Sintomas da doença da cultura

Sintomas da doença da cultura

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Leio numa matéria d’O Globo: “Não é possível entender a mente de Hitler sem ler seus textos. Não é possível combater completamente e honestamente suas ideias sem combatê-las na fonte”. A fala é do publisher da Geração Editorial, Luiz Fernando Emediato, que está prestes a colocar no mercado uma nova edição de Minha Luta, de Adolf Hitler. Noutra matéria, publicada no Estadão, o mesmo Emediato afirma que se trata de uma “edição ‘antídoto’ de um clássico como outro qualquer”. Aqui já temos um problema.

Indo direto ao ponto: Minha Luta não é “um clássico como outro qualquer”. Não é sequer um clássico, e talvez Emediato devesse ler Calvino ou, caso esteja muito ocupado divulgando o livro de Hitler, recorrer a um bom dicionário antes de usar a palavra.

No Estadão, Emediato também responde ao escritor Ricardo Lísias, que se posicionou contra o lançamento de edições comerciais do livro, dizendo que ele teria começado “a fazer uma ridícula campanha contra a divulgação deste domingo no lançamento da Geração, e infelizmente agindo como o próprio Hitler (sic) – mentindo e distorcendo informações sobre a primorosa edição da Geração Editorial”. A ocorrência da Lei de Godwin não me parece inteligente, sobretudo neste caso. O texto de Lísias é claro, ponderado e bem fundamentado — assim como o de Miguel Sanches Neto, favorável à publicação, mas com ressalvas). Ademais, se Lísias agisse mesmo “como o próprio Hitler”, Emediato estaria em apuros. Quase todos nós estaríamos.

Voltando às primeiras aspas do publisher, de que não seria “possível entender a mente de Hitler sem ler seus textos”, bem, aqui temos outro problema. Tome-se a descrição que o historiador Ian Kershaw faz de Minha Luta em sua primorosa biografia Hitler (pág. 181):

“Num resumo conciso, o livro se reduzia a uma visão simplista e maniqueísta da história como uma luta racial na qual a entidade mais elevada, a ariana, estava sendo solapada e destruída pela mais baixa, a parasítica judia. Em suas palavras: ‘A questão racial dá a chave não somente para a história mundial, mas também para toda a cultura humana’. A culminação desse processo havia se dado com o domínio brutal exercido pelos judeus através do bolchevismo na Rússia (…). A ‘missão’ do movimento nazista era, portanto, clara: destruir o bolchevismo judeu. Ao mesmo tempo — num salto de lógica que avançava convenientemente para uma justificativa da conquista imperialista direta — isso propiciaria ao povo alemão o ‘espaço vital’ necessário para que a ‘raça superior’ se sustentasse.”

Não há mais do que isso em Minha Luta. O resumo de Kershaw é preciso e completo. E, dada a enorme quantidade de excelentes estudos sobre Hitler e o nacional-socialismo disponíveis, é realmente imprescindível para alguém que não seja um especialista ter contato com as “ideias” de Hitler “na fonte” para melhor “combatê-las”? E, sendo um livro tão estúpido quanto perigoso, mesmo uma edição crítica, comentada etc. não correria o risco de insuflar nos imbecis justamente o mal que pretende “combater”? E, vou me repetir agora, sendo um livro tão estúpido quanto perigoso, não é problemático que uma editora queira capitalizar com essa monstruosidade, mesmo que a partir de uma edição crítica, comentada etc.? E ficou evidente que a Geração Editorial quer, sim, capitalizar, e muito, conforme demonstrou sua primeira — e cretiníssima — ação publicitária, descrita na matéria do Estadão.

É claro que a opção da Centauro, de lançar uma edição “nua”, sem comentários, prefácios, contextualizações, nada, é ainda pior, de uma venalidade (em todas as acepções do termo) grotesca. Mas o posicionamento da Geração, explicitado pelas intervenções infelizes de seu publisher, transpiram a mesma venalidade, a mesma estupidez: “Ansioso para adquirir Minha Luta, de Adolf Hitler?”, perguntavam num e-mail promocional, enviado há alguns dias. A forma como você responde a essa pergunta diz muito a seu respeito, acredito. E afirma o editor Willian Novaes que “centenas de pessoas telefonam diariamente para a editora perguntando ansiosamente se e quando o livro vai sair”. Que espécie de argumento é esse? Voltarei a ele, mas aposto que, se colocarem nas prateleiras um Minha Luta para Colorir, milhares ligarão.

No estupendo Hitler e os alemães, o filósofo alemão Eric Voegelin recorre a Robert Musil para nos lembrar (pág. 133) de que toda estupidez “é sempre relacionada com a normalidade de um comportamento social determinado”, um comportamento “que não desempenha algo para o qual todas as condições, exceto as individuais, estão presentes”. Musil, segundo Voegelin, distingue diversos tipos de estupidez, e chega a um tipo “elevado, inteligente”, que se atreveria “a realizações a que não tem direito” (pág. 137). E ele prossegue com Musil: “Então, aqui vem o elemento de atrevimento, de hybris, de arrogância espiritual. A estupidez elevada ou inteligente é um distúrbio no equilíbrio do espírito”, uma espécie de “revolta contra o espírito, que dá ensejo a dizer ou fazer coisas contra o espírito”.

“Essa estupidez elevada é a verdadeira doença da cultura (mas para evitar mal-entendido: é um sinal de não-cultura, de incultura, de cultura que vai para o lado errado, de desproporção entre o material e a energia de cultura) [Então, todas essas negações da educação genuína.] e descrevê-la é uma tarefa quase infinita. Alcança a mais alta esfera intelectual.”

Que o editor da Geração se esconda atrás do fato de que “centenas de pessoas telefonam diariamente para a editora perguntando ansiosamente se e quando o livro vai sair” é algo deveras preocupante. E que o publisher da casa compare uma pessoa que se posiciona honesta, clara e contrariamente ao lançamento comercial com Hitler, mais do que preocupante, é um sintoma da doença descrita por Musil e citada por Voegelin. No meu entender, é um álibi muito frágil que a edição seja crítica, comentada etc., porque não disfarça os interesses reais e a pobreza moral dos que se escondem atrás dele, ambos, pobreza e interesses, cintilando nas fraturas expostas do discurso (“um clássico como outro qualquer”, “ansioso para adquirir?”, “agindo como o próprio Hitler”).

“Consideramos esse debate encerrado”, disse Novaes ao Estadão, “e estamos apenas dando informações para a sociedade.” A pressa em encerrar o debate é típica dos que não têm capacidade para se posicionar racional e moralmente nele. E a desculpa de que estão “apenas dando informações para a sociedade” só reforça a irreflexão e o descuido daqueles que, dizendo fazer o bem, estão na verdade vendendo o mal.

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Espero que as livrarias se recusem a comercializar Minha Luta. Assinei um manifesto pedindo isso hoje cedo. Que muitos mais também assinem.

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Sobre "Abaixo do paraíso"

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Abaixo do paraíso, meu quinto romance, já está em fase final de produção (miolo aprovado; no momento, definimos a capa). A previsão é que seja lançado em março, pela Rocco. (Leia um trecho AQUI e outro AQUI.)

Eu o escrevi entre janeiro de 2013 e janeiro de 2015. Ou seja, faz um ano que o dei como terminado e enviei para a editora. Lá, no decorrer do primeiro semestre do ano passado, foi lindamente editado por ninguém menos que Flávio Izhaki, responsável por uma sucessão de leituras críticas e sugestões que, é claro, acatei e (creio) só tornaram o livro melhor.

Foi um romance bem mais tranquilo de escrever que o anterior, Terra de casas vazias, que consumiu três anos e dois meses da minha vida e, por vezes, parecia um quebra-cabeças que eu jamais conseguiria montar. Alternava momentos de intensa produção (e animação) com outros nos quais eu queria fazer qualquer coisa, menos escrever. Aquela foi uma sensação inédita para mim, e eu cheguei a pensar em me dedicar a outra atividade. Cogitei desde a pesca submarina até a pistolagem, passando pelo retorno ao magistério e pela metalurgia. Em julho de 2012, contudo, ao final de um surto produtivo permeado por crises asmáticas, pornografia virtual e ao som da Quarta de Bruckner (a Romântica), consegui dar um ponto final em Terra de casas vazias, bebi uma garrafa de vinho, peguei no sono e só fui acordar em janeiro de 2013, largado no sofá e com um belo torcicolo. Levantei-me, tomei um banho, comi alguma coisa, peguei um caderno novo e comecei a escrever Abaixo do paraíso. (Ok, talvez eu tenha deixado passar alguns detalhes nessa reconstituição, mas os fatos não estão muito longe disso.)

Em muitos sentidos, Abaixo do paraíso é uma espécie de desdobramento do romance anterior. Não estruturalmente (Terra não tem um protagonista, mas vários, e alude ao desenho urbano da Velha Jerusalém em sua fragmentação meio autista, ao passo que Abaixo tem um protagonista e um desenrolar vetorialmente único, por assim dizer), mas em seu tom (compassivo, compassado) e nos termos de uma discussão de cunho moral acerca do nosso lugar em relação ao outro, inclusive (e socraticamente) entendendo a si próprio como um outro com quem primeiro dialogamos.

O protagonista, Cristiano, é um tarefeiro, um aspone, alguém responsável pelo tipo de serviço escuso que alimenta a nossa paupérrima República e confunde mundo e submundo, revelando-os como ambientes de um mesmíssimo — e apodrecido, repleto de infiltrações — edifício político. Cristiano é o sujeito que, nas eleições, vai ao interior oferecer combustível de graça para que os locais encham o tanque e engordem as carreatas de campanha; é o nobre funcionário que leva a amante do secretário da educação ao dentista; é o homem de confiança que se enfia num quarto de hotel vagabundo para se encontrar com outro homem de confiança, e envelopes trocam de mãos, algo vendido ou comprado; é um dente nessa engrenagem, uma peça no maquinário republicano. Então, algo acontece, e ele precisa fugir, esconder-se. O reencontro com a família (pai, madrasta, meia-irmã, tia) aponta para um ressituar-se, mas nada é assim tão simples. Cristiano deve voltar a si antes de se voltar para o outro, sob pena de confundir tudo. Ele se esforça. E é tal esforço que acompanhamos na segunda metade de Abaixo do paraíso.

Não seria inteligente falar mais (e talvez não tenha sido inteligente falar tanto) sobre o romance. Importa que, em breve, ele estará à disposição dos leitores. Haverá outros posts de divulgação, neste espaço e também no blog da editora.

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A frialdade do tabuleiro

Oito

A paixão por contar histórias está lá, intacta. É o que mais me apaixona não só n’Os Oito Odiados, mas em toda a filmografia de Quentin Tarantino. São filmes cuja afabilidade para com o espectador é impressionante. Sim, afabilidade. Mesmo com toda a violência, estamos seguros. Estamos do lado do Narrador. Ele se aproxima, senta-se perto da fogueira e diz: “Vê essas sombras? Vou usá-las para te contar uma história”. E usa, conta, e, quando percebemos, já amanheceu. Podemos seguir viagem, transformados por algo que mal compreendemos. Olhamos por sobre os ombros, para trás, querendo ver o Narrador mais uma vez, talvez acenar, mas ele não está lá. Não. Como estaria? O Narrador está sempre à frente.

N’Os Oito Odiados, a estruturação continua sendo literária (na maneira como apresenta história e personagens, nos diálogos que velam e desvelam, no Verbo que restitui vida a um mundo cuja frialdade beira o insuportável). Acho extremamente feliz que a maior parte do filme se passe num único cenário. Estamos presos ali, com os personagens odiosos, enquanto o mundo lá fora é varrido por uma tempestade. O filme fracassaria sem essa sensação de asfixia e exaustão. Como escreveu alguém (referindo-se a Fargo, dos Coen), as dores doem muito mais no inverno.

E, a exemplo do que já fizera em Cães de Aluguel (com quem compartilha o flerte, agora menos explícito, com Rashomon, de Kurosawa), a encenação parece teatral. Parece: a utilização do espaço é nunca menos que soberba. É por isso que Tarantino, grande escritor, é antes de tudo um cineasta, pela maneira como guia o nosso olhar (e, com ele, as nossas vísceras), construindo uma história que vemos se desenrolar (as sombras junto à fogueira), a despeito de toda a maravilhosa verborragia, distinguindo entre (embora eles às vezes coincidam) o mundo do discurso e o (sub)mundo das sombras que se movimentam, inquietas.

O isolamento dos personagens ecoa o isolamento de seus ódios — pela cor do outro, pelas ações e supostos objetivos do outro, pela procedência do outro, pela vitória do outro, pela posição do outro, pelas mentiras e/ou verdades do outro. Cenário e encenação adquirem, também por isso, sua coloração apocalíptica. Um punhado de seres humanos largados no meio do nada, impossibilitados de escapar uns dos outros.

Creio que o filme também fracassaria acaso houvesse escapatória, por mais que um bom número delas seja ensaiado no decorrer da narrativa. Deus colocou todos e cada um deles ali para morrer. Assim como colocou todos e cada um de nós aqui para, também, morrer.

A certa altura, o Narrador se cala e olha para a fogueira. É noite alta. As vozes dos outros ainda ecoam, distanciando-se na escuridão. A pausa (que identifico com o capítulo que encerra o flashback) serve não para dispôr as peças corretamente no tabuleiro, mas para explicitar a solidão irredimível de cada uma delas. O tabuleiro, o cenário, não toma conhecimento delas, de nós. O tabuleiro é de uma crueldade silenciosa, cuja impassibilidade reafirma não a sua própria brutalidade, mas a brutalidade de cada peça, que se movimenta, ataca, mata, morre. É, talvez, a passagem mais avassaladora, e também mais triste. Uma chacina preparando o cenário para a próxima. Elas se sucederão, uma após a outra. Até que o tabuleiro queime.

Sarmento

Resenha publicada em 18.12.2015 no Estadão.

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Uma boa maneira de apresentar o humor delirante de Associação Robert Walser para Sósias Anônimos, de Tadeu Sarmento, é a partir da história (provavelmente falsa, e o livro está cheio de mentiras dentro de mentiras) de um personagem, o mentor da associação que dá título ao romance: Hussein é assim chamado porque teria sido um dos vários dublês do filho mais velho de Saddam, Udai. Certo dia, o ditador iraquiano ordena ao filho que vá a Basra “levantar a moral das tropas”. Lá, Udai sofre um atentado e perde um dos braços. Consequentemente, os dublês são coagidos a arrancar o membro respectivo, “obrigados a fazer esse sacrifício para se adequarem à nova condição do duplo”. Feitas as amputações, descobre-se que Udai estava na verdade em um cassino na Suíça, e que a pessoa que sofreu o atentado era um dos sósias.

Passagens como essa pipocam nas páginas do livro, muito bem costurado pelo pernambucano Sarmento em duas tramas que correm paralelas: a primeira diz respeito à tal associação e é narrada em primeira pessoa por um sósia de Robert Walser; a segunda (que pode muito bem ser um livro dentro do livro) se passa no começo dos anos 1960, em uma cidadezinha no interior do Paraguai chamada Nueva Königsberg, onde os moradores (nazistas foragidos com o patrocínio da Igreja Católica e sob a proteção do ditador Alfredo Stroessner) são sósias de Immanuel Kant, adotando, inclusive, os hábitos do célebre filósofo prussiano. A forma como as tramas são finalmente ligadas é um primor de imaginação, com o romance se debruçando sobre si mesmo e se revelando um labirinto de espelhos no qual a própria estrutura da fabulação reflete o jogo de duplos e impostores estabelecido desde o começo.

Sarmento também devassa a fixação contemporânea pelas celebridades. Em princípio, os membros da associação estariam ali “para reaprender a ser” eles mesmos, “isto é: ninguém”, almejando “a tranquilidade fria do anonimato”, cuja liberdade “quebra em pedaços a aura de promessas que, às vezes, se forma em torno das pessoas”. No entanto, tal projeto é pervertido, e o mentor deles diz a certa altura: “Porque nós somos tudo aquilo o que todos gostariam de ser: somos outra pessoa, cada um de nós, e isto que nós somos é o ápice de toda cultura moderna”. Não por acaso, no momento em que essa mudança de paradigma se torna patente, é que um crime tem lugar às portas da associação. E o crime ainda encerra uma tremenda – e hilariante – inversão de papéis.

Para terminar, ressalte-se que Associação Robert Walser para Sósias Anônimos foi justamente agraciado com o Prêmio Pernambuco de Literatura. Aguardemos outra “comédia triste sobre literatura e desaparecimento”, como o autor tão bem definiu esse seu romance de estreia.

Eu não vou tirar você desse lugar

Um conto (*).

soja

Vim pela estrada de terra, milho de um lado e soja do outro, contornei a casa e estacionei o carro lá atrás. Lucélia e outra menina estendiam roupas no varal, as caras inchadas, vozes roucas, olheiras, deviam ter acordado fazia pouco tempo. Fiquei sentado ali dentro, fingindo procurar alguma coisa no porta-luvas, mas não procurava bosta nenhuma, só queria olhar pra Lucélia mais um pouco, de longe. A estupidez de imaginar com quem ela teria ido na noite anterior, com quantos. Sou estúpido pra caralho. Fico imaginando coisas que não devia. Pensando demais. Eu fingindo procurar alguma coisa no porta-luvas e ela fingindo que não tinha me visto, pendurando uma camiseta branca, as calças de alguém, uma blusa vermelha. Desci, afinal. Pedrão estava sentado numa cadeira, fumava um cigarro, não o tinha visto. Fui até ele e estendi a mão.
— A gente só te esperava à tardezinha — ele disse.
— Eu sei. Acordei cedo. Achei melhor pegar a estrada logo, previsão de chuva.
— Não vai chover, não — ele retrucou.
— A previsão disse que vai.
— Eu não acredito nessas merdas — ele insistiu, depois jogou o cigarro no chão e deixou lá, queimando no cascalho. — Seu quarto é o de sempre.
Ele se levantou e entrou. Voltei ao carro, peguei a mochila no banco traseiro e fui até os dormitórios. O meu era o último. Passei por Lucélia e disse bom-dia.
— Boa tarde — ela respondeu, sorrindo, uma piscadela.
Então você me viu, pensei. É claro que sim. Tomei um banho. Quando saí, ela estava deitada na cama, de bruços. Tinha engordado um pouco. A bunda parecia maior. As roupas dela estavam em cima das minhas.
— Vem logo — disse. — Mas vem com jeitinho. Noite passada foi concorrida.
A gente tinha terminado quando ouvi duas batidinhas na porta. Lucélia cochilava ao meu lado. Eu a cobri, vesti as calças e abri a porta. Era a menina que ajudava Lucélia a pendurar as roupas. Pedrão queria falar comigo. Fechei a porta, tirei as calças, vesti uma cueca limpa, voltei a colocar as calças, depois uma camisa e saí, descalço. Lucélia não se mexeu.
Pedrão estava sentado ao balcão. Não havia mais ninguém no lugar. Ainda era cedo. Sentei ao lado dele.
— Tem uns discos seus ali — ele disse, apontando para a jukebox desligada.
— Eu sei.
— O pessoal ainda gosta de ouvir. De vez em quando, um caminhoneiro, um peão, outro dia foi um PM.
Achei engraçado. — Como assim, um PM? Que música ele colocou?
— Aquela do primeiro disco.
— Qual?
— Sobre o cara que perde a mulher porque é preso, ela foge com outro.
— Ah — eu ri. — Claro, a mulher foge com um policial.
Pedrão também riu. — Quer beber alguma coisa?
Ele não me esperou responder, levantou-se, contornou o balcão, pegou uma Skol litrão no freezer, dois copos. Não disse nada, ficou ali do outro lado do balcão, em pé, esperou que terminássemos aquela primeira garrafa, pegou outra, os copos cheios outra vez.
— Você sabe, eu gosto de você — ele começou.
— Eu sei, sim.
— Nunca te neguei trabalho.
— Eu sei, porra. Eu sei.
— Você vem aqui, canta, o pessoal da região gosta, enche o lugar, bebe, come as meninas.
— É verdade, Pedrão. O lugar sempre lota.
— Desde quando a gente se conhece?
— Desde quando eu era um pica-grossa — respondi.
— Desde quando você lotava lugares bem melhores do que esse — ele complementou.
— Não que tenha alguma coisa errada com esse lugar.
Ele sorriu. — Claro que não. É que as coisas mudam, numa hora você está aqui — ele disse, apontando para o teto —, e noutra hora está aqui — apontou para o chão.
Didático. Podia ter sido professor. Desviei os olhos, tomei um gole amargo de cerveja.
— É a vida — acabei dizendo.
— Se é — ele concordou. — Tive aquela boate em Brasília, uma casa de shows de Goiânia, e agora toco um puteiro na região da estrada de ferro.
Dei outro gole amargo e falei que o importante era seguir em frente. Se é, ele repetiu. Abriu uma terceira garrafa e chegou finalmente ao que interessava:
— O lance é que eu não posso me dar ao luxo de perder a Lucélia e, ao mesmo tempo, também não quero me dar ao luxo de te perder.
— Você não vai perder ninguém — eu disse.
— Vou, sim. Se vocês começam a se gostar e tal. Começam a ter ideias. Ela vai querer sair ou você vai querer tirar ela daqui, ou as duas coisas. Nossa amizade não ia suportar uma merda dessas. Amor é merda.
Ele suspirou.
— O amor é uma bosta — sorri.
— Entende a minha posição?
— Entendo, sim. Claro que entendo. — E eu não estava mentindo, entendia mesmo.
— Quer dizer — ele continuou —, ela é a menina que me dá mais lucro, a mais limpa, a mais tranquila, todo mundo gosta dela, e você, a gente falou disso agorinha mesmo, você vem aqui uma vez por mês, duas até, lota o ambiente, ganha o seu, todo mundo ganha.
— Todo mundo feliz — concordei, balançando a cabeça. — O que você quer que eu faça, Pedrão?
— Desculpa te pedir isso, mas acho que ia ser bom você não comer ela mais.
Virei o copo de cerveja. — Você é quem manda.
— Ainda bem que você sabe disso.
Não deixei que ele enchesse o meu copo outra vez. Saí pela porta dos fundos, a mesma que tinha usado para entrar.
Parei ali na soleira.
As roupas balançavam no varal. Olhei para os meus pés sujos, teria de tomar outro banho.
Voltei ao quarto.
Lucélia estava acordada e vestida, sentada na beira da cama. Contei o que tinha conversado com Pedrão. Ela primeiro sorriu, balançando a cabeça, depois chorou um pouco, sem fazer barulho. O peso que senti no peito foi idêntico ao de quando me prenderam pela primeira vez, por posse, dois míseros papelotes e os caras adorando aquila merda toda. A sensação desgraçada de que algo tinha acabado, de que era o fim de alguma coisa importante, nada vai ser como antes, fim de papo. Fiquei ali parado, as costas apoiadas na parede, as mãos enfiadas nos bolsos das calças, olhando para os meus pés imundos. Queria dizer alguma coisa pra ela, mas não me ocorreu porra nenhuma. Acho que ela esperava que eu dissesse. O peso aqui dentro só aumentando, depois se transformando num buraco, como se tivessem arrancado meus pulmões e, de alguma forma, eu continuasse respirando. Ela esfregou os olhos, depois me encarou. Pensei que fosse dizer alguma coisa, mas continuou calada. Eu cheguei a abrir a boca, mas não saiu nada, nem mesmo um palavrão, ou o nome dela, e depois, relembrando tudo, eu pensei nisso, podia ter dito o nome dela, só o nome, mais nada.
Mas não. Eu não disse nada.
Ela se levantou, esfregava os olhos de novo, e saiu do quarto sem olhar na minha direção.
Deixou a porta aberta ao sair.

…………

(*) Versão revista de um conto originalmente publicado na antologia Assim você me mata (Terracota, 2012), organizada por Claudio Brittes.

Notas sobre o leprosário

“Brasília é Las Vegas funcionando em um leprosário repleto de psicopatas.”
Tadeu S.

Dilma Rousseff: 'Do I look happy, Mr Obama?'

::: Na Piauí deste mês, um artigo assinado por André Singer, jornalista, cientista político, professor da USP e ex-secretário de imprensa da Presidência da República (2003-2007). Trecho: “O completo isolamento em relação ao capital precipitou o fim da experiência desenvolvimentista. O lulismo não encontrou resposta para a unificação da burguesia contra Dilma. Por dois anos, a presidente resistiu bravamente às crescentes pressões para dispensar Mantega e proceder ao ajuste recessivo. Mas como não mobilizou qualquer tipo de apoio político a essa resistência (…), o isolamento do Planalto e da equipe econômica tornou-se cada vez maior (…)”. Singer cria uma narrativa que intenta justificar o desastre administrativo da suposta “experiência desenvolvimentista” (a qual ele compara ao New Deal rooseveltiano, no que eu ri), culpando não a inépcia de seus artífices, que cometeram crimes como as famigeradas pedaladas fiscais para financiar uma máquina corrupta e paquidérmica e um projeto irresponsável e, como hoje se vê, insustentável, mas, sim, a perversidade do monstruoso Capital, que não aceitaria ser alijado de tal “experiência” (vide a “batalha do spread“) e trabalharia organicamente (por meio de “veículos respeitados pelo grande empresariado mundial”, por exemplo) para naufragá-la. Os maiores erros da sra. Rousseff, no entender de Singer, não teriam nada a ver com o intervencionismo paralisante, espúrio, e o descontrole dos gastos (e a tentativa de escondê-lo) que leva ao aumento da dívida pública (41,4%, o equivalente a 9% do PIB), à contração do Produto Interno Bruto (estimada em 8,1% no triênio 2014-2016), ao aumento do desemprego (que deve passar dos 10% em 2016) e, por fim, à impossibilidade de se manter os programas “desenvolvimentistas” — e o apoio eleitoral que decorreria deles. Os maiores erros da sra. Rousseff, segundo Singer, foram a irascibilidade, a incapacidade de negociar e compactuar quando necessário, a arrogância e a imposição de um “estilo” que minaria qualquer apoio político, incluindo na outrora chamada “base aliada”.

::: Na IstoÉ desta semana, uma entrevista com Gustavo Franco: “Vejo o Palácio dizendo que fez a pedalada para não deixar de pagar os programas sociais, o que é uma confissão de crime”. E: “Há 25 anos, tínhamos um grande solucionador de problemas, que era a inflação. Era uma maneira de tributar o pobre para pagar as contas que ninguém queria pagar. Hoje em dia, uma maneira de ver o que aconteceu é que nós não tributamos o pobre com a inflação, mas tributamos os nossos filhos e netos com dívidas. A criação excessiva de dívida hoje é como a criação excessiva de dinheiro há 25 anos”.

::: Franco também traça uma distinção entre o que enfrentamos hodiernamente com aquilo com que FDR se deparou, há quase um século: “O mundo já experimentou crises que poderiam ser resolvidas com o aumento do gasto público. Só que esta é uma crise produzida pelo excesso. O remédio utilizado nos anos 30 para uma crise diferente foi o aumento do gasto público. Agora, o problema é o inverso. Trata-se de um endividamento fora de sintonia com a capacidade de o Brasil pagar. E não é para o exterior, é para nós mesmos”. Mais claro, impossível.

::: Vieram me dizer das “coisas boas” que a sra. Rousseff teria feito, como manter os juros e a conta de luz lá embaixo por um tempo, como se esse tipo de medida populista não tivesse um custo enorme, que agora conhecemos (e pagamos), especialmente os mais pobres — justamente os que ela, em tese, procurava “assistir”. Muito se noticiou sobre o quão nocivo é o fato de ela ter ordenado a manutenção dos preços dos combustíveis, por exemplo, num valor abaixo daquele praticado no mercado, coisa que torpedeou a Petrobras, já tão destroçada pela corrupção metastática. O salto inflacionário resultante desse tipo de prática intervencionista é tão previsível quanto evidente. Muitos procuram justificar a estupidez administrativa ressaltando os programas assistencialistas que se tentava implantar e/ou manter, sublinhando que outro governante (tucano, por ex.) não teria esse tipo de preocupação, mas ignoram (de boa ou má-fé) que o modus operandi foi não apenas criminoso, mas também inviável sob qualquer ponto de vista. As pedaladas não são motivo para divórcio (ou impedimento). As pedaladas são motivo para crime passional.

::: A essa altura, parece evidente que não é possível desenvolver um país na marra e a qualquer custo, distorcendo as contas públicas e intervindo em setores cujos humores obedecem a variáveis alheias aos humores da sra. Rousseff e suas “melhores” intenções. Não por acaso, aqueles que foram arrancados da miséria estão, de novo e aos poucos, sendo abraçados por ela. A conta chega para todos, mas são os mais pobres que terão de se virar com a parcela maior, e mais acachapante, dos custos da aventura político-econômica “desenvolvimentista”. O Estado os engoliu, e agora trata de cagá-los de volta.

Adoção, exílio e memória

Resenha publicada no Estadão em 05.12.2015.

Há um belo momento de inflexão em A Resistência, já no terço final do romance, em que Sebastián, o narrador, fala sobre como está escrevendo o próprio “fracasso”, vacilando “entre um apego incompreensível à realidade – ou aos esparsos despojos de mundo que costumamos chamar de realidade – e uma inexorável disposição fabular, um truque alternativo, a vontade de forjar sentidos que a vida se recusa a dar”. Tal “vacilo”, contudo, é o que confere sentido à narrativa de Julián Fuks sobre adoção (de alguém por uma família; de qualquer pessoa pelo lugar onde se encontra, seja o ambiente familiar, seja a cidade ou o país em que vive), exílio e memória.

Filho de argentinos, nascido em 1981, o paulistano Fuks parece concentrado não em empreender uma espécie de recuperação da história familiar – e aqui nos eximimos de especular sobre o que seria “verdade” e o que seria “invencionice”, até porque o volume chega até nós como ficção –, mas em explicitar, tendo em vista o que é narrado, a sensação de desterro que ora une, ora desune seus personagens. Em capítulos curtos, e partindo de um conflito central, enunciado já no primeiro parágrafo (“Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adotado”), o narrador passeia tanto pelas recordações íntimas quanto pelas décadas recentes da história latino-americana, repletas de ditaduras sanguinárias, gente torturada e morta, órfãos, exilados, e o faz oscilando “ao infinito entre história e história”.

Os pais de Sebastián são psicanalistas argentinos que, por conta de sua posição militante, infensa ao status quo totalitário, se viram obrigados a fugir para o Brasil em fins da década de 1970, antes que fossem destroçados pelas engrenagens ditatoriais. Antes, ainda em Buenos Aires, adotaram uma criança, de quem jamais esconderiam esse fato. E, uma vez instalados em São Paulo, conceberam um casal de filhos. O núcleo familiar tem, assim, a marca indelével da violência que os atirou de lá para cá: pais argentinos, exilados, uma criança adotada, cujo nascimento “não foi narrável”, e dois outros filhos nascidos em terra estrangeira. Mas, em meio a tudo isso, em que consiste a “resistência” aludida pelo título?

Sob os nossos olhos, há “um livro sobre essa criança, meu irmão, sobre dores e vivências de infância, mas também sobre perseguição e resistência, sobre terror, tortura e desaparecimentos”, é verdade, mas também um objeto narrativo dos mais sólidos, que não procura ser invasivo ou indiscreto (não obstante os receios exprimidos pelo pai no penúltimo capítulo), mas, acima de tudo, intenta resistir ao que nos devasta: o esquecimento, a alienação e a inobservância do outro e de si.

Em um ambiente tão conflagrado e irascível quanto este em que vivemos hodiernamente, A Resistência aponta para a necessidade de um cuidado maior para com a história, tanto a privada quanto a pública. Noutras palavras, por mais rarefeita que hoje nos pareça a ideia de lar, seja no contexto familiar, seja no âmbito político-social, há que se pensá-la por meio da inclusão, jamais da exclusão. E o esforço de Julián Fuks, oscilando, conforme citamos acima, “entre história e história”, é algo assim compreensivo e inclusivo.

Notas sobre "A poeira da glória"

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto
Drummond

Capa A poeira da gloria V4 DS.indd

::: No canto inferior esquerdo da capa de A Poeira da Glória, o editor teve a péssima ideia de colocar: “O livro que até mesmo o politicamente incorreto julgou imprudente”. Felizmente, o livro de Martim Vasques da Cunha não é algo assim leviano, e sua reflexão consequente sobre a literatura brasileira (e muito mais) não se permite confundir com ou por essa estupidez editorial.

::: Martim traça um panorama crítico (aqui numa acepção, vá lá, kantiana, mas jamais frankfurtiana, pelo amor de D’us) da literatura brasileira ao mesmo tempo em que reflete sobre as condições de possibilidade de nossa produção cultural e os mecanismos de recepção e discussão da mesma. Indo além, ele (doutor em Ética e Filosofia Política) contextualiza política e culturalmente autores e obras, utilizando-os como instrumentos para eviscerar a miserável alma brasileira, chegando, por fim, à rarefação própria da perquirição de cunho religioso.

::: Os estádios kierkegaardianos são utilizados com inteligência para fundamentar alguns aspectos da crítica. Para Martim, os literatos brasileiros raramente saltam do estádio estético para o estádio ético, e deste para o estádio religioso. Segundo ele, valendo-se também de Edmund Burke, falta-nos imaginação moral, e tal carência ecoa obliquamente o autoengano e a hipocrisia nacionais.

::: Há um câncer de ordem anímica que se perpetua por aqui. Os olhos estão voltados para dentro, para o “abismo de espelhos” do ego, e não para fora, para o outro, ou para o alto, seja para D’us, seja para a possibilidade de um reino dos fins que nos permitisse organizar racionalmente a vida em comum.

::: “A equivalência do bem e do mal, do certo e do errado, somada a uma ambiguidade literária que se assemelha a um abismo de espelhos, paralisa a sensibilidade nacional (…)”, ele escreve (pág. 38), e também (pág. 169) que “há um horror que se esconde na beleza — e nenhum intelectual quer ver isso. Prefere olhar para o outro lado e imaginar que há uma cordialidade na nossa vida interior que descarta qualquer chance de nobreza acima de tudo”.

::: Em sua leitura, Martim mergulha no centro tormentoso das obras (desde Gregório aos contemporâneos, com capítulos organizados por blocos temáticos que não se orientam, necessariamente, pela cronologia). A preocupação de teor moral, mas não moralizante, relê com olhos livres, por exemplo, um Grande Sertão: Veredas, em que Guimarães Rosa “faz um livro inteiro a respeito de um pacto demoníaco e, ousadia das ousadias, demonstra que esse fato é a raiz da alma brasileira” (pág. 429), pois o romance (e aqui parafraseio) é uma espécie de radiografia espiritual “de um momento crítico na história pessoal e política do Brasil” (pág. 409), uma raridade que se concentra no “único problema sobre o qual vale a pena refletir: o problema do Mal”, que “não é mera abstração; é uma força ativa num mundo incapaz de fazer algo a respeito” (pág. 430).

::: Tal visão de mundo é reiterada por diversas vezes ao longo do ensaio (de tal modo que não me assustei ao ler que Lavoura Arcaica é algo “sulfuroso”, catarticamente negativo, “a morte da ordem, o fim da inocência e a vitória do mal”, pág. 485), e é o fato de ser muito bem fundamentada (Platão, Agostinho, More, Kierkegaard, Voegelin etc., aos quais ele jamais recorre com gratuidade, mas no interesse mesmo de clarificar a tese exposta) que a torna (como afirmei acima) consequente.

::: Não se trata, em primeira instância, de “concordar” ou não com o autor, e muito menos de “gostar” ou “desgostar” do que ele escreve, mas, sim, de respirar fundo e abrir os olhos para algo que oferece subsídios (repito) bem alicerçados para compreendermos criticamente o estado terminal de nosso espírito (e o leitor que dê a acepção que lhe apetecer ao termo; nesse ponto, todas são aceitáveis para mim). Tal compreensão (minha, sua, de quem quer que seja) pode ou não se coadunar com as posições assumidas por Martim, pode problematizar todas e cada uma delas, mas o principal, a meu ver, é que no mínimo haja um real entendimento do que é exposto.

::: Em uma nação que se equilibra (?) sobre fraturas, Martim se pergunta (no corpo de um belo comentário à poesia de Alberto da Cunha Melo, pág. 586) “até que ponto somos realmente livres em um mundo destituído de sentido”. E o sentido não me parece algo primordialmente objetivo, solto na imanência e/ou na transcendência, uma coisa a ser agarrada lá fora. Um reordenamento interno se faz necessário, até porque (conforme a leitura de Voegelin d’A República de Platão) “o estado da psique individual, em saúde ou doença, expressa-se no estado correspondente” da sociedade em que nos debatemos.

Autopromoção desavergonhada

1.

emil

No próximo dia 12 de novembro, quinta-feira, participarei do primeiro Encontro Mundial da Invenção Literária. Será no Teatro João Caetano, às 13 horas. Falarei um pouco sobre meus livros, projetos e fracassos em geral.
O site do EMIL divulgará os detalhes desse e dos outros eventos que acontecerão em diversos pontos da cidade, entre 12 e 15 de novembro.

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2.
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No começo de dezembro, estarei na Feira Internacional do Livro de Guadalajara, onde participarei de:

2.1 Destinação Brasil, 03/12: bate-papo com Ignácio de Loyola Brandão, Claudia Lage e Paula Pimenta, mediado por Gustavo Pacheco.
2.2 Lançamento da revista Machado de Assis #7, 03/12: debate com Gustavo Pacheco e Susana Ventura.
2.3 Lançamento da edição mexicana de Veia Bailarina, de Ignácio de Loyola Brandão, 04/12. Apresentarei La perla asesina. Historia de un aneurisma com Delia Juarez e Irene Selser.
2.4 Latinoamérica Viva, 05/12: bate-papo com William Grigsby, Margarita García Robayo e Andrea Jeftanovic, mediado por Jorge F. Hernández.

Para informações detalhadas sobre a programação, basta clicar AQUI.

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1986

Um conto.

Patricia-Piccinini

A árvore de Natal já estava na sala. A família a montou em silêncio, os quatro ali reunidos, dias antes da viagem. Aquele foi o intervalo doloroso de uma despedida, ou o seu início.
As malas ficaram no tapete, bem perto da árvore, esperando por eles, por sua partida, desde a véspera. Estavam no lugar que seria normalmente ocupado pelos presentes. Eram duas malas enormes (talvez não cogitassem voltar) e Junior as rodeava, pensando num jeito de sumir com ambas e impedir, assim, que o pai e o irmão fossem embora, arrastá-las até o quintal e escondê-las atrás da mangueira, no escuro, cobri-las com folhas e galhos, talvez com uma lona preta. Como se adivinhasse o que se passava na cabeça do menino, Domingos gritava do escritório, do quarto, da cozinha:
— Para de fuçar!
A mãe se fechou no quarto o dia todo, ele a ouvia resmungar e chorar sempre que o pai entrava para pegar alguma coisa. Domingos não respondia, entrava e saía calado. Nessas entradas e saídas, a porta mal recostada, rangendo, Junior entrevia garrafas de conhaque e de vinho pelo chão, ao lado da cama, e havia também um cheiro horrível que lembrava o de comida vencida, o quarto transformado numa geladeira imunda que alguém desligara.
As coisas apodreciam ali dentro; quem se daria ao trabalho de jogá-las fora?
Era muito raro que comessem juntos, à mesa, mas foi o que ocorreu na manhã do embarque, Conceição sentada à cabeceira, com Domingos à esquerda e Junior e João à direita. Não conversavam. Tudo o que se ouvia eram as xícaras aterrissando nos pires e as facas raspando as torradas. A expressão dela era a pior possível, os olhos fundos e muito vermelhos e os lábios trêmulos, a qualquer momento cairia no choro, desabaria sobre a mesa que fizera questão de colocar; pai e filhos esperavam por isso, mas não aconteceu.
Aquela foi uma manhã atípica, em que fizeram coisas que não costumavam fazer, primeiro o desjejum em família e, depois, na rodoviária, os abraços que trocaram. Junior olhava para João, as calças compridas, a camisa e os sapatos novos, a miniatura de um homem. Era apenas três anos mais velho. Não se parecia com o pai, exceto, naquele dia, pelos olhos de quem já não estava ali, mas noutro lugar, o lugar para onde embarcariam; os olhos deles já se tinham lançado na estrada. A mãe também percebeu e se ressentia disso, dos olhos, de como se comportavam, dançando com a distância antes mesmo de seguir viagem. Não queria que ninguém fosse embora. Queria que todos continuassem ali e não se movessem jamais, para lado nenhum.
Conceição e Junior permaneceram na plataforma, as mãos dela sobre os ombros do filho enquanto os outros entravam no ônibus e se acomodavam. Depois, eles acenaram e o ônibus os levou embora. Ela afinal chorou um pouco, o rosto inchado, dizendo que não iam demorar, voltam logo, você vai ver, passa bem rápido.
Mesmo dentro da Belina, enquanto dirigia de volta para casa, manteve a mão direita grudada no ombro, ausentando-se apenas para trocar as marchas. A mão pesava um pouco mais a cada segundo, as unhas começavam a machucá-lo. Ele a encarou. Mesmo inchado, o rosto da mãe era bonito, o formato arredondado, os olhos claros e os cabelos longos e naturalmente loiros. Parecia sempre prestes a sorrir, tanto que era um choque quando chorava, como se isso não pudesse ser admitido naquele espaço ou não combinasse com ele. Mas, ultimamente, chorava com tamanha frequência que a ideia de um sorriso brotar ali é que se tornara deslocada, quase absurda.
Ela estacionou o carro na garagem e pediu a Junior que fechasse o portão, não, é melhor trancar logo de uma vez.
— Coloca o cadeado?

Era tempo de férias. Os dias se alongavam insuportavelmente, o calor ardia e, às vezes, no meio do quintal, à sombra da mangueira, Junior invejava a terra fria sob os pés e especulava maneiras de enterrar-se inteiro e não morrer. Foi quando lhe ocorreu construir um pequeno aposento, um minibunker a alguns metros da superfície, com espaço suficiente para instalar um colchão com um travesseiro e uma escrivaninha na qual colocaria um abajur e algumas revistas em quadrinhos muito bem escolhidas. Uma escada desceria em espiral junto ao tronco da mangueira; quando voltasse à superfície, a primeira coisa que teria do mundo exterior seria aquela densa sombra abençoada.
Usou parte dos trocados que o pai lhe dera para comprar um caderno no qual rascunhou diversas plantas do minibunker. Sentado no chão, arrastava os pés e sentia a terra entre os dedos e gostava disso. Calculou que precisaria de uma pá. Teria ainda de convencer a mãe a permitir que transferisse um colchão, um travesseiro, um abajur e a escrivaninha para debaixo da terra. A ideia de ir ao encontro dela era desagradável, mas, depois de pensar bastante a respeito, percebeu que não tinha escolha.
Foi encontrá-la à mesa da copa, folheando uma revista. As janelas escancaradas, o vento forte esvoaçava as cortinas. O lugar estava preenchido por uma luz branca que se refletia na camiseta também branca que ela usava e em sua pele, nos olhos e nos cabelos: vista à distância, era um fantasma benévolo, a alma iluminada de alguém.
Ele se aproximou.
Conceição bebia vinho tinto de uma taça enorme. Suas mãos tremiam um pouco. Ele quase perguntou a ela se sentia frio, se não queria que fechasse as janelas. Em vez disso, tratou de mostrar as plantas que desenhara.
— Quem te ensinou essa palavra? — ela perguntou.
— Que palavra?
— Mini… bunker?
— Meu pai um dia me explicou o que é bunker. Ele me mostrou num livro.
— Seu pai?
— Foi. É um lugar que você constrói debaixo da terra para se proteger.
— Você não precisa de um lugar debaixo da terra para se proteger.
— Acho que todo mundo precisa.
— Não, não precisa. Você está errado.
— Fizeram um monte noutros lugares. Fizeram na Alemanha, por causa da guerra.
— Na Alemanha?
— Aham.
— E você está na Alemanha, Juninho?
— Não. Em Goiás.
— Goiás está em guerra?
— Não, mas pode entrar.
— Como? Contra quem?
— Eu não sei. Mas a Alemanha antes da guerra era igual aqui. E então a guerra começou.
Ela respirou fundo e, sem querer, soltou um meio arroto.
— Seu pai fica mostrando essas coisas e te deixando impressionado. Seu pai está errado. Vocês dois estão errados. Eu preciso ter uma conversa muito séria com o seu pai.
— Ele está viajando, mãe.
— Eu sei, eu sei, eu — ela começou a gritar, mas se calou, balançando a cabeça como se negasse e negasse e negasse algo, sabe-se lá o quê. O vento circulava livre de uma janela a outra, parecia mudar a direção repentinamente, no meio do cômodo. Uma das cortinas esvoaçava para fora, ensaiando uma fuga. Falou mais baixo agora: — Eu sei que ele está viajando. Vou ter essa conversa quando ele voltar, entendeu? Quando ele voltar.
— Aposto que ele vai gostar disso aí.
— Não interessa. Você não vai se mudar para um túmulo.
— É um bunker, mãe. Um minibunker, na verdade. Porque é pequeno. Só vai caber eu lá.
— Pois eu chamo de túmulo. Você não vai se enterrar vivo. Eu não vou deixar. Não agora que seu pai e seu irmão deixaram a gente aqui e sumiram naquele fim de mundo. Não agora. Daqui a uns anos, se você quiser. Quando você já for adulto e eu tiver morrido, mas não agora. De jeito nenhum. Você precisa ficar bem aqui, comigo.
— Mas eu vou ficar aqui com você.
— A culpa é do seu pai.
— Eu não vou morar lá embaixo, mãe.
— Eu não preciso disso.
— Não precisa do quê? Do minibunker?
Desde que se referira ao minibunker como um túmulo pela primeira vez, Conceição falava como se estivesse sozinha, os olhos semicerrados, ainda balançando a cabeça. De repente, ela o encarou, ele nunca vira seus olhos tão vermelhos, ela o encarou e disse, quase gritando:
— E como é que essa coisa vai se sustentar? Hein? Você não abre um oco no meio do chão e espera que ele continue assim, oco. Você não é uma minhoca, não é uma toupeira. É?
— Não.
— Pois a terra vai desabar em cima dessa sua cabeça. Você consegue imaginar isso? Você consegue se imaginar enterrado vivo com seu abajur e suas revistinhas. Consegue? Consegue imaginar uma coisa dessas? Consegue ver?
— Eu… eu tive um pesadelo uma vez.
— Pois eu tenho pesadelo toda noite — ela resmungou, despencando a cabeça com tal força que deu a impressão de que fosse cair no choro ou no sono, talvez mergulhar por entre as próprias pernas, romper as tábuas do assoalho com as unhas e, repentinamente convencida da ideia (um lugar debaixo da terra para se proteger), cavar um bunker para si.
— A terra caindo na sua cabeça? — Junior perguntou.
Depois de um instante, talvez precisasse pensar um pouco antes de responder, não estivesse prestando atenção e corresse atrás das palavras, as do menino e as dela própria, em atraso, retardatária, ela levantou a cabeça outra vez, os olhos arregalados, talvez tivesse se lembrado de uma coisa muito ruim, um daqueles pesadelos, o pior deles, fosse qual fosse, o mais terrível, e sussurrou:
— Algo do tipo. Algo do tipo.
E, inesperadamente, puxou-o com força para um abraço muito forte, depois mandou que parasse de pensar naquelas bobagens e se sentasse à mesa e lhe fizesse companhia, estou sozinha aqui, você não pode me deixar sozinha, pode? Ele obedeceu.
— Você precisa cuidar de mim.
Bebericava o vinho e folheava a revista e acariciava as mãos e os cabelos do menino, ele louco para sair, voltar para o quintal, ir para o quarto, para a sala, para qualquer outro lugar do casarão. A carência da mãe era tão implacável e desesperada que não seria surpresa acaso, em algum momento, ela o devorasse, a cabeça primeiro.

Junior passava a maior parte do tempo no quintal, brincando sozinho, pensando em um jeito de abrir um oco no meio do chão e fazer com que permanecesse assim, oco. Quando não estava no quintal, esgueirava-se pelos cômodos do casarão, fingindo não ouvir quando a mãe o chamava. Mas havia momentos em que ela o cercava e abraçava e dizia coisas muito doces que contrastavam com o cheiro, um ar fétido de coisa defunta, que exalava, como se a língua tivesse morrido em sua boca e apodrecesse lá dentro. Um pedaço escuro de carne podre, aquele cheiro. Ele sentia vontade de xingá-la e sair correndo, de vomitar, mas aguentava firme, jamais diria nada que a chateasse, que a machucasse. Prendia a respiração, esperava que o soltasse e desaparecia outra vez.
Ela não dormia muito, pelo menos não nos horários normais. Passava muitas noites em claro, vendo televisão. Comia nas horas mais esdrúxulas. Certa vez, ele a viu com um prato cheio de arroz, rodelas de tomate e batatas fritas às oito e pouco da manhã. A cada dois ou três dias, varria o casarão. Não passava a vassoura por todos os cômodos, apenas pela sala e pelos quartos, às vezes pela cozinha. Ela se cansava, bebia mais um pouco e cochilava no sofá. Junior se aproximava, afagava seus cabelos, todo o cuidado para não acordá-la, postado logo atrás, a uma distância segura daquele cheiro, dela, para que não o devorasse (a cabeça primeiro).
O casarão era uma construção do final do século XIX. As paredes derruídas sugeriam mais história do que o lugar tinha na verdade. Era só uma casa muito velha e mal cuidada, sem nada de especial, encravada no centro de uma cidade também muito velha e mal cuidada, sem nada de especial. O que havia eram as histórias de fantasmas envolvendo antigos moradores, coisas repetidas em noites de verão quando os primos se amontoavam em algum quarto, luzes apagadas, a fim de assustar e serem assustados. Alguém, por exemplo, teria se enforcado na despensa, coisa que os pais negaram categoricamente para depois ralhar com os mais velhos, deixem de besteira, parem de assustar os menores. Os defuntos tinham nomes. Era isso o que mais assustava Junior, o fato de que até mesmo uma alma penada ou, como diziam, uma assombração pudesse ter um nome e, pior, que esse nome pudesse ser pronunciado, não por ele, não era louco, mas por qualquer outra pessoa, pelos primos, pelo irmão e até mesmo pelos pais, respeitem fulano, respeitem o descanso de fulano, isso não é brincadeira, isso é coisa séria, e ele pensava: como é que alguém descansa enforcado na despensa? A corda no pescoço, os pés sem tocar o chão, suspensos, corpo dependurado, quase ouvia a corda ranger, a madeira estalar no escuro, chamavam de despensa, mas nada guardavam ali, era um cômodo abandonado, as janelas fechadas, grossa poeira escura, mofo e breu.
Mas isso fora em outros verões, quando a casa se enchia de primos e primas, o mundo e as coisas tinham gosto de Natal e as férias, a despeito das histórias mal assombradas, aconchegavam tudo e todos. Agora, o pai e o irmão estavam fora como nunca estiveram antes e no casarão restavam ele e a mãe, sozinhos, e o telefone que, uma vez por semana, como se encarnasse a distância daqueles que ligavam, parecia tocar não sobre a mesinha junto ao sofá da sala, mas dentro de um sonho ruim repleto de estradas intermináveis e pessoas que simplesmente iam embora e desapareciam lá adiante, na poeira.

Certa vez, como resultado de uma discussão sobre o que sintonizar na TV, ele foi arrastado por João até a despensa e trancado ali. Eram férias, também, e havia primos pela casa e um amigo do irmão, que o ajudaram, João não era tão maior, tão mais forte, e Junior se debatia, agarrava móveis, portas, portais, arranhava as paredes e o chão e berrava, ameaçando, implorando. A sensação de ser lançado no escuro. Era um breu intenso, inabarcável, não havia muitas frestas, uns poucos furos no telhado. Ficou agachado, as costas apoiadas na porta, cabisbaixo, trêmulo. Não saberia dizer quanto tempo durou. Talvez uns poucos minutos, o irmão não era mau, é provável que se tenha arrependido em seguida, quando a raiva arrefeceu, e abriu a porta após ouvir a promessa de que nada seria dito aos pais, não vou contar nada, só me deixa sair daqui, por favor, me deixa sair. Talvez muito tempo, meia hora, uma, duas horas, o irmão não era mau, mas suscetível aos primos, ao amigo, a molecada ali sozinha, largada nos intestinos do casarão, eram férias. A sensação permaneceria para sempre, o ar abafado que o empurrava para baixo e contra a porta, o medo que o acachapava, a própria tessitura do breu, o negror como que se infiltrando nos poros e se instalando sob a pele, para sempre. Saiu mais pesado dali, pesado e escuro, tanto que, depois, o minibunker só lhe pareceria aprazível porque sempre o imaginava muito bem iluminado, a lâmpada potente do abajur transformando aquele oco subterrâneo em uma pequena e claríssima antessala do paraíso.

Na véspera da partida, o pai o levou até o escritório e abriu um enorme mapa sobre a mesa.
— Nós estamos aqui — disse, apontando para um ponto minúsculo no centro do mapa. — Eu e seu irmão viajaremos para cá.
Junior acompanhou o dedo que subia e subia e quase se perdeu. Era uma distância enorme, maior que um braço esticado do pai. Viajariam até o fim do mapa, e ele não conseguia imaginar um lugar tão distante ou que duas pessoas pudessem percorrer uma distância daquelas assim, sem mais nem menos, feito aquele dedo. Temeu que o pai e o irmão não conseguissem voltar ou, pior, que demorassem tanto tempo para voltar que não se lembrariam de seu nome, do nome da mãe ou de seus próprios nomes, dois andarilhos desmemoriados, sujos e empoeirados como os vaqueiros que costumava ver à beira da estrada quando, em certos domingos festivos, iam todos almoçar na fazenda de um tio.
Naquela noite, no escritório, depois de mostrar para onde viajaria, o pai explicou que a razão de tudo era uma excelente oportunidade profissional, e que levaria João porque ele nunca tinha viajado para tão longe de casa e da mãe, coisa imprescindível, disse, para o amadurecimento de qualquer pessoa. Junior gostava quando o pai usava aquelas palavras, “oportunidade profissional”, “imprescindível”, “amadurecimento”, por mais que não compreendesse a maior parte delas, e, no entanto, de alguma forma, soubesse exatamente o que elas significavam.
— A gente vai ficar quarenta dias lá e, conforme for, se as coisas derem certo, a gente volta e busca você e a sua mãe. De acordo?
Ele se imaginou fazendo aquele trajeto. Uma viagem interminável, até o fim de tudo. Sentiu um aperto no coração, mas fez um esforço tremendo para sorrir. O pai gostou de vê-lo sorrir, e para ele foi bom pensar (embora soubesse que não era verdade) que toda a aventura dependia exclusivamente disso, de um sorriso, de ele estar de acordo.
— Você tem que me prometer que vai cuidar da sua mãe enquanto eu e seu irmão estivermos fora.
Nas semanas seguintes, observando a mãe se arrastar bêbada pelo casarão e chorar ao telefone sempre que o pai ligava ou que ela própria ligava para alguma amiga a fim de desabafar, era o que dizia sempre, você está aí?, está ocupada?, desculpa, preciso conversar com alguém, não aguento mais isso, não aguento essa história, ele sentia crescer algo que ainda não conseguia nomear, uma sensação terrível de insegurança, uma espécie muito particular de terror que parecia vir de fora, talvez do alto do mapa, do lugar onde o dedo do pai finalmente estacionara, mas que na verdade nascia e crescia ali mesmo, entre as paredes do casarão, dentro da mãe, e se espalhava a partir dela, ensombrecia tudo e entrava pelos poros de Junior feito o escuro da despensa, tornando-se também parte dele. O pai lhe dissera, você tem que me prometer que vai cuidar da sua mãe enquanto eu e seu irmão estivermos fora, e ele concordara, como não concordaria?, mas, agora, não tinha a menor ideia de como fazer isso.
O aparelho de som 3 em 1 ficava na copa ou sala de jantar que raramente usavam. O pai tinha uma coleção de discos de música clássica e às vezes Junior pedia que colocasse um, qualquer um, para que, apartados do resto do casarão, ouvissem. Fizeram isso naquela noite em que Domingos, mapa aberto sobre a mesa no escritório, descreveu para o filho, com a ponta do dedo, a viagem que faria com João. Como sempre, Junior sentou-se no tapete e o pai, depois de fechar a porta que dava para a sala onde a mãe assistia à televisão, puxou uma cadeira para junto da estante e escolheu um disco. Tchaikovsky era um dos favoritos, talvez pelos canhões da Abertura 1812; ele sabia da predileção do caçula por tiros e canhões.
A maior parte dos discos ficava em uma espécie de maleta azul, presente de Conceição no Natal do ano anterior. Domingos se sentava, depois arrastava a cadeira para junto da estante, abria a maleta com todo o cuidado e escolhia um disco. Não tinham capas, mas ficavam dentro de envelopes brancos. Ele retirava o escolhido do envelope e o soprava antes de encaixá-lo no prato. Em seguida, pegava o pequeno braço com a agulha, ao que o disco começava a girar, e pousava no início da primeira faixa. Chiados e pequenos arranhões e, então, as cordas. Recostava-se na cadeira e olhava para o filho. Junior permanecia quieto, e era sempre estranho quando aquela melodia, que lhe parecia tão fora do tempo e de todo o resto, fora de tudo, ecoava na boca do estômago e depois começava a subir bem devagar, até a garganta. O pai não percebia nada. Apreciava o interesse do filho. Comentava com a mulher, com os parentes, orgulhoso, esse aí tem bom gosto, ouve música clássica.
Naquela noite, quando terminaram de ouvir, o pai lhe estendeu alguns trocados e pediu que não esquecesse o aniversário da mãe, na primeira semana de janeiro.
— Não gaste tudo com bobagem. Compre alguma coisa para ela, qualquer coisa. Acho que eu e seu irmão não voltaremos a tempo.

No dia do aniversário da mãe, as amigas dela invadiram o casarão logo cedo. Conceição ainda não tinha bebido muito naquele dia. Assistia à televisão, a taça de vinho sobre o braço do sofá, quando elas entraram sem bater ou tocar a campainha, meia dúzia de mulheres sorridentes falando ao mesmo tempo e carregando sacolas com garrafas de cerveja e vasilhas cheias de comida. Uma delas trazia um bolo.
Levaram a mesa da copa e as cadeiras para o quintal e logo estavam todas sentadas à sombra da mangueira, sobre o que deveria ser o minibunker, jamais construído. Falavam ao mesmo tempo, e cada vez mais à medida que bebiam. Uma delas colocou um toca-fitas sobre a mesa, as pilhas estão novinhas, disse, o que vocês querem ouvir? Conceição se levantou, animada, espera, espera, e, correndo, desapareceu dentro de casa. Voltou logo em seguida trazendo uma fita cassete.
Em algum momento, estavam ali fora havia duas horas ou mais, a fita sendo ouvida pela terceira ou quarta vez (O aniversário é meu ou o quê?), Conceição se levantou e correu outra vez para dentro do casarão; de alguma forma, em meio à barulheira das amigas e do som ligado, ela ouviu ou, talvez seja melhor dizer, adivinhou o telefone tocando lá dentro.
Voltou alguns minutos depois.
Não corria como antes, ao trazer a fita. Tampouco sorria. Sua expressão estava mais próxima daquela à mesa do café, na manhã em que Domingos e João partiram, os olhos vermelhos e fundos, os lábios trêmulos. Ela se aproximou de Junior, estava sentado no chão, as costas apoiadas no tronco da mangueira, agachou-se e, voz embargada, disse que o pai tinha ligado.
— Ele deixou um abraço para você. Um abraço bem forte. Ele está com muitas saudades. Sabia disso? Que ele está com saudades? Que ele sente a sua falta? A minha? A nossa falta?
Então, sem qualquer aviso, quando dava a impressão de que se levantaria para retomar o lugar à mesa e na festa, as amigas continuavam a beber e falar ao mesmo tempo, alheias a tudo, ela o sufocou com um abraço e o cheiro putrefato que exalava pela boca, a língua podre lá dentro e talvez mais, o corpo outrora dependurado pelo pescoço num dos cômodos, na despensa, o defunto de que os primos mais velhos falavam para assustá-lo, o cadáver de alguém que vivera e morrera no casarão, talvez Conceição o tivesse devorado, a cabeça primeiro, o fedor agora quadruplicado, quintuplicado, ela o abraçou por muito tempo e com muita força, tanta que ele mal conseguia respirar, as unhas lhe machucando as costas e o pescoço.
Junior gritou.
Uma das mulheres, sem se virar, disse a ela que deixasse o menino em paz, senta aqui, sua cerveja está esquentando. Ela recolheu os braços, mas não se levantou de imediato. Quando se viu livre, ele tossiu e a empurrou com uma das mãos, o punho fechado, sai daqui, o que a desequilibrou, por muito pouco não caiu sentada no chão. Olhou para Junior como se não o reconhecesse.
— Sai daqui — ele repetiu, mais alto.
Conceição abriu um sorriso torto, anormal, seu rosto agora tão vermelho quanto os olhos, a lua vermelha de um planeta distante, e reiterou, a voz subitamente distanciada, enregeladora:
— Seu pai ligou. Ele te deixou um abraço. Disse que estava com saudades. Ele sente a nossa falta.
Junior quis gritar, você já me falou, eu já sei do abraço e das saudades, sei de tudo, de toda essa porcaria, mas não disse nada, levou a mão esquerda ao pescoço que doía e baixou a cabeça.
Mesmo cabisbaixo, viu Conceição se levantar com enorme dificuldade, cambalear até a mesa, puxar uma cadeira e se sentar.
A festa transcorreu até o anoitecer.

…………

Uma versão anterior deste conto foi publicada na antologia O Livro Branco (Record), organizada por Henrique Rodrigues.