"This is insane."

"This is insane."

“Do you think androids have souls?”, Rick interrupted.
Philip K. Dick, em Do androids dream of electric sheep?

puberty-1894

Em Do androids dream of electric sheep?, romance que inspirou Blade Runner, há uma passagem na qual o protagonista, o caçador de recompensas Rick Deckard, vai a um museu no encalço de uma androide. Ele é acompanhado por um colega que, àquela altura, temos quase certeza de que se trata, também, de uma máquina.

Eles passeiam por uma exposição de Edvard Munch. Depois de contemplar por um momento o famigerado O Grito, dão com a “presa” diante da tela Puberdade:

Holding a printed catalogue, Luba Luft, wearing shiny tapered pants and an illuminated gold vestlike top, stood absorted in the picture before her: a drawing of a young girl, hands clasped together, seated on the edge of a bed, an expression of bewildered wonder and new, groping awe imprinted on the face.

Ela se deixa levar. Na saída da exposição, contudo, pede a Rick que compre uma reprodução de Puberdade. Ele concorda, comprando na verdade um livro com várias reproduções de Munch. “There’s something very touching about humans”, diz a androide, depois de agradecê-lo. “An android would never have done that.”

Deckard não precisava ter comprado o livro, uma vez que a androide está sendo levada para remoção, isto é, para ser eliminada. E ela, ciente de seu destino, faz o pedido mesmo assim, como que para testá-lo e, ao mesmo tempo, observar uma (suposta) pessoa fazendo algo que, no entender dela, um androide nunca faria. “I really don’t like androids”, ela também diz, antes de digressionar sobre como se ocupava, o tempo inteiro, em imitar o que a ela parece uma “forma de vida superior”, os humanos.

Dick trabalha durante todo o romance com uma zona de indistinção entre o que é (ou parece ser) humano e o que não é (ou não parece sê-lo). Lendo, me veio à cabeça a reflexão de Agamben n’O Aberto sobre a própria indefinição do humano enquanto tal e relativamente à sua natureza animal, indefinição que atravessa toda a história do pensamento ocidental e cujos desdobramentos acabam por servir a fins biopolíticos (por ex., a forma como o regime nazista reduziu os judeus à mera animalidade, despindo-os de seu estatuto humano e, assim, tornando-os removíveis, matáveis).

Luba, a androide, é uma cantora de ópera. A angústia de Deckard com a sua remoção passa pelo fato de que ele admirava o trabalho dela. Há o relance de um questionamento (o que, afinal, tornava Luba perigosa para os humanos, a ponto de justificar sua brutal remoção?). Nem chega a ser um questionamento, afinal, mas uma inquietação, um curto intervalo de perplexidade: “(…) I can’t any more; I’ve had enough. She was a wonderful singer. The planet could have used her. This is insane”.

Num certo sentido, angustiado com as circunstâncias, é como se Deckard dissesse: “I really don’t like humans”. O curioso é que a norma social vigente, ancorada numa espécie de religião chamada mercerismo, preza acima de tudo a empatia — artificialmente suscitada, ressalve-se.

É como se, no limite, não houvesse um locus identitário onde os personagens pudessem se situar. A existência de androides que ignoram a sua própria condição é um indício disso. Em certos casos, o ser só tem conhecimento de sua condição (ou não-condição, do ponto de vista humano, seja lá o que isso for) quando está prestes a ser removido. Outros continuam a desempenhar funções humanas mesmo quando irrompe a dúvida quanto ao que, de fato, são (vide o colega que acompanha Deckard ao museu).

Ao vazio identitário (“I’ve become unnatural self”, diz Deckard perto do fim), segue-se o vazio ontológico. As categorias são abandonadas numa enorme e sombria zona de indistinção. Os testes de verificação podem ou não funcionar, são ou não confiáveis. Em circunstâncias tais, a violência é a única resposta possível, o recurso forçosamente situador (de quem mata e de quem é morto) por excelência. Os procedimentos adquirem, assim, uma inexorabilidade que não é possível contornar. Ter ou não alma não faz a menor diferença.

Arendt, Sócrates, Platão

O divórcio entre filosofia e política tem uma data de nascimento, a qual, ironicamente, foi também a data de uma sentença de morte: o dia em que Sócrates foi julgado e condenado a beber cicuta. Logo no começo de Filosofia e política¹, Hannah Arendt explicita as consequências disso: ali, Platão desencanta-se com a vida na polis e, uma vez que Sócrates não conseguiu convencer os juízes a poupá-lo, com a própria validade da persuasão, o que equivalia a renegar a maneira como se fazia política em Atenas. Assim, Platão passou a rejeitar a doxa (opinião) frontalmente, com todas as forças, e a ansiar por padrões absolutos, os quais se tornariam o norte de sua filosofia a partir de então. Como resultado disso, teríamos em Platão, nas palavras de Arendt, “o primeiro a usar as ideias para fins políticos, isto é, a introduzir padrões absolutos na esfera dos assuntos humanos” (p. 92).

Arendt sublinha o descompasso entre os filósofos e a polis, descompasso cujo paroxismo está nos próprios julgamento e morte de Sócrates. Aí está explícito o fato de que a cidade “não é um lugar seguro para o filósofo”, no sentido de que ela não se ocuparia ou se preocuparia em preservar a memória do filósofo. Portanto, é no contexto mesmo do impacto causado pela condenação e pela morte de Sócrates que podemos vislumbrar o que moveu Platão dali em diante: diferentemente da opinião (ou preconceito) corrente na polis, o filósofo não seria um sophos, isto é, um “sábio”, alguém preocupado com as grandes questões, mas incapaz de se ocupar da vida prática da cidade, uma figura, portanto, algo ridícula (do ponto de vista dos demais) ou passível de ser ridicularizada, “inútil”. Grosso modo, Platão pensava que era justamente por estar preocupado com as grandes questões que o filósofo poderia acessar a ideia do bem (a mais alta de todas) e, com isso, estar apto a governar a cidade.

Ocorre que a própria estrutura política da cidade desfavorecia o trabalho filosófico, uma vez que, quando o filósofo ia até os seus concidadãos e expunha a sua verdade (a qual, conforme Platão, era o oposto da mera opinião), esta era ouvida como uma opinião qualquer, não como uma verdade. Havia, portanto, aquele enorme e já citado descompasso: como o filósofo poderia fazer com que os seus concidadãos tocassem o eterno (domínio da verdade) se estavam por demais aferrados ao temporal (domínio da opinião)? Na verdade, o próprio método socrático de pensar (dialética) ia na contramão do que então se praticava na polis, ainda que o próprio Sócrates não considerasse a dialética “o oposto ou mesmo a contrapartida da persuasão” (p. 96). Em seu trabalho obstetrício, “maiêutico”, o que Sócrates pretendia era que cada interlocutor descobrisse a verdade inerente à sua própria opinião, porque assim (e citamos Hannah Arendt mais uma vez) a cidade se tornaria mais verdadeira à medida que cada cidadão parisse as suas verdades (p. 97). Aqui, a diferença entre Sócrates e Platão se torna muito evidente: Sócrates não tinha a intenção de educar os cidadãos, dizer verdades filosóficas e, em última instância, governar a cidade, mas, sim, agir como um “moscardo” e, por meio do diálogo insistente acerca de algum tema, isto é, por meio da dialética, procurar trazer à tona (revelar) a verdade inerente à doxa de cada um.

Em meio a tudo isso, e dada a natureza de suas conversas, Sócrates parecia muito ligado à ideia de formar uma comunidade em Atenas, isto é, fazer com que seus cidadãos se distanciassem da competição feroz que grassava entre eles e que era uma das razões pelas quais a cidade decaíra tanto desde a morte de Péricles. Portanto, o tipo de diálogo mantido por Sócrates não era da mesma natureza que os diálogos mantidos pelos demais, nos quais havia um espírito combativo e o “melhor” (o mais persuasivo) se sobressaía, para a inveja dos outros. Aqui, é bom lembrar que a ideia de doxa não envolve apenas o termo “opinião”, mas, também, “glória” e “fama”, visto que cada cidadão, ao participar da vida política da cidade e se mostrar mais persuasivo que os demais, isto é, fazer valer a sua opinião, destacava-se da maioria. Não havia, portanto, um espírito de comunidade ali, onde (recorrendo a Aristóteles) os cidadãos, por mais diferentes que fossem entre si, de certa forma se igualassem politicamente por meio da amizade, em vez de um procurar se sobressair sobre ou em detrimento dos outros. O que acontece entre amigos é que um procura compreender a verdade do outro, isto é, enxergar o mundo do ponto de vista do outro. Tal esforço compreensivo parecia não ter lugar naquela Atenas (ou em qualquer outro lugar de que se tem notícia).

Em um texto intitulado O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política², Hannah Arendt traça um raciocínio que, muito embora diga respeito a outro contexto histórico (explicitado no título) e partindo do pensamento de outro filósofo (Karl Jaspers), talvez caiba aqui e nos ajude a esclarecer melhor esse ponto:

(…) A atitude adequada do homem filosófico na nova situação global é a da ‘comunicação irrestrita’, a qual supõe uma fé na compreensibilidade de todas as verdades, junto com a boa vontade de ouvir e revelar, como condições primárias do autêntico convívio humano. A comunicação não é uma ‘expressão de ideias ou sentimentos, de forma que seria apenas secundária a eles; a própria verdade em si é comunicativa e desaparece fora da comunicação. O pensar, na medida em que tenha alguma pretensão de atingir a verdade, deve necessariamente desembocar na comunicação, se torna prático, não pragmático. É uma prática exercida entre homens, e não tanto a atividade de um indivíduo em sua solidão voluntária. (…)

Mesmo em sua “solidão voluntária”, é impossível para o homem estar só, posto que ele está sempre consigo mesmo. Tanto que, para Sócrates, era fundamental estar de acordo consigo mesmo, isto é, não se contradizer, ter consciência de si para, só então, ter consciência do outro, chegar até o outro. O que Aristóteles depois chamaria de axioma da contradição parece estar, de certa forma, presente em Sócrates, na ideia de que vivemos com os outros, mas também (e em primeiro lugar) com nós mesmos. Pensando dessa forma, se vivemos com nós, isto é, se mesmo sozinhos não somos um, se nem mesmo distantes dos outros estamos de fato sós, qualquer ideia que negue a pluralidade é quimérica, irrealizável. Dizendo de outra forma, se viver com os outros começa por viver consigo, só está apto a viver ou conviver com os outros aquele que consegue primeiro viver ou conviver consigo. Mesmo quando estamos sós e falamos sozinhos ou, melhor dizendo, dialogamos com nós mesmos, não estamos de fato separados do mundo exterior, plural, dos nossos semelhantes. Seguindo essa linha de raciocínio, é lícito dizer que nós agimos politicamente (e, portanto, transformamos o mundo) mesmo quando nos isolamos dos outros e optamos pela inação. Sócrates acreditava que a virtude podia ser ensinada justamente por ter consciência de que, mesmo sozinhos, somos plurais, e, sendo plurais, agimos no mundo mesmo quando intentamos não fazê-lo; ter consciência disso seria um passo imprescindível para aprender a viver consigo e, por conseguinte, com os outros.

Por outro lado, é importante observar como Sócrates (apesar de não pretender fazê-lo) acabava por confrontar a polis justamente quando buscava o seu aprimoramento e o de seus cidadãos. Pela sua própria natureza interpelativa e questionadora, o método socrático trazia em si o germe da destruição da doxa. De que forma? Uma vez que a busca pela verdade inerente à doxa de cada um redundava na aporia, até porque Sócrates não estava interessado em definir coisa alguma (não custa lembrar que ele afirmava só saber que nada sabia), mas em fazer o outro perceber o quão frágeis eram as definições de que dispunha e lançava mão, é interessante observar que, pelo próprio caráter inconclusivo da discussão, e uma vez implodidas as “certezas”, nada era colocado no lugar daquela doxa posta em xeque ou simplesmente descartada. Assim, ficava mais uma vez evidente o descompasso entre a filosofia e a política: se a política era em muito baseada na doxa, no seu fortalecimento (ainda que superficial, ou meramente retórico), vê-la esvaziada daquela maneira por um filósofo ou, do ponto de vista dos outros, sophos certamente era algo desinteressante para o status quo (se me permitem o latinismo). Por mais que a intenção de Sócrates fosse, nas palavras de Arendt, “tornar a filosofia relevante para a polis” (p. 106), aquele não era um momento oportuno porque, conforme observamos acima, Atenas estava em franca decadência desde a morte de Péricles e a derrota na Guerra do Peloponeso. Boa parte de seus cidadãos encarava o filosofar, para dizer o mínimo, com desconfiança. Não por acaso, a filosofia pós-platônica vai se distanciar dos assuntos da cidade. Mais do que isso: após a morte de Sócrates e com a postura adotada por Aristóteles, o abismo entre a cidade e o filósofo ou, mais propriamente, entre a política e a filosofia vai se acentuar tanto que o pensador acabará assumindo justamente o papel que antes lhe tentaram impingir, qual seja o de alguém marginal, isto é, que se mantém à margem dos assuntos da polis.

O destino de Sócrates encerrou ainda uma outra contradição entre política e filosofia. Tal contradição estaria expressa na própria condição do filósofo, de alguém com acesso a coisas supra-humanas ou para além do meramente humano, mas que, mesmo assim, não deixava de ser um homem. Logo, o conflito entre o mundo sensível e o mundo inteligível, para usar a terminologia platônica, faz-se presente desde a interioridade do próprio filósofo: seu corpo está no mundo sensível, mas sua alma ascende ao mundo inteligível, e, quanto mais ela ascende, mais divorciada está do corpo, cujos impulsos e desejos serão controlados “como um senhor governa os seus escravos” (p. 107). É de se imaginar, portanto, que, se um dia chegasse a governar a cidade, o filósofo governaria os seus concidadãos da mesma forma como governa o próprio corpo, e a sua tirania seria justificada tanto pelo fato de ela ser o “melhor governo”, isto é, o governo de alguém que conhece o bem, quanto porque esse governante seria legítimo, pois, mesmo sendo um mortal como os demais, desprezou o corpo e seguiu os ditames da alma, ou seja, nunca traiu a sua condição de filósofo. Arendt chama a atenção para o fato, em geral eclipsado pelo choque causado pela metáfora platônica no âmbito das religiões, de que o que engendrou a formulação de Platão acerca do conflito entre corpo e alma não poderia ser mais terreno, a saber: o conflito entre política e filosofia. Aqui, retornando ao início do texto de Arendt e deste breve comentário, o que nós temos é Platão usando as ideias para fins políticos, ou seja, introduzindo “padrões absolutos na esfera dos assuntos humanos”. Ninguém depois dele, segundo Arendt, ousaria expressar algo do tipo de uma forma tão radical.

E é justamente a alegoria da Caverna, que abre o Livro VII d’A República, que Platão usou para abordar a relação entre filosofia e política na polis e a maneira como o filósofo se relaciona com a cidade. Ali, presenciamos a tragédia inerente à condição do filósofo, aquele que, tendo superado o mundo sensível, ascende ao mundo inteligível e vislumbra as essências eternas. Ocorre que, por ser mortal, o filósofo não pertence àquele mundo e precisa fazer o caminho inverso, voltar à caverna; mas, porque viu o que viu, ele também não pertence mais ao mundo sensível, e, por mais que tente, não consegue comunicar aos que ficaram o que está além. E porque não consegue se comunicar e é desacreditado e ridicularizado pelos outros, mesmo ameaçado, o filósofo perdeu a capacidade de viver no mundo sensível, não consegue mais se orientar nele, compreendê-lo: trata-se da metáfora perfeita sobre o modo como a filosofia enxerga a política (e não o oposto). A partir disso, é preciso descobrir uma maneira de se (re-)situar no mundo sensível. A conclusão de Platão, a esse respeito, é que a saída para o filósofo seria assumir o governo da cidade, até para que não seja governado pelos ignorantes ou, no limite, acabe morto por eles.

Quando conclui que o melhor a fazer é assumir o controle da cidade, Platão não nos explica por que razão o filósofo não consegue persuadir seus concidadãos da existência de um outro mundo além do mundo sensível. Arendt recorre a dois outros textos platônicos para tentar responder a essa questão. Do Teeteto, ela pinça uma definição de Platão sobre a origem da filosofia: “pois do que o filósofo mais sofre é do espanto, pois não há outro início para a filosofia senão o espanto (…)”. E, da Sétima Carta, a constatação de que “é impossível falar sobre isso (filosofia) como se fala sobre as outras coisas que aprendemos, ou melhor, de tanto estar junto a isso… de um fogo tremeluzente, uma luz se acende”. Ou seja: é impossível para aquele que se espanta “diante daquilo que é como é” (p. 111) comunicar esse espanto a outrem ou sequer verbalizá-lo, traduzi-lo em palavras. Esse espanto (thaumadzein), ao qual Kierkegaard se refere “como a experiência da coisa-nenhuma, do nada”, e que é (reiteramos) o próprio início da filosofia, só poderia ser formulado não por meio de afirmações, mas, sim, mediante as chamadas perguntas últimas, sobre o sentido da vida, da morte etc. Logo, se o homem pode ser descrito como um ser que faz perguntas, a diferença entre o filósofo e os demais não residiria no fato de que os demais, a “multidão”, como diz Arendt, nada saberiam do espanto, mas, sim, e a exemplo dos moradores da caverna, recusariam terminantemente romper os grilhões e caminhar na direção do espanto, experimentá-lo, frequentá-lo, conhecê-lo.

E, se o espanto resulta em mudez, posto que é incomunicável, a filosofia coloca-se, outra vez, na contramão da política, onde o falar é imprescindível, e também porque se trata (a política) de uma atividade à qual não interessa o homem em sua singularidade. Além disso, o filósofo está à margem da multidão e, portanto, da política porque lhe é impossível comunicar o incomunicável (o espanto); sempre que ele procura se imiscuir no chamado “mundo do senso comum”, tudo o que consegue expressar vem “em termos de não-senso (non-sense)” (p. 113). Por outro lado, é inegável que o esforço de Platão de “introduzir padrões absolutos na esfera dos assuntos humanos” resultou em inúmeras tentativas de compreensão da vida política no decorrer dos séculos, até o esgotamento dessa tradição na Idade Moderna com os escritos de Maquiavel, Hobbes e, por fim, Marx. Hoje, segundo as palavras de Alexis de Tocqueville citadas por Arendt (pp. 114-5), “como o passado cessou de jogar sua luz sobre o futuro, o homem vaga na obscuridade”, num mundo em que, conforme a autora, “nem mesmo o senso comum faz mais qualquer sentido”. Logo, conclui Arendt, dado o colapso até mesmo do senso comum, é lícito observar que tanto a filosofia quanto a política tiveram, ironicamente e malgrado aquele conflito originário, o mesmíssimo fim. Assim, talvez mais do que nunca, faz-se imprescindível colocar em pauta a possibilidade de “uma nova filosofia política da qual pudesse surgir uma nova ciência da política”.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

¹ ARENDT, Hannah. A dignidade da política. Tradução de Helena Martins. São Paulo: Relume Dumará, 1993.
² ARENDT, Hannah. Em Compreender – Formação, Exílio e Totalitarismo. Ensaios (1930-1954). Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras / Editora UFMG, 2008.

Imagem: A morte de Sócrates (1787), de Jacques-Louis David.

Geografia humana

alice

Alice nas Cidades, quarto longa de Wim Wenders, ainda não vislumbra ou se angustia com o fim do cinema, mas trabalha com ternura e sem afetação alguns de seus fins, a saber: mostrar, comunicar, levar a algum lugar, levar a outrem. O filme inspirou Central do Brasil, de Walter Salles, ao menos no que diz respeito ao apreço pela estrada e à inadvertida aproximação paterno-filial (ou materno-filial, no longa brasileiro) entre duas pessoas entregues às paisagens que frequentam e, a partir de um certo ponto, pelas quais são frequentadas. Werner é um jornalista alemão que viaja pelos EUA; Alice, uma menina também alemã de nove anos. Eles se encontram em Nova York. A mãe dela some, com a promessa de reencontrá-los em Amsterdam dali a alguns dias. Nova York, Amsterdam, Wuppertal… o homem se vê preso à menina, e depois livre graças a ela, e com ela. Wenders os acompanha em suas viagens que, a princípio, parecem inúteis, quando não desesperadoras (a mãe não aparece em Amsterdam; a busca pela avó é infrutífera). E, então, junto com os personagens, percebemos não só a crescente aproximação afetiva que se dá entre eles, mas, também, a descoberta ou redescoberta dos lugares pelos quais passam. Antes recortados, alheios, eles aos poucos se tornam parte da paisagem, como que abraçados por ela, recebidos, aceitos. Algo semelhante parece ocorrer no filme de Salles, tão belo quanto Alice e importante pelo modo como descortinava o interior do Brasil para a massa provinciana do centro-sul. Mas, a meu ver, as preocupações de ambos, Wenders e Salles, não são primordialmente políticas, mas, antes, em primeira instância, aferradas ao olhar: ver o espaço e, no espaço, recortar e reconhecer o outro, e então se reconhecer no espaço e no outro, com o outro. É um cinema cujo humanismo não parece estropiado, talvez por ignorar ou relevar o “ismo” e se ocupar do primeiro termo que forma o conceito (se tanto). O que temos, afinal, são duas pessoas e a estrada. Geografia humana, em acepção (até onde for possível, e se possível for) literal.

Mar de chamas

Resenha publicada em 30.05.2015 no Estadão.

Toda Luz Que Não Podemos Ver, segundo e premiado romance do norte-americano Anthony Doerr (1973), é uma bela façanha. Além de prender a atenção do leitor por mais de 500 movimentadas páginas, o livro é uma narrativa situada na Segunda Guerra Mundial que mantém o frescor e não tropeça em clichês de qualquer espécie.

Cobrindo um longo espaço de tempo, de 1934 a 2014, mas com especial atenção aos anos da guerra (sobretudo 1944, em que se passam 7 das suas 14 partes), o romance tem como protagonistas dois jovens: a francesa Marie-Laure, uma garota cega, obrigada a fugir com o pai de Paris para Saint-Malo, uma cidade localizada na costa bretã, e Werner, um órfão alemão que desenvolve uma tremenda aptidão para lidar com rádios e acaba engolido pelo regime nazista.

O encontro desses dois personagens é previsível (embora não as circunstâncias em que ele se dá, e tampouco o que ocorre em seguida). Na verdade, a própria estruturação da história como que o anuncia, na medida em que o foco narrativo se alterna entre eles, por meio de capítulos curtos, nos quais o autor cria uma respiração especial; é como se a forma restituísse algum sentido a um mundo que, então, parecia fadado à brutalidade e ao esfacelamento.

Doerr, por certo, não amacia nada (vide a forma como Frederick, colega de Werner na escola paramilitar nazista, é triturado pelos “iguais”, a estupidez colaboracionista que vitima o pai de Marie-Laure ou, ainda, o tratamento dispensado pelos russos às jovens alemãs, em momento excruciante do terço final do romance), mas alguns pequenos gestos perpetrados por vários dos personagens, aqui e ali, se não redimem ou obliteram a barbárie circundante, ao menos parecem devolver um mínimo de sanidade àquele mundo devastado.

Entre esses gestos, estão o cuidado com que o pai de Marie-Laure constrói maquetes e desenvolve métodos para que ela, cega desde os 6 anos, consiga se movimentar pelos lugares em que se encontram, Paris ou Saint-Malo, com liberdade e segurança, a atenção de Werner para com sua irmã, Jutta (que, embora mais nova, percebe o abismo que se aproxima muito antes dele), e mesmo a camaradagem entre alguns combatentes, jovens demais, largados nos estertores de uma guerra perdida.

Também é muito feliz, na primeira metade do livro, a contraposição que se estabelece entre Marie-Laure e Werner, e mais: enquanto a menina cega apreende a cidade e consegue a caminhar por ela sozinha, o menino alemão coloca um velho rádio para funcionar e, por meio dele, recebe a propaganda nazista, ponta de lança de um regime que terminará por cegar um país inteiro.

Há, ainda, a intriga envolvendo uma pedra preciosa, o Mar de Chamas, cujo valor exorbitante não a livra de uma fama terrível, pois seria amaldiçoada. Com a ocupação, o pai de Marie-Laure, chaveiro do Museu de História Natural, é incumbido de escondê-la; a fome dos invasores pelas riquezas alheias era notória.

Todos esses detalhes e personagens, e muitos outros, convergem para o clímax em uma Saint-Malo destroçada pelos bombardeios aliados, em meados de 1944. Em Toda Luz Que Não Podemos Ver, Doerr primeiro nos soterra na escuridão absoluta, no esgarçamento extremo, para só então nos devolver à luminosidade precária de um mundo que insiste em não desaparecer.

O fim (e o fim) do cinema

wenders

É possível falar de um primeiro Wenders e de um segundo Wenders, ao menos no que tange aos filmes de ficção.

O primeiro Wenders era um contrabandista de primeira, lidando com uma maciça influência das imagens norte-americanas (Fuller, Ray, Ford), apaixonado pelas vastidões e pela estrada e angustiado tanto com a necessidade de contar histórias (lembremos do final de No Decorrer do Tempo) quanto com a impossibilidade de, eventualmente, fazê-lo (o lento estrangulamento criativo que é O Estado das Coisas).

Há, também, tentativas de se aproximar ou reaproximar do outro (Alice nas Cidades; Paris, Texas) e/ou de um lugar (a Berlim ainda cindida de Asas do Desejo).

O segundo Wenders é um criador empobrecido e ingênuo, incapaz de compreender os rumos do cinema no fim do século XX e início do XXI, formulando questionamentos toscos sobre a agressividade hollywoodiana (O Fim da Violência) e/ou o próprio estatuto das imagens (Até o Fim do Mundo, O Céu de Lisboa, Palermo Shooting).

Um dos grandes momentos do primeiro Wenders é O Estado das Coisas, um filme sobre a impossibilidade de fazer um filme. A metalinguagem, no caso, parece orientada para algo primário (no bom sentido), na medida em que diz respeito àquilo que me referi acima, a necessidade de contar, comunicar algo, uma história, um estado de espírito, um mundo, mesmo quando isso não parece possível e, no âmbito dessa impossibilidade, comunicar a própria impossibilidade, filmar/mostrar essa morte em particular.

Os primeiros minutos pertencem ao filme-dentro-do-filme (uma ficção-científica pós-apocalíptica, Os Sobreviventes). Ao sermos retirados daquele mundo fabular e informados de que a sua continuidade está ameaçada (o negativo acabou, não há mais dinheiro e o produtor desapareceu), restamos ilhados num contexto de inações e marasmo.

Ilhada num decadente hotel à beira-mar, próximo de Lisboa, a equipe de filmagem se entrega ao tédio enquanto aguarda notícias do produtor. É um angustiante estado de espera, como se a “realidade” não tivesse como prosseguir enquanto os artistas não conseguissem terminar o que começaram. Sem a fábula, o mundo se recusa a continuar se movendo, exceto para ejetar os viventes (a esposa do diretor de fotografia, interpretado por Samuel Fuller).

Sem saber o que fazer, o diretor viaja a Los Angeles para encontrar o produtor. Algo está acontecendo, os sinais ameaçadores estão por toda parte, nos olhos da secretária, na fala enigmática do advogado (Roger Corman, veja só), no carro que o segue, na imagem devastada do fotógrafo, Fuller, dizendo que enterrou a mulher naquela manhã e que o diretor devia dar o fora, pois nada restou.

A longa sequência final, um passeio por Los Angeles, noite adentro, quando a situação é (mal) explicada e torna-se claro que o filme-dentro-do-filme está morto, é um grande momento de Wenders.

Nele, por mais que vislumbremos o fim do cinema (ou de um certo cinema), enxergamos, também, um fim (no sentido de finalidade) possível do cinema, a saber: mesmo estrangulado, comunicar algo, seja a história de uma história abortada, seja a resistência possível, iconizada na figura do diretor apontando sua câmera como se fosse uma arma, e morrendo com ela.

E a câmera, não por acaso, sobrevive àquele que a empunhava. De forma parecida, O Estado das Coisas (felizmente) sobreviveu a Wenders.

Perturbação

1974

O formidável David Peace estreou na literatura com uma tetralogia policial animalesca, o quarteto de Yorkshire ou Red Riding Quartet: 1974, 1977, 1980 e 1983. Os romances foram publicados entre 1999 e 2002 e depois muito bem adaptados para a televisão britânica, em três partes (esta, esta e esta). A Benvirá lançou os quatro livros no Brasil, mas eu não conferi as traduções. Em todo caso, se o amigo aí consegue ler no original, a prosa alquebrada, repetitiva e estonteante de Peace merece ser conhecida tal e qual veio ao mundo.

Já tinha ouvido falar do autor por conta de The Damned United, seu conhecidíssimo romance acerca de Brian Clough (nunca ouviu falar? Gol da Alemanha), e é claro que eu, a scouser born & bred, devorei o belíssimo Red or Dead, em que Peace nos restitui Bill Shankly (também não? 7×1) em toda a sua grandeza.

Agora, li 1974 e só posso agradecer ao autor pelas últimas noites mal dormidas. A história se passa em Yorkshire, às vésperas do Natal do ano-título, e temos crianças mortas, corrupção policial, conspirações e um narrador cujo interesse primeiro é galgar uns degraus na carreira de jornalista. Poor fucking bastard.

O romance ensaia um andamento policialesco convencional (a proverbial ligação entre diversos crimes que só o protagonista parece enxergar; o teatro dos vampiros que suga a cidade e destroça quem se coloca no caminho; a tensão entre fazer o certo ou mandar tudo às favas e se dar bem), mas Peace, felizmente, e com todo o cuidado, esmigalha os desdobramentos mais óbvios em favor de um anoitecer trevoso que sufoca narrador e leitor.

As coisas desandam aos poucos, e a verdade é algo tão desumanamente insuportável que, a certa altura, comecei a torcer para que o nosso jornalista desse uns passos para trás, pedisse uma transferência para a seção de esportes e fosse cobrir os jogos do Leeds United (que, meses antes, sob a batuta de Don Revie, vencera seu segundo título inglês).

É claro que isso não acontece. E, até para não incorrer em spoilers, talvez seja o caso de falar um pouco sobre a escrita de Peace. O yorkshiriano tem esse talento único para a rarefação. É muito difícil fazer com que um estilo baseado em repetições, períodos curtos e quebras frequentes funcione. Em geral, esse tipo de procedimento redunda num maneirismo bocó que procura esconder sérias deficiências. Peace, no entanto, é muito bem-sucedido.

Ele tem uma incrível noção de ritmo e, o mais importante, usa e abusa desses expedientes não como elementos estilístico-masturbatórios, mas, sim, para calçar a narrativa. Aqui, a forma exterioriza à perfeição o coração apodrecido e os tecidos esgarçados do lugar e das circunstâncias. Ademais, na medida em que temos uma narração em primeira pessoa, e tendo em vista o que o protagonista vê e vivencia, é brilhante como tamanha perturbação contamina o romance em todos os seus níveis.

Por fim, preciso me referir ao clímax subterrâneo, a descida empreendida pelo protagonista aos intestinos, literais e figurativos, de um lugar em que criancinhas são (figurativamente) trituradas. Eu os deixo com Peace:

The tunnel had been bricked up about fifteen feet ahead, the bricks painted blue with white clouds, the floor covered in sacking and white feathers.
Against the two side walls were ten or so thin mirrors all lined up in a row.
Christmas tree angels and fairies and stars hung from the beams, all shining in the glow of the lamps.

Paro por aqui. Mas não se enganem: não é porra do paraíso.

Coca

madmen

Achei estupendo o final de Mad Men. Há enormes mudanças (fugas, deslocamentos, declarações de amor, rompimentos, mortes), mas também a sensação de que tudo gira para voltar ao mesmo lugar. Afinal, não é uma série sobre o tempo (que nos ignora e por isso mesmo nos mata), mas sobre a época: os anos de 1960 (“revolucionários”, JFK, lisérgicos), que dão lugar à década seguinte (“reacionária”, Nixon, cocainômana). Assim, me parece particularmente feliz a sacada final, onde o sorriso de Don Draper dá lugar ao comercial da Coca-Cola (criado por ele, presumo, após seu retorno à Madison Avenue) que mastiga e cospe o mimimi hipponga de pouco antes. Claro, não se pode subestimar a catarse da cena anterior, em que ele afinal parece se enxergar no outro. Ocorre que esse enxergar-se não significa muito, afinal. O autoconhecimento produz monstros. O sorriso de autossatisfação aponta para o retorno do mesmo; o comercial da Coca-Cola é uma obra-prima.

De volta ao deserto de Oz

madmax

Ozploitation é o nome que se dá ao cinema de gênero (horror, comédia ou ação) feito com baixo orçamento, num lugar (Austrália) e num período tão ricos quanto específicos (décadas de 1970 e 80, sobretudo). Lindezas como Walkabout, Wake in Fright, Long Weekend e os primeiros Mad Max são frutos dessa onda. Em anos recentes, volta e meia algum cineasta mergulha no outback e sai com um The Rover, por exemplo. Ou com o estupendo Mad Max: Fury Road (ainda que este não seja low budget). Melhor ainda que o diretor seja o mesmo dos três filmes anteriores, George Miller. Assim, por mais que seja um produto também direcionado ao público hiperglicêmico, desatento e pouco inteligente que em geral frequenta os multiplexes, o novo Mad Max é belissimamente furioso no modo como nos devolve àquele mundo pós-apocalíptico que, filme após filme, piora um pouquinho, se vocês se lembram bem. Tom Hardy substitui Mel Gibson, mas o anti-herói é o mesmo em sua solidão irredimível, para não dizer insanidade galopante. Não estou com paciência para resumir o enredo, mas gostaria de assinalar o seguinte: se os três filmes anteriores dizem respeito a uma fuga, um aspecto que muito me agrada neste aqui é o fato de que a fuga acaba se tornando um retorno dos mais tresloucados, como se, do outro lado do Mar Vermelho, Moisés se deparasse com a porra do Egito. O ritmo do longa é insano, e Miller está aí para mostrar o quanto a maioria dos “jovens” diretores (e alguns velhos, como Michael Bay) entende bem pouco de montagem e edição de som, e de como trazer à luz um filme (DE AÇÃO) cuja ossatura é o que se vê, sem a necessidade de poluir a estrutura com pelos, banha e “alma”. Lembremos do que ele fez com míseros quatrocentos mil dólares no primeiro (e ainda melhor, para o meu gosto) filme da série e vislumbrarmos agora o que esse autêntico contrabandista (na acepção scorseseana do termo) faz com cem milhões — em vez de ser engolido pela asséptica engrenagem hollywoodiana, ele joga sangue e areia nos olhos de todos nós. Aliás, coisa rara, o uso do 3D é não só justificável, mas imprescindível para a completa imersão num road movie que, a certa altura, oblitera a road para alcançar uma espécie de Valhalla cinemático. Quando o mundo já foi para o saco, volta a nos dizer Miller, não faz muita diferença para que lado você corre. Importa, assim, conceber algo que se sustenta quase que única e exclusivamente pelo movimento e pelo som, pela ação; de certo modo, é como se afinal subíssemos a bordo do trem dos Lumière. Veja e reveja, antes que o mundo acabe.

Londres, LIVERPOOL, Amsterdam

Texto publicado na São Paulo Review em 05.2015.

Liverpool Fans

Abril, 28
Ele não tem dormido bem, e uma gripe se instalou há alguns dias, meia gripe, que não o arrebenta de vez e tampouco o deixa em paz. Sentado em uma sala de embarque em Cumbica, estica as pernas e respira fundo, o tema de Era uma vez na Américavoejando na cabeça, o que é estranho (pensa), pois não revê o filme há tempos. Quando foi a última vez? Há um ano, talvez. Ou dois. Não se lembra. Quando anunciam o voo, ele respira fundo outra vez, mas não se levanta de imediato. Ele não tem dormido bem, o corpo e a cabeça tão enevoadamente distantes que parecem ser de outra pessoa. A caminho do aeroporto, tão logo entrou no táxi, pediu ao motorista que encostasse alguns quarteirões à frente, precisava sacar algum dinheiro, não tenho com o que pagar pela corrida. Entrou e saiu do banco o mais rápido que pôde, feito um assaltante calejado, John Dillinger à solta na Mooca, e se deparou com o taxista esfregando o rosto com as duas mãos. Teria fechado o porta-malas na própria cara. Ele se perguntou como é possível, mas não disse nada. Quer ir ao médico? Pego outro táxi. Não, respondeu o sujeito, um inchaço na testa, algum sangue, os dois olhos bem vermelhos, vam’bora. Tentava sorrir, mas a dor parecia intensa. O voo é tranquilo. Filmes, vinho. O corpo se ressente da meia gripe e das longas horas sentado. Vê um documentário sobre Robbie Fowler e se arrepia com o Koprugindo, e se lembra por que está aqui. E, alta noite, dentro da enorme caixa de metal com asas, meio doente e cansado, apesar de, ele sente o corpo e a cabeça menos distantes, ele se sente ele mesmo pela primeira vez em um bom tempo.

Abril, 29

A oficial da imigração não faz muitas perguntas. Sorri quando ele explica a razão maior de estar ali, depois começa a rir, seu time perdeu ontem, querido. Ele não sabia. Estava no avião. Ela se diz torcedora dos Spurs. No metrô, a caminho do hotel, na longa viagem Londres adentro, ele vê num jornal aberto à sua frente: Hull City 1×0 Liverpool. Ele suspira, e então pensa: Foda-se. Eu estou aqui. Está frio e chuvoso e venta muito na Russell Square. Ele caminha. Eu caminho apressado até o hotel. É bem cedo. O quarto é maior do que esperava. Tomo um banho, ligo a televisão. Cedo, muito cedo. Cochilo por algumas horas. Meio-dia quando afinal deixo o quarto. No meio do interminável corredor que atravesso, rumo aos elevadores, uma pequena porta leva ao que parece ser o refeitório dos funcionários. O lugar está lotado. Orientais sentados às mesas, almoçando. Falam sem parar. Riem. Não ouço a língua inglesa, até que um deles se dirige a mim: Are you lost? Eu sorrio para ele, e então volto ao corredor. Contorno a Russell Square e desço pela Montague até o British Museum. Viro à direita na Great Russell. Pequenas multidões compactas à frente do edifício. Adentro o museu. Alemães, franceses. Parecem apressados, mas quem não consegue ficar muito sou eu. Volto à rua. Sigo pela Great Russell até a Tottenham Court, e dali até Giles Circus. Então, é a Charing Cross. Compro um guarda-chuva e uma boina ridícula. O vendedor ri da minha cara. Peço um desconto. Ele nega. Digo que estou resfriado. Ele fala de uma farmácia acolá. E depois ri mais um pouco. A chuva não para. Lá embaixo, na Trafalgar Square, a Coluna de Nelson me dá as costas. Adentro a National Gallery e saio três horas e meia depois para um dia ensolarado, a praça tomada por artistas de rua, estátuas humanas, orientais histéricos e paus de selfie. Corro e me escondo numa livraria. São quase cinco da tarde e não comi nada o dia todo. Vejo o cartaz de uma peça de David Mamet, American Buffalo, com Damian Lewis (torcedor do Liverpool,a scouser born and bred) e John Goodman. Entro num pub chamado Round Table, numa ruela cujo nome esqueci. Peço um pint de London Pride. Quando termino, peço outro e fish&chips. Meus olhos ardem de sono e gripe. A garçonete italiana pergunta o meu nome, de onde venho, o que eu faço. Diz que um brasileiro já trabalhou ali. De onde ele era? Porto Alegre. Digo que Porto Alegre não fica no Brasil, e fico feliz que ela entenda a piada. Uma hora e meia depois, banho tomado, e sem a maldita boina na cabeça, pego o metrô na Russell Square. Desço na estação da Holloway Road. Entrevejo o Emirates Stadium adiante, mas sigo na direção contrária. Caminho bastante até o pub de um camarada turco, amigo de uma amiga, The Bedford Tavern, Seven Sisters Rd. Os dois me esperam a uma mesa. Seis pints de ales diversas e duas doses de Germana (sim) depois, o turco só me cobra por um pint, agradece pela companhia e me expulsa dali com um abraço, como Hemingway teria feito com Montale (embora, na ocasião, apenas Hemingway estivesse bêbado e/ou ressacado). Descubro que a estação mais próxima do pub é a de Finsbury Park. Volto sozinho e cantarolando para o hotel. Penso num poema que terei esquecido pela manhã, felizmente.

Abril, 30

Caminho até a Tate. Dois quilômetros e meio, quase três. Cruzo o Tâmisa pela Waterloo Bridge. Fico por quase uma hora na sala com os Rothko. E mais um bom tempo diante de um Lucian Freud. O dia escorre em meio às telas. Não gostaria de estar em nenhum outro lugar. Janto num restaurante italiano a poucas quadras do hotel, na Southampton Row. A garçonete pergunta o meu nome, de onde venho, o que eu faço. Mexicana. Sou do Brasil. Ela abre um sorriso e me pergunta, em espanhol, por que fugi de lá. Eu rio alto, e essa é a minha resposta.

Maio, 1º

Na British Library, vejo uma Vulgata do século IX, um manuscrito de Locke e uma peça de Marcadé, século XIII. E uma Torá também muito antiga, não me lembro de que século. O Livro não é D’us, claro, mas os meus pulmões se enchem de ar.

Maio, 2

A viagem de trem até Liverpool é confortável. Meu vagão está quase vazio. Durmo um pouco. Chove e faz muito frio na cidade. Deixo as malas no hotel e volto à rua. Tomo um pint de Guinness no pub do Crown Hotel. Ainda faltam umas quatro horas para o jogo. As caixas de som despejam Be my baby no lugar. Uma garçonete canta com as Ronettes e pisca o olho para um freguês que está ao balcão, um velhinho trajando um agasalho igual ao de Shankly. Peço outro pint e o café-da-manhã. Sento a uma mesa para comer. Uma avassaladora sensação de familiaridade toma conta de mim, algo que só senti antes em Jerusalém, seis anos atrás. Anfield. A multidão toma as ruas próximas do estádio. A cor vermelha. Pego meu ingresso e caminho até o portão designado. Lá dentro, sento e olho para o gramado, depois para o Kop. A hora seguinte voa. O lugar se enche bem rápido. Os times entram em campo. Estou, estamos todos em pé. You’ll never walk alone parece brotar da ossatura do lugar, do próprio concreto, e é como se fôssemos apenas os instrumentos, o meio de a música ascender e se fazer ouvir. Depois, preciso de alguns minutos para conseguir me concentrar no jogo. Coutinho mete um golaço, mas o time segue descompensado, com Johnson errando miseravelmente (no que os torcedores do QPR cantam, com ironia: You’re so lovely…). Fer empata o jogo em meados do segundo tempo. Gerrard erra um pênalti, mas nos salva com um cabeceio similar àquele da final da Champions League, há dez anos. Sinto um nó na garganta quando me ocorre que posso ter visto seu último gol em Anfield. As ruas são de novo tomadas pela multidão vermelha. Eu me sinto tão feliz que decido ignorar a chuva e o frio e caminhar de volta para o hotel. Alguns cantam: Steve Gerrard, Gerrard / He passes the ball fourty yards / He’s big and he’s fucking hard / Steve Gerrard, Gerrard. É como se o chão que pisamos estivesse eletrificado e nos reacendesse, pois logo todos cantamos. A sensação é ainda mais forte depois, quando adentro um pub tomado por vermelhos. Lá pelo terceiro pint, alguém pergunta se atravessei a porra do oceano só para ver o jogo. Respondo que atravessaria a nado, se precisasse. Logo, estou fraternalmente cercado por iguais. Um deles berra no meu ouvido que, se sou um torcedor de verdade, devia cantar Fields of Anfield Road. Começo (Outside the Shankly Gates / I heard a Kopite calling…), e logo estão todos cantando (berrando), pulando, cerveja atirada para tudo que é lado. Me empurram, me abraçam, me puxam os cabelos, me beijam as bochechas. Andre, you’re so fucking lovely. Tenho cerveja nos cabelos, nas roupas, no espírito. You’re so lovely / You’re so lovely. Pois é. We had dreams and songs to sing / Of the glory, round the fields of Anfield Road. E eu nunca vou caminhar sozinho (até porque a essa altura talvez não conseguisse).

Maio, 4

Dou um pulo em Amsterdam, e estamos em pleno Dodenherdenking. Passeio, bebo e como por lá. Em geral, os holandeses são sorridentes e simpáticos, mas sem aquele ranço pegajoso dos cariocas. No fundo, estão cagando para você. Acho ótimo. Num boteco da Rozengracht, o garçom espanhol tenta me tirar. Um brasileiro que aprecia Guinness?, ele diz, na língua de Natalia Zeta. Está fazendo graça para umas meninas que estão por ali, cacarejando. Sua mãe quem me doutrinou, respondo. Ele pergunta se já fui ao Red Light District. Retruco que parei de pagar por sexo aos treze anos. Bebo mais um pint, um silêncio tenso tomou o lugar. Saio com um tremendo sorriso VSF na cara, e não deixo gorjeta.

Maio, 5

No voo de volta a Londres, o avião chacoalha desgraçadamente. O sujeito ao lado entra em pânico e grita que é jovem demais para morrer. Pergunto quantos anos ele tem. Quarenta e dois. Eu: Fine! I’m 35. Estou sorrindo sacanamente, não sei o motivo, pois sinto tanto medo quanto ele. O cara olha para mim, aterrorizado: Aren’t you scared? Faço uma careta e respondo: I’m a Liverpool supporter. I’m used to be scared.