Notas sobre o beisebol

Notas sobre o beisebol

Beisebol

Enquanto avançavam, belissimamente exaustivas, as catorze entradas do jogo desta madrugada pareciam se desligar da realidade imediata. O estádio flutuava noite adentro, carregando a massa expectante de torcedores que prendiam a respiração e aguardavam não o desfecho elusivo, mas sua forma, o modo como se desenharia lá embaixo, no campo.

Foi um jogo de avanços paulatinos e placar apertado, intranquilo, em que os roubos de bases serviam não para alvejar o adversário (parecia evidente, depois de um tempo, que tal coisa não aconteceria), e, sim, para tentar estrangulá-lo, pouco a pouco. As entradas extras dão bem a medida dessas sucessivas e não raro frustradas tentativas de estrangulamento. Não é fácil dar cabo de alguém dessa maneira.

O beisebol tem essa característica fantasmagórica, e não o digo pelo que a coisa toda tem de vintage (e tampouco por aquele filmezinho insuportavelmente agridoce com Kevin Costner). É um esporte onde os tempos mortos não são descartáveis, não são pura e simplesmente mortos, pelo contrário. São os tempos mortos que, para mim, conferem graça ao beisebol, mais até do que o home run, e isso porque eles estão sempre carregados de uma espera gloriosamente otimista, graças à qual mesmo uma rebatida simples ou um walk irrompem com a exuberância de um acontecimento inaudito.

Adoro quando o rebatedor, depois de vencer o duelo com o arremessador (quatro erros deste e o adversário ganha seu passe livre), atira com displicência o bastão para o lado, despe-se dos apetrechos de proteção e dá a corridinha até a primeira base, conquistada muitas vezes com contenção (ao controlar a ansiedade e evitar os swings no vazio) e inteligência (ao perceber o momento ruim do arremessador e simplesmente permitir que ele se enrole).

Adoro as entradas intermináveis, pesadelo de qualquer arremessador, em que as bases vão sendo ocupadas e a possibilidade de um grand slam se instaura com sua carga apocalíptica. Mesmo que nada aconteça, mesmo que o arremessador e os defensores evitem o pior, mesmo que nem uma mísera corrida seja anotada, ou exatamente porque isso também é possível, que nada aconteça, o beisebol se desenrola com a beleza e a verdade intrínsecas à própria vida: tudo pode acontecer, algo pode acontecer, nada pode acontecer. Noutras palavras, dados seu tempo, seus acontecimentos e/ou desacontecimentos, suas esperanças e frustrações, o beisebol se confunde com a vida por inteiro, no que ela tem de bela ou insuportável, gloriosa ou patética, fatalista ou gratuita.

O beisebol é um esporte que exige outra relação com o tempo. Ele exige que nos abandonemos, sem a promessa de um desfecho, sem promessa alguma, aliás. Pode acabar agora, ou não. Pode continuar indefinidamente. Pode não oferecer qualquer consolo, ou pode (como aconteceu nesta temporada com os torcedores do Chicago Cubs, time que não vence o campeonato desde 1908) acenar com a possibilidade de uma catarse, possibilidade a ser confirmada ou negada, dolorosamente, e, neste caso, não resta alternativa além da resignação. Mais um ano, menos um ano; mais uma vida, menos uma vida; outubro que vem, quem sabe.

“Décima-segunda entrada e rumo à eternidade”, dizia o narrador, ontem. Eis o espírito. Diante do impasse, da incerteza, da insegurança e da imprevisibilidade, a eternidade torna-se quase mensurável. Um homem gira o bastão. Outro respira fundo, sentindo a bola com a palma da mão e os dedos, os olhos fixos na zona de strike. É um momento que se prolonga, como se o próprio tempo respirasse fundo e aguardasse. O beisebol é esse intervalo entre um silêncio e outro. É a espera. Ou, melhor dizendo, é aquilo que confere significado à espera. Viajamos junto com a bola, afinal, independentemente do que aconteça com ela. Abandonados no vazio. Soltos. Plenos de expectativa e beleza. Vivos.

.

Carpintaria narrativa

Resenha publicada em 23.10.2015 no Estadão.

moyan

O escritor chinês Mo Yan (em português, “Não fale”; pseudônimo de Guan Moye) recebeu muitas críticas quando, em 2012, recebeu o Nobel de Literatura. O poeta Ye Du comparou seu conterrâneo a uma meretriz. Salman Rushdie chamou-o de fantoche do governo chinês, pois não assinara uma petição pela soltura do crítico literário Liu Xiaobo, condenado à prisão como signatário da Carta 08 (manifesto pela democratização da China) e agraciado com o Nobel da Paz em 2010 (que não foi receber por estar na cadeia). Assim, é ótimo que seja lançado no Brasil um romance como As Rãs, cuja estupenda carpintaria narrativa justifica a premiação do autor e mostra que ele não é uma mera marionete do Partidão.

No primeiro capítulo, já nos deparamos com o narrador, Wan Perna (que também atende por Corre Corre e Girino), e alguns colegas de escola se deliciando, em meados dos anos 1960, com uma iguaria: carvão. “Mas é gostoso mesmo, tio”, diz alguém. A política do “grande timoneiro” Mao causava fome generalizada, e Mo Yan aborda o passado traumático em tom coloquial e bem-humorado, sem, contudo, aliviar o choque. É procedimento-padrão em todo o romance.

As Rãs devassa sete décadas da história chinesa e é estruturado em cinco partes. As quatro primeiras são cartas escritas por Girino, ex-militar e agora aspirante a dramaturgo, e endereçadas a um escritor japonês, o qual considera um mentor. A quinta parte é uma peça escrita por Girino, que reelabora, em chave onírica e delirante, algumas das histórias contadas nas quatrocentas páginas anteriores. No centro, estão uma tia do narrador, Wan Coração, e a política de controle de natalidade levada a cabo pela ditadura maoista.

A ambiguidade da tia é muito bem explorada por Mo Yan. Médica de boa ascendência e comunista de carteirinha, teria um brilhante futuro nos altos escalões não fosse pelo noivo, piloto da aeronáutica, virar um desertor. Trabalhando em sua remota terra natal, no nordeste do país, moderniza as técnicas de parto e salva muitas vidas. Mas, quando o controle de natalidade é instituído, em 1965, ela incorpora sem hesitar as novas diretrizes. Cada casal só pode ter uma criança; caso seja menina, uma nova tentativa é permitida após oito anos. A tia se ocupa, então, de abortar crianças “ilegais” e fazer vasectomia nos homens que já cumpriram a cota.

A inflexibilidade da tia se choca com a vida de Girino quando a mulher dele, Wang Renmei, tendo já uma menina, ignora a lei e engravida de novo. Os desdobramentos são trágicos. “Será que alguém que leva o senso de responsabilidade a esse ponto pode ser considerado gente? Aí já virou um deus ou um demônio”, diz o pai de Girino.

Aqui e ali, o romance adquire um tom sombrio, seja ao descrever uma “assembleia de denúncia” da Revolução Cultural, cuja insânia irrompe sem aviso, seja ao narrar as consequências não raro desastrosas do controle de natalidade. Em meio a isso, os personagens centrais tateiam em busca de expiação e redenção. Mas tudo cobra seu preço, o que é explicitado na peça que encerra o livro. “Cada criança é única e insubstituível”, lemos um pouco antes. “O sangue que manchou as mãos jamais será lavado? A alma atormentada pela culpa jamais encontrará alívio?”

Ressalte-se, por fim, o significado do título As Rãs (no original, Wa). Como diz uma personagem: “Por que a palavra ‘wa’ pode significar tanto ‘rã’ como ‘bebê’?”. Por que o choro de um bebê que saiu do ventre da mãe é parecido com o coaxo de uma rã? Por que os bonecos de barro da nossa terra muitas vezes têm uma rã no colo? E por que a deusa criadora da humanidade se chama Nü Wa?”. Ao colocar de pé uma narrativa tão forte, na qual se entrelaçam morte e nascimento, sanidade e loucura, fanatismo e libertação, Mo Yan não leva em consideração as críticas à sua persona e traz ao proscênio uma obra de arte..

Da impossibilidade do vazio

O princípio básico da física cartesiana é o da constância da quantidade de movimento. Descartes entendia por matéria apenas aquilo que é extenso (res extensa). O mundo físico é, assim, inteiramente constituído por corpos. A realidade física é absolutamente homogênea. Não há espaços vazios (estes seriam ocupados por corpos invisíveis aos nossos olhos, ou ignorados pelos nossos sentidos pouco confiáveis). Não há ausência de matéria no mundo físico. Espaço e extensão são sinônimos, e as coisas não extensas são aquelas próprias do mundo abstrato, do pensamento. O mundo material é organizado conforme a movimentação dos corpos que o constituem. No entanto, como é possível que haja movimento uma vez que inexiste o vazio? Noutras palavras, o que legitima o supracitado Princípio da Constância da Quantidade de Movimento? Em que ele se baseia? A economia conceitual cartesiana entende o movimento como algo localizado, uma mudança de lugar, aquilo que faz com que os corpos passem de um lugar a outro. Ele escreve n’O Mundo ou Tratado da Luz (p. 29-31): “Considero que há uma infinidade de diferentes movimentos que duram perpetuamente no mundo. E, após ter observado os maiores, que constituem os dias, os meses e os anos, noto que os vapores da terra não cessam de subir em direção às nuvens e de lá descer, que o ar está sempre agitado pelos ventos, que o mar jamais está em repouso, que as fontes e os rios fluem sem cessar, que os mais firmes edifícios por fim entram em decadência, que as plantas e os animais não fazem mais que crescer ou se corromper, em suma, que não há nada, em lugar algum, que não se altere”. Há uma eterna constância de movimentos. Algo aparentemente para de se mover aqui, mas outra coisa principia a se mover acolá. Há, além da constância, uma concomitância, pois um determinado corpo não se move daqui para algum espaço vazio, mas, não havendo vazio, ao se reposicionar, ele empurra outros corpos para alhures. E, reitere-se, no mundo físico, o movimento é constante e permanente, pois “não há nada, em lugar algum, que não se altere”. E é esse movimento que, em sendo a matéria divisível e mais ou menos concentrada aqui ou ali, explica (por exemplo) as diferentes formas e consistências dos diversos corpos. Descartes repousa sua física na metafísica, como também o faz Leibniz (grosso modo, o divórcio entre uma coisa e outra só ocorrerá com Newton e o advento da física meramente descritiva, conforme percebido por Kant). E ele o faz porque intenta fundamentar a necessidade de algo (o citado Princípio) que, em si, não é logicamente necessário. O tempo, em Descartes, é introduzido por D’us quando Ele dispõe o movimento. O tempo é uma sucessão de instantes assinalada pela constância do movimento numa realidade física em que a própria expressão “espaço vazio” é contraditória, pois, se há espaço, não há vazio. Tudo está preenchido, o tempo todo. Tudo é extensão.

A queda em Mishima

Resenha publicada em 03.10.2015 no Estadão.

mishima

Foi em 25 de novembro de 1970. Acompanhado por alguns membros de sua organização extremista (a Tatenokai, ou “Sociedade do Escudo”), o escritor Yukio Mishima (pseudônimo de Kimitake Hiraoka) invadiu um quartel-general do exército japonês, em Tóquio, e tentou convencer os soldados a dar um golpe de Estado. O objetivo era restituir os poderes ao imperador. Em vista da indiferença alheia, Mishima proferiu um discurso nacionalista e então cometeu seppuku, o ritual suicida dos guerreiros japoneses. Tinha 45 anos e concluíra havia pouco a escrita de A Queda do Anjo, último volume da tetralogia Mar da Fertilidade.

O período compreendido pelos quatro romances (os outros três são Neve de Primavera, Cavalo Selvagem e Templo da Aurora, todos já lançados no Brasil pela Benvirá) vai de 1912 a 1975 e, em seu conjunto, eles evisceram os problemas advindos do avanço da modernidade ocidentalizante no Japão, com a “entropia moral” e das tradições que o autor enxerga nesse processo. O personagem central das narrativas é Shigekuni Honda e nos três últimos volumes nós o encontramos em períodos distintos de sua vida, relacionando-se com pessoas que ele acredita serem reencarnações de seu amigo Kiyoaki Matsugae (personagem de Neve de Primavera).

Em A Queda do Anjo, Honda é um idoso e rico juiz aposentado que enxerga no órfão Toru Yasunaga o espírito de Kiyoaki e, por isso, decide adotá-lo. O conflito maior do romance se dá pela psicopatia de Toru, que “gostava de olhar as pessoas como se fossem animais num zoológico”. Ele parece simbolizar a patologia do apodrecido tecido social japonês, e Mishima é extremamente bem-sucedido na forma como desenvolve não só a relação do jovem com o velho, mas a própria constituição de suas personalidades e o modo como ambas acabam por encaminhá-los ao desfecho em que a cegueira (literal e figurativa) tem um papel importantíssimo.

O personagem de Toru é, talvez, a melhor descrição de uma personalidade psicopata desde o Stavroguin de Os Demônios, romance de Fiódor Dostoiévski. Há, inclusive, a longa transcrição dos trechos de seu diário, quando Toru envolve a noiva, que despreza, numa teia de intrigas cuja finalidade é destruir a moça. “A única questão é que você encontrou uma maneira de passar a vida”, diz Honda a Toru, ao entender o que aconteceu. “E uma maneira sombria, sem doçura nenhuma, pode-se dizer.”

O rapaz parece não ter muita escolha, pois ter “que viver era mais negro do que o negro mais soturno”. Por causa, sobretudo, da perversidade desse personagem, Mishima discorre com eficácia acerca daquela já citada “entropia moral”, percebendo nela um sintoma da doença japonesa que tanto o incomodava, calcificada na morte das tradições e no fim de qualquer possibilidade de restituir a grandeza à nação. Independentemente de concordarmos ou não com a posição política do autor, e ressaltando o fato de que ela não contamina a sua escrita, importa encarar A Queda do Anjo e os demais volumes da tetralogia como obras extraordinárias e que carregam, em si, todo o espírito de uma época.

"Dientes negros"

Fragmento de la novela Dientes negros.
Traducción de Julia Tomasini.

Están sentados a la mesa del bar, otra vez en silencio. Ella es muy joven y él no sabe lo que ella hace, no recuerda quién los presentó, no sabe con quién ella llegó a aquella mesa, él llegó después y ella ya estaba allí. Dos huérfanos, ella bahiana, él de Goiás, sus tierras natales devastadas, sus familias, y él piensa sobre lo que ella le dijo antes, eso de estar envenenados, algo así, y pregunta:
¿Qué quisiste decir con eso?
¿Eso qué?
Tú dijiste algo de estar envenenados hasta los huesos. O a partir de ellos. Algo así.
Sí, lo dije.
¿Qué quisiste decir?
Tú lo sabes.
No estamos enfermos. La vacuna funciona. Estamos todos vacunados aquí. Nuestros huesos están a salvo.
No, no lo están. Tú lo sabes, la vacuna no elimina la enfermedad. Solo impide que los síntomas aparezcan, eso sí. Construye un montón de pequeñas jaulas para los antígenos y transforma nuestro cuerpo en un inmenso calabozo. Somos todos bastillas ambulantes. Estamos todos enfermos, y enfermos hasta los huesos. La enfermedad está dentro de nosotros y nunca va a salir.
Está dentro de nosotros y nunca va a salir, repite él.
Hugo sabe de, siempre lo supo. Leyó sobre, vio y oyó en la televisión. Pero nunca pensó al respecto. Nunca lo dijo en voz alta.
Las filas, las personas tomando la vacuna cuando todo parecía perdido, cuando parecía que la desgracia llegaría hasta ellos, inclemente, cuando parecía inevitable. Antes, los sobrevivientes migraban hacia el sur y el sudeste y eran aislados y estudiados, cuando no asesinados por algún militar osado o por civiles descontrolados, que parecían decir, y a veces decían, gritaban:
¿Por qué no se quedaron allá y murieron?
La cosa dentro de ellos, paralizada, pero dentro de ellos para siempre, y después dentro de él, de Hugo, y de todos los otros, todos debidamente vacunados.
Calabozos ambulantes.
Hugo piensa en un tío al que cierta vez, hace mucho tiempo, le dieron un tiro y la bala nunca salió de su cuerpo. Ni se la quisieron sacar. Los médicos dijeron que causaría más daño abrirlo y sacar la bala que dejarla adentro. Las radiografías, el proyectil visible. ¿La enfermedad en nosotros es así, visible como una bala?
¿Qué es lo que tú haces?, él pregunta.
Estudio artes escénicas. Pero no sé actuar. Quiero escribir.
¿Escribir obras de teatro?
Escribir obras de teatro.
Yo tenía una amiga que había estudiado artes escénicas. Ella actuaba.
¿Aquí?
En Goiânia. Casada con un amigo mío que era escritor.
¿Escritor?
Sí, escritor. Novelas, cuentos. Su nombre era Daniel.
¿Ellos…?
Sí, claro. Ellos, todo el mundo. Todo el mundo.
Las filas eran enormes y había personas tomando la vacuna varias y varias veces y creyentes orando y vendedores ambulantes en las puertas de los puestos de vacunación y periodistas y la vacuna siempre se terminaba y las personas esperaban días en las filas y las filas nunca disminuían y las personas se desesperaban y había tumultos y peleas y muertes, incluso con el gobierno que decía que la cosa había sido controlada, que no se preocuparan, y la cosa no quedó del todo clara realmente, cómo el avance de la epidemia fue tan avasallante y, después, cómo fue contenida con tanta rapidez. Las personas no quisieron pensar al respecto. Él, Hugo, no quiso pensar al respecto. Todo el mundo quería simplemente olvidar.
¿Te gusta el teatro?
Es todo teatro, él responde sin reflexionar mientras piensa en los días de la vacunación, en las filas, en los tumultos, en todas aquellas personas en el bar, en la calle, por la ciudad, fuera de ella, fuera de todo, y también piensa en las personas en las áreas devastadas, los que no murieron y no se fueron, los que insistieron en quedarse, en las ruinas, en el medio de la nada, en los lugares ahora sin nombre.
Es todo teatro, ella repite y ríe e inmediatamente él se está riendo también.
Beben más y no pasa mucho tiempo para que él le pregunte si está con alguien. Hugo no miente:
Vivo con un tipo.
¿Cómo se conocieron? ¿Cómo sucedió todo?
De la forma en que siempre sucede.
Renata prende otro cigarrillo, aspira y dice que será el último, que después de ese se va. Ellos no tienen mucho más que hacer por allí.
Vivo aquí cerca, en la Frei Caneca.
¿Por qué te vas tan temprano?
Si yo no estuviera aquí, conversando contigo, ¿te habrías quedado aquí hasta ahora?
No.
Si tú no estuvieras aquí, conversando conmigo, yo me habría ido después del segundo cigarrillo.
Toman una última dosis de arak, ella termina el cigarrillo y dice:
¿Vamos?
Hugo paga las bebidas, se despiden de los demás y cruzan la calle completamente congestionada, filas y filas de automóviles parados desde antes de la Av. Paulista hasta vaya a saber dónde, del infinito al infinito.
Se besan en el ascensor porque todavía en la acera ella le dijo que nunca, en toda su vida, había besado a nadie dentro de un ascensor.
Mi cuarto está hecho un desastre.
Ella guarda los discos en el estante de la sala, los discos debidamente catalogados, y tiene una vitrola comprada algunos años antes en la Benedito Calixto.
Regalo de mi padre. Mi último cumpleaños con él.
Su voz tiembla un poco al decir esto.
La vitrola, pequeña, está conectada a dos cajas de sonido enormes. Ella pone un disco y deja el volumen bajo. La música se esparce por el piso de la sala como agua liberada de un acuario cuyas paredes se rompieron.
Es uno de los primeros de Tom Waits. ¿Te gusta Tom Waits?
Sí, me gusta. Tú eres tan joven.
Tú no tienes treinta años.
Tú no tienes veinticinco.
Se sientan en el sofá.
Quizás haya sido realmente un borracho. O quizás solo estuviera actuando, solo cantara como borracho.
Hay formas de descubrirlo.
Las informaciones disponibles no son confiables.
Él trata de recordar el nombre de la canción, pero no lo logra. Como si adivinara, ella dice:
You’re Innocent When You Dream.
Él sonríe: Sí.
Ella le da un beso en la boca, como si quisiera apropiarse de su sonrisa. Cuando se aleja un poco, ambos están sonriendo.
¿Quién era japonés?, él pregunta. ¿Tu madre o tu padre?
Mi madre. Murió cuando nací.
Lo siento.
Siéntelo.
¿Y tu padre?
Hace tres años. ¿Me das un beso?
La besa y ellos van hasta el piso en el momento en que la música, a punto de ahogarlos, termina de inundar todo el apartamento.

.

Chalámov

Resenha publicada em 29.08.2015 no Estadão.

varlam

Em um pequeno “epílogo” à edição espanhola dos Contos de Kolimá, o tradutor Ricardo San Vicente traça uma diferença importante entre as literaturas de Varlam Chalámov e Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Lembremos que o autor de Crime e Castigo também amargou um período como prisioneiro na Sibéria, condenado sob a acusação de conspirar contra o czar Nicolau I, e que essa experiência nos foi contada em uma de suas obras-primas, Recordações da Casa dos Mortos. No entanto, San Vicente chama a nossa atenção para o fato de que, em Dostoiévski, os sofrimentos são encarados como “um caminho de purificação”, ao passo que Chalámov “observa em cada passo, em cada minuto, em cada sopro de ar do campo de trabalho, um degrau a mais no caminho da desumanização do homem”.

Em vida, Chalámov era mais conhecido como poeta. Não é difícil perceber em seus contos uma carga lírica acentuada, que, no entanto, não camufla a crueza extrema do que é narrado. A pesquisadora Irina P. Sirontiskaia (que conviveu com o escritor em seus derradeiros anos de vida e assina o prefácio do primeiro volume) cita o próprio Chalámov: “É necessário e possível escrever um conto que seja indistinguível de um documento. (…) A nova prosa contemporânea só pode ser criada por pessoas que conheçam perfeitamente o próprio material”.

Os “documentos” são, assim, indistinguíveis do homem que os produziu e do que ele vivenciou na “escola negativa” que eram os campos de trabalhos forçados. Adentramos com ele a tarimba do oficial Naúmov para acompanhar um jogo de cartas que termina mal (em Na Fé), seguimos a trilha de um penhasco com dois detentos que procuram um cadáver a fim de lhe furtarem a camisa e as ceroulas (em De Noite), somos informados sobre como os prisioneiros mensuravam o frio em Os Carpinteiros (o pior é abaixo de 53 graus negativos, quando “o cuspe congela no ar”), vemos como o narrador assume a missão de contar a história que deveria ser de responsabilidade de outro escritor, morto nos campos, como que para honrá-lo (em O Encantador de Serpentes), lemos uma belíssima descrição da morte do poeta Óssip Mandelstam, outra vítima dos campos (em Xerez), e nos perdemos com o narrador nos labirintos da burocracia stalinista (em A Trama dos Juristas).

São, ao todo, 33 narrativas, e em todas vislumbramos “esse embotamento da alma, esse frio espiritual”, o “frio cortante, aquele mesmo que transformava o cuspe em gelo no ar”, atingindo “a alma humana”. E, com isso, até para que pudessem sobreviver, os homens se viam obrigados a prescindir de qualquer esperança e a viver “como vivem a pedra, a árvore, o pássaro, o cachorro”, e, no entanto, mais apegados à vida e mais resistentes às intempéries do que eles.

Depois de sobreviver ao “chamado do Norte” e a fim de dar o seu testemunho, uma vez que, lá, tudo “o que lhe era caro se transforma em cinzas, a civilização e a cultura o abandonam no mais curto período de tempo”, Chalámov recobre com a verdade de suas palavras a vida nua daqueles desgraçados e a sua própria.

Não há, em suma, nada que se assemelhe a uma purificação nos Contos de Kolimá. Há, sim, o recrudescimento de tudo o que é espúrio e inumano, alimentado pela selvageria tanto da natureza, quanto dos indivíduos nela abandonados. O homem é gradativamente reduzido à animalidade mais básica, até se tornar um mero feixe de nervos, reagindo quase instintivamente ao que acontece ao redor. Para dar conta de tamanha obscuridade, só mesmo a clareza brutal, para não dizer brutalista, desse gênio literário.

Exílio irredimível

Resenha publicada no Estadão em 25.08.2015.

bazar

A temática do desterro se faz presente em boa parte da melhor literatura produzida (vide autores tão díspares quanto Sebald e Appelfeld), e é possível ler o novo romance de Luis S. Krausz como um autêntico representante dessa vertente. De fato, o ótimo Bazar Paraná talvez possa ser descrito como um mapeamento afetivo-familiar do desterro. Muito embora, em uma nota preliminar, o horrendo termo “autoficção” seja utilizado para se referir ao livro, o melhor é que o encaremos como uma “obra da imaginação” ou uma “heteroficção”, pois, ficcionalizando os outros e suas deambulações, o autor nos possibilita vivenciar a experiência do exílio que os constitui.

O mote do romance é uma viagem. Acompanhado pela avó e pela irmã, o narrador vai ao interior do Paraná, em meados dos anos setenta, visitar uma colônia agrícola mantida há décadas por refugiados alemães. Vários deles são sobreviventes da perseguição nazista, bem-sucedidos no modo como refizeram suas vidas nas entranhas inóspitas do Brasil, e alguns procuram manter “um pedaço vivo do passado”, cultivando a língua e a cultura da nação que, pouco antes, assassinara vários de seus parentes e amigos, e quase eles próprios.

Um exemplo dessa disposição pode ser verificado num dos personagens descritos por Krausz com sua clareza de estilo e elegância peculiares: “No recolhimento de seu exílio paranaense, o Dr. Max Hermann Maier tornava-se o guardião de relíquias que, como se congeladas no tempo, tinham ali nos trópicos uma sobrevida espantosa, enquanto os modelos originais, dos quais eram derivadas, tinham, muito antes, sido arrasados em solo europeu”.

A viagem e a narrativa se prolongam por três dias, mas são décadas e décadas cobertas por rememorações feitas às mesas e em salas de estar. O narrador passeia pelas casas e pelas vidas daqueles que o recebem, dando ao romance uma estrutura episódica, em que cada visita oferece uma nova perspectiva dessa grande “metáfora do destino de um grupo fadado ao desaparecimento”. A inadequação talvez seja o elemento mais forte, pois são pessoas “que se sentiam europeus em Israel, judeus na Europa, brasileiros nos EUA e passavam a vida em meio a dúvidas sobre qual seria, afinal, o lugar que lhes cabia no mundo”.

Dentre os relatos mais pungentes, estão o do casal Hinrichsen (em cuja fazenda o narrador e seus familiares se hospedam), com suas coleções de cartões-postais e de selos sublinhando a distância e a sensação de exílio; do Dr. Maier, condecorado na 1.ª Guerra e que jamais vira sua sensação de “germanidade” desaparecer, ainda que seus familiares que permaneceram na Alemanha tenham sido “deportados, em vagões de gado, para um destino desconhecido no Leste”; e de Lisbeth Neu, que optou por viver num kibutz, “pois via como única resposta digna, depois de acontecido o que aconteceu”, estabelecer-se em Israel.

Krausz dá forma a essas e outras histórias com extremo cuidado; o romance tem um andamento melancólico e parcimonioso. Os relatos se imbricam e se iluminam, alargando o horizonte narrativo, sem, contudo, recorrer às facilidades do sentimentalismo e da nostalgia fácil. Ao fim, Bazar Paraná oferece a seus personagens a possibilidade de um lar – o próprio romance, lugar em que suas vozes são reconstituídas e entregues à nossa fruição.

Na serenidade e na pompa

PriebkeHochzeit

“(…) Como fizera com grupos de judeus alemães convertidos ao catolicismo às vésperas do início do genocídio, no pós-guerra o Vaticano colocou sob sua proteção antigos oficiais (nazistas), altos burocratas do partido (nazista), ex-dirigentes de grandes empresas, cujas burras tinham sido abarrotadas pelo esforço de contingentes aparentemente inesgotáveis de trabalhadores escravos, encaminhando-os para postos de trabalho respeitáveis em cidades como Buenos Aires e Mendoza, Assunção, La Paz ou (…) Santa Cruz de la Sierra, onde os esperavam cargos em empreendimentos impecavelmente organizados, não obstante o ambiente caótico e imprevisível das cidades latino-americanas (…). Para essas localidades dirigiram-se, na serenidade e na pompa dos transatlânticos que desafiam todos os mares e todas as tempestades, e de lá para o conforto de aposentadorias bem fornidas, beneficiados, na dignidade de sua idade avançada, por temporadas em balneários, termas e estações de águas, as quais, tinham certeza, haveriam de fazer parte, um dia, outra vez, do Reich, como Karlsbad, na Tchecoslováquia, ou Dorna Vatra, na Romênia. Graças a nomes falsos e passaportes estrangeiros, concedidos de boa vontade pelos países hospitaleiros cujas juntas militares os acolhiam, visitavam, também, suas cidades natais, na Alemanha desnazificada, onde encontravam antigos camaradas de fileiras em comemorações que se estendiam noite adentro, onde visitavam parentes convenientemente esquecidos de antigos sonhos alemães, apaziguados pelo Wirtschaftswunder, pelo milagre econômico. (…)”

Trecho (p. 66-7) de Bazar Paraná (Benvirá),
romance de Luis S. Krausz.

Narcisistas

Parafraseando Montale, o narcisismo pode até nos divertir, mas não nos comove jamais. Penso, claro, no péssimo artigo de Knausgård sobre Breivik, publicado na Piauí deste mês. A estupefação cega que o anima trafega pelas obviedades habituais: McVeigh, Arendt, o sentimentalismo torpe de programa televisivo dominical. Quando, após transcrever e descontextualizar um trecho de Eichmann em Jerusalém, Knausgård afirma que o ser humano é naturalmente infenso à violência, eu ri alto. E, à medida que se torna clara a sua inapetência para alcançar uma reflexão, qualquer que seja, sobre o massacre, é previsível a forma como apela a essa pornografia do coração que tanto comove os cérebros concretados. O saldo final é um resmungo malcriado de alguém que se sente traído pelo mundo (pois Breivik é “um de nós”, como é possível?!), como se o mundo lhe devesse satisfações.

Outra vítima dessa doença é Zambra. Por exemplo, o derradeiro conto (?) de Meus documentos é de uma cafajestagem sem tamanho. Está ali o truquezinho metaficcional manjado como que desculpando a incapacidade do autor de explorar um tema pesadíssimo (pedofilia, parricídio — este, de mentirinha, como quase tudo, afinal). Não é sequer um jogo de ocultamento e desocultamento, conforme a narrativa se desenrola, a fim de lhe conservar e depois sublinhar a força, pois não há força, e, sim, frouxidão, uma preguiça que explicita o abismo entre autor e tema. Não há vivência, e tampouco interesse real pelo que é narrado. Zambra é vencido pelo próprio narcisismo, que o impede até mesmo de perceber o negrume intrínseco àquela violência. Esta é barateada pelos vícios de um mau escritor, que fracassa diante de qualquer coisa que ultrapasse o estreito horizonte de suas viseiras apertadas. Ou seja, diante de quase tudo.

O trato com a violência não é para amadores, até porque exige um ressituar-se no mundo. A violência implode o narcisismo, pois é (também) constituída por uma experiência radical do outro. Mas Zambra sequer se aproxima de sua personagem brutalizada, assim como Knausgård mal enxerga os cadáveres empilhados por Breivik. Os ouvidos do primeiro estão voltados para um autoentranhamento que jamais resulta em estranhamento. E os olhos do segundo foram vazados pelos mesmos fatos que, agora, procura em vão distinguir no breu absoluto. Em vez de ser um ponto de partida, a pobreza de ambos é um sintoma. A simplicidade só redunda em sofisticação nas obras dos grandes escritores (Kawabatta, Adriana Lisboa), até porque ali é um sinal de generosidade. Nos maus, ela é um engodo, um modus operandi divorciado de um modus vivendi, ou, melhor dizendo, e de novo recorro a Montale, um modus moriendi indeciso entre o suicídio e a sobrevivência.

No "Leituras"

Fui entrevistado pelo programa Leituras, da TV Senado, em fevereiro. O programa foi ao ar há poucos dias. Falei bastante sobre Terra de casas vazias e um pouco sobre o meu próximo romance, Abaixo do paraíso (lançamento previsto para março de 2016, pela Rocco).

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=Pjet1OuCvMA]