O fim (e o fim) do cinema

wenders

É possível falar de um primeiro Wenders e de um segundo Wenders, ao menos no que tange aos filmes de ficção.

O primeiro Wenders era um contrabandista de primeira, lidando com uma maciça influência das imagens norte-americanas (Fuller, Ray, Ford), apaixonado pelas vastidões e pela estrada e angustiado tanto com a necessidade de contar histórias (lembremos do final de No Decorrer do Tempo) quanto com a impossibilidade de, eventualmente, fazê-lo (o lento estrangulamento criativo que é O Estado das Coisas).

Há, também, tentativas de se aproximar ou reaproximar do outro (Alice nas Cidades; Paris, Texas) e/ou de um lugar (a Berlim ainda cindida de Asas do Desejo).

O segundo Wenders é um criador empobrecido e ingênuo, incapaz de compreender os rumos do cinema no fim do século XX e início do XXI, formulando questionamentos toscos sobre a agressividade hollywoodiana (O Fim da Violência) e/ou o próprio estatuto das imagens (Até o Fim do Mundo, O Céu de Lisboa, Palermo Shooting).

Um dos grandes momentos do primeiro Wenders é O Estado das Coisas, um filme sobre a impossibilidade de fazer um filme. A metalinguagem, no caso, parece orientada para algo primário (no bom sentido), na medida em que diz respeito àquilo que me referi acima, a necessidade de contar, comunicar algo, uma história, um estado de espírito, um mundo, mesmo quando isso não parece possível e, no âmbito dessa impossibilidade, comunicar a própria impossibilidade, filmar/mostrar essa morte em particular.

Os primeiros minutos pertencem ao filme-dentro-do-filme (uma ficção-científica pós-apocalíptica, Os Sobreviventes). Ao sermos retirados daquele mundo fabular e informados de que a sua continuidade está ameaçada (o negativo acabou, não há mais dinheiro e o produtor desapareceu), restamos ilhados num contexto de inações e marasmo.

Ilhada num decadente hotel à beira-mar, próximo de Lisboa, a equipe de filmagem se entrega ao tédio enquanto aguarda notícias do produtor. É um angustiante estado de espera, como se a “realidade” não tivesse como prosseguir enquanto os artistas não conseguissem terminar o que começaram. Sem a fábula, o mundo se recusa a continuar se movendo, exceto para ejetar os viventes (a esposa do diretor de fotografia, interpretado por Samuel Fuller).

Sem saber o que fazer, o diretor viaja a Los Angeles para encontrar o produtor. Algo está acontecendo, os sinais ameaçadores estão por toda parte, nos olhos da secretária, na fala enigmática do advogado (Roger Corman, veja só), no carro que o segue, na imagem devastada do fotógrafo, Fuller, dizendo que enterrou a mulher naquela manhã e que o diretor devia dar o fora, pois nada restou.

A longa sequência final, um passeio por Los Angeles, noite adentro, quando a situação é (mal) explicada e torna-se claro que o filme-dentro-do-filme está morto, é um grande momento de Wenders.

Nele, por mais que vislumbremos o fim do cinema (ou de um certo cinema), enxergamos, também, um fim (no sentido de finalidade) possível do cinema, a saber: mesmo estrangulado, comunicar algo, seja a história de uma história abortada, seja a resistência possível, iconizada na figura do diretor apontando sua câmera como se fosse uma arma, e morrendo com ela.

E a câmera, não por acaso, sobrevive àquele que a empunhava. De forma parecida, O Estado das Coisas (felizmente) sobreviveu a Wenders.