Você matou seu vizinho”. “Sim”, respondeu ele, “mas o vizinho era matável, não fiz nada de errado.” O examinador sorriu: “Eu não disse que você fez nada de errado”. Houve um novo silêncio, mais denso do que o primeiro. “Veio andando para a Cidade?” “Sim. Minha esposa e minha filha morreram. Os silos da minha região fecharam. Não havia o que comer, nem o que fazer. Eu resolvi tentar a sorte.” “De que morreram sua esposa e sua filha?” “Raiva.” “E você não foi infectado?” “Não, senhor, eu… eu me cuidei.” “Como?” “Eu amarrei as duas até que… os Faxineiros passassem por lá.” “E então elas foram sacrificadas?” “Sim, senhor. De forma bastante higiênica e cuidadosa. Os Faxineiros sempre trabalham direito.” “Mas não houve um… imprevisto?” Ele pigarreou. Precisava tomar muito cuidado, sobretudo agora. “Bom, eu entendo que era, que… que foi necessário e…” “Incendiar a sua casa?” “Sim, senhor.” “Você não acha que bastaria sacrificar a sua esposa e a sua filha e depois, digamos, queimar os corpos no quintal ou em outro lugar?” “De jeito nenhum, senhor. Elas estavam doentes havia semanas. Creio que os Faxineiros fizeram a coisa certa. O senhor sabe, para evitar que a infecção se espalhasse. Não é uma raiva comum.” “Nesse caso, como não se trata de uma raiva comum, e não é mesmo, não teria sido o caso de lhe queimar junto com elas, junto com a casa?” Ele sentiu o ar da sala desaparecer. Sentiu um calor súbito, como se o cômodo estivesse em chamas, como se a mera sugestão do examinador bastasse para remetê-lo de volta à casa, para arremetê-lo no fogo. O que poderia responder? Não estava doente, claro que não. Fora testado em todos os checkpoints. Caso houvesse a menor suspeita de infecção, teria sido sacrificado a quilômetros do assentamento, muito longe da Cidade. “Estou saudável, senhor, cem por cento”, sorriu, mostrando os três dentes que ainda restavam na boca. “E o que você quer?” “Trabalho, senhor.” “Que espécie de trabalho?” “Qualquer trabalho.” “Qualquer trabalho?” “Qualquer trabalho, senhor.” O examinador sorriu, anotando alguma coisa na ficha antes de dispensá-lo. Ele saiu dali direto para as minas. Lá, foi recebido por um capataz cego. “Tem mãos fortes?” “Tenho, sim”, ele mentiu antes de ser engolido pela escuridão.