N'A Escotilha

N'A Escotilha

Embora o livro parta de um imbróglio envolvendo políticos corruptos (isso é pleonasmo?) e até seja eventualmente compreendido como um produto de seu tempo, dada a atualidade do tema, creio que neste romance interessa menos o submundo do paletó e gravata do que o desmoronamento moral e psicológico do personagem. Abaixo do Paraíso fala sobre as distâncias entre uma solidão e outra (o sexo como salvação niilista), fala sobre um homem tentando escapar do presente refugiando-se num passado que, em vez de ser um porto seguro, talvez seja o seu verdadeiro algoz (…).

Trecho da resenha de Abaixo do Paraíso por Eder Alex para A Escotilha. Leia na íntegra AQUI.

Heidegger na berlinda

Minha resenha dos livros Heidegger – A Introdução do Nazismo na Filosofia, de Emmanuel Faye, e Heidegger e o Mito da Conspiração Judaica Mundial, de Peter Trawny, foi publicada na edição de 30.04.2016 d’O Estado de São Paulo. Leia AQUI.

No entanto, a versão publicada pelo jornal foi editada por motivos de (falta de) espaço. Assim, posto aqui a versão original.

HEIDEGGER NA BERLINDA

Martin Heidegger (1889-1976) é um dos filósofos mais importantes da história. Influenciou desde Hannah Arendt a Giorgio Agamben, passando por Hans-Georg Gadamer, Karl Jaspers e até pelo pobre Jean-Paul Sartre. Há, contudo, manchas em sua biografia, como a afiliação ao Partido Nazista em 1933, sob cuja sombra foi reitor da Universidade de Freiburg até o ano seguinte. Recentemente, a publicação dos Cadernos Negros, escritos ao longo de décadas e nos quais se verificam apontamentos antissemitas, veio incendiar ainda mais esse debate. Dois livros recém-lançados no Brasil discutem até que ponto essas manchas contaminariam ou mesmo anulariam sua contribuição à filosofia: Heidegger – A Introdução do Nazismo na Filosofia, de Emmanuel Faye (acadêmico da Universidade de Rouen, na França), e Heidegger e o Mito da Conspiração Judaica Mundial, de Peter Trawny (professor na Universidade de Wuppertal, na Alemanha).

Em sua longa diatribe, publicada na França em 2005, Faye ataca Heidegger, rotulando-o como introdutor “dos fundamentos do nazismo e do hitlerismo na filosofia”. O livro, é verdade, enfileira cartas, testemunhos, discursos e anotações para (e sobre) conferências que reiteram a ligação do filósofo com o regime hitlerista em meados dos anos 1930, mas falha em seus esforços histéricos de enxergar todo o corpo filosófico heideggeriano — e isso desde antes da ascensão de Hitler ao poder — como genuinamente nazista. Por exemplo, sua leitura de algumas passagens da obra-prima Ser e Tempo, publicada em 1927, como precursoras da ideologia hitlerista é forçada, no limite da desonestidade – por mais que, em certos momentos (como no célebre Discurso de Reitorado), o próprio Heidegger tenha corrompido seu pensamento para melhor se coadunar ao status quo.

Típico do sensacionalismo de Faye é o modo como ele se vale do seminário de Heidegger que seria mais explicitamente nazista, Hegel, ou sobre o Estado, ministrado no inverno de 1934-35, do qual restam “somente as notas de curso (…) tomadas por dois estudantes” (p. 375). Apesar de não contar com fontes primárias, Faye alicerça boa parte de sua argumentação nesse seminário, por meio do qual o filósofo teria procurado “assegurar a perenidade do hitlerismo e de sua dominação ditatorial e destrutiva sobre os espíritos” (p. 382).

O livro de Peter Trawny é exemplarmente mais cuidadoso e consequente que o de Faye, na medida em que evita as generalizações, pirotecnias e simplificações de seu colega francês. Para o alemão, o antissemitismo é um dado (horrível, indesculpável, mas secundário) da reflexão “onto-historial” heideggeriana, mas não é, de forma alguma, o centro diabólico ao redor do qual gira toda a sua filosofia.

Logo no começo (pág. 18-19), Trawny lança uma pergunta: “Será que todos os caminhos do antissemitismo levam a Auschwitz?”. E responde: “As declarações de Heidegger sobre os judeus não podem ser conectadas com Auschwitz”. A partir daí, lê com cuidado as anotações nos Cadernos Negros, contextualizando-as histórica e filosoficamente, distinguindo-as do “Nacional-Socialismo realmente existente” (pág. 67), mas sem jamais desculpá-las, eximi-las de seu conteúdo preconceituoso ou retirá-las de seu lugar “na história da dor da Shoah” (pág. 140).

Vida e obra de Heidegger colocam problemas espinhosos. É imprescindível que estudiosos se proponham a discutir os trechos mais obscuros e até que ponto suas reflexões foram contaminadas pelo antissemitismo. Inaceitável é, como Faye, exigir que o homem seja simplesmente defenestrado do panteão dos filósofos e tratado como um ideólogo nazista. Pois, como escreve Trawny (pág. 139), há “inimigos da filosofia que com prazer haveriam de impedir o efeito do pensamento de Heidegger — uma tentativa inútil de antemão, pois se está a lembrar que devemos esquecer Heidegger, o que é uma contradição”. Devemos, sim, lembrá-lo, pensá-lo e repensá-lo com tudo o que tem de bom e perverso, humano e obscuro, genial e grotesco.

 

Justiça

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É raro, mas acontece.

Hoje, vinte e sete longos anos após o 15 de abril de 1989 em que se deu a tragédia de Hillsborough, os familiares, os amigos e a memória dos noventa e seis mortos finalmente tiveram o seu dia, a sua tão esperada justiça.

Foi justiça o que se viu hoje na corte de Warrington, quando, após anos de dolorosas inquirições, os jurados enfim eximiram de qualquer culpa os mortos naquele dia fatídico em Sheffield.

15 de abril, 1989. Um jogo de futebol. Semifinal da FA Cup, o torneio mais tradicional do mundo, disputado desde a temporada 1871-2. Liverpool vs. Nottingham Forest.

Por desorganização, incompetência, negligência, as autoridades permitiram que um número de torcedores do Liverpool muito maior do que o permitido adentrasse o estádio de Hillsborough.

Uma tragédia.

Noventa e seis cadáveres. Homens, mulheres, crianças. Esmagados contra o alambrado, no chão, uns contra os outros, sufocados, pisoteados, esmigalhados.

Assassinados.

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Assassinados por desorganização, incompetência, negligência.

E então assassinados de novo.

De novo porque as autoridades trabalharam para colocar a culpa nas vítimas.

Por desumanidade, respaldadas e amplificadas pelo sensacionalismo criminoso de tabloides como The Sun, espalharam a versão de que as vítimas seriam as únicas responsáveis pela tragédia.

Disseram que os torcedores estavam bêbados. Que eram um bando de arruaceiros, que alguns chegaram a roubar as carteiras dos mortos, a bater e a urinar nos policiais que tentavam socorrer os feridos. Que não passavam de uma turba que fizera por merecer a própria sina.

Bandidos. Grotescos.

Era o auge do hooliganismo. A versão oficial pegou.

Versão que os familiares das vítimas nunca aceitaram.

Iniciou-se uma busca pela verdade, uma incansável jornada a fim de clarificar o ocorrido, identificar quais foram as mentiras, quem e por que mentiu, que crimes foram cometidos não pelos torcedores do Liverpool que ali perderam suas vidas, mas pelas autoridades que buscaram, a todo custo, encobrir o que fizeram e o que não fizeram.

Os criminosos, descobriu-se, não usavam camisas e cachecóis do Liverpool.

Os criminosos usavam fardas, usavam ternos e gravatas, usavam os meios de que dispunham para difamar, distorcer, encobrir, chantagear, ameaçar, intimidar, mentir.

Por exemplo:

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Bandidos. Grotescos.

Em 2012, o relatório de um painel independente trouxe afinal tais esclarecimentos. E hoje um júri popular ratificou o relatório, afirmando com todas as letras que os torcedores do Liverpool foram mortos ilegalmente e por culpa das autoridades.

Os responsáveis foram apontados, identificados, inquiridos, expostos. Com a decisão anunciada hoje pelo júri, esses criminosos finalmente responderão pelo que fizeram; além de inocentar de vez as vítimas, ela possibilita a abertura de ações penais contra os assassinos.

Vinte e sete anos depois, houve justiça.

Vinte e sete anos depois, aqueles noventa e seis torcedores do Liverpool poderão, enfim, descansar em paz.

No território acidentado da vida familiar

Resenha publicada em 25.04.2016 no Estadão.

Pornografia, assassinatos, adultérios, alcoolismo, segredos, suicídio, surtos psicóticos e prevaricação: não é de se espantar que Bonita Avenue, romance de estreia do jornalista e editor holandês Peter Buwalda, seja um best-seller multipremiado. Em suas mais de 500 páginas que se permitem ler sem atropelos, o autor desenvolve uma história sombria a partir de três pontos de vista, indo e voltando no tempo e alternando entre a primeira e a terceira pessoas, as quais nos contam do esfarelamento de uma família e sugerem – pois nem tudo são sombras – a constituição de outra.

O título se refere a uma rua em Oakland, na Califórnia, onde a família Sigerius viveu aquele que é talvez o momento mais idílico de sua existência, e que, pela própria natureza do romance, é aludido quando se busca traçar algum contraponto. Eles são Siem Sigerius, ex-judoca, matemático, reitor de uma universidade em Enschede, no interior da Holanda, e depois ministro da Educação, sua mulher, Tineke, e as duas filhas dela, Joni (responsável pelos capítulos narrados em primeira pessoa) e Janis. Siem tem um filho de seu casamento anterior, Wilbert, um rapaz transtornado pela rejeição paterna e que, certo dia, esmagou a cabeça do chefe com uma marreta. Ele passa alguns anos na cadeia, mas sua sombra e, mais tarde, sua presença são cruciais no violento clímax da história.

Os três pontos de vista que se alternam em Bonita Avenue são os de Siem, Joni e do namorado desta, Aaron, um fotógrafo freelancer acolhido como um membro da família, especialmente pelo sogro, com quem passa a treinar judô e compartilha o interesse por jazz. O problema é que Aaron e Joni criam um website onde publicam fotos pornográficas dela, ganhando um dinheiro considerável e contribuindo, e muito, para que as coisas desandem epicamente quando Siem toma conhecimento da brincadeira.

Buwalda é habilidoso no modo como alterna os pontos de vista e costura os acontecimentos temporalmente, sem ordem cronológica. Os temas, as circunvoluções obsessivas e o estilo abrasivo lembram Philip Roth, mas estão muito distantes da opacidade e do artificialismo débil de Jonathan Franzen, com quem também foi comparado. E, por mais que o autor ainda esteja buscando a própria voz, salta aos olhos o talento que ele exibe para a chamada carpintaria narrativa. Nas melhores passagens de Bonita Avenue, e sem trocadilhos com o destino daquele personagem, as reviravoltas são marteladas e, salvo por algumas exceções gritantes, elas são tão mais impressionantes não pelo que teriam de imprevisíveis — em linhas gerais e com frequência, o leitor é informado de antemão acerca do destino da maioria das pessoas —, mas pela maneira como se desenrolam.

Buwalda também evita a armadilha de banhar o leitor com uma catarse final. Estamos no território acidentado da vida familiar e qualquer tentativa de reordenamento afetivo soaria deslocada, especialmente após o clímax que é oferecido ao leitor. Também pela inteligência de suas escolhas, o autor holandês demonstra que podemos esperar mais e melhores coisas de sua lavra.

Na planície desolada do tabuleiro

Leviathan - Bo Bartlett

Comparar a crise atual com aquela que desencadeou o Golpe de 1964 não é apenas astigmatismo histórico ou, pior, desonestidade intelectual. É algo mais grave. Trai uma certa nostalgia dos coturnos, nostalgia que aflora, em grande parte, naqueles que nunca foram pisoteados por eles. Acenam, desesperados, com a possibilidade do porão, sem perceber que vivemos desde sempre aqui embaixo, na “fosca turvação”; nunca saímos, nem por um segundo. Nunca vimos o mundo lá fora, e até duvidamos (com razão, cegos que somos) da sua existência. Penso também nos que recorrem à expressão “golpe parlamentar”. Em se tratando de um “golpe parlamentar”, o pau-de-arara será acolchoado ou (“o horror, o horror”) apenas metafórico? Antes que arranquem a minha língua, usando um alicate de bico para puxá-la e uma faca meio cega para cortá-la, a lâmina suja do sangue de outrem aquecida num fogareiro vagabundo, poderei gritar que a História é uma puta e somos nós quem a prostituímos por uns trocados? Ou talvez prefiram vazar os meus olhos com os cacos de vidro das janelas que quebraram ao entrar, embora a porta esteja sempre destrancada, no que (um pouco antes) eu tentarei rir: que diferença faz? Já somos cegos, vivemos amontoados neste porão sem distinguir as fezes uns dos outros, enchendo a boca para arrotar palavras tão enormes quanto vazias de conteúdo, mas não de sentido, posto que apontam para a esquerda ou para a direita conforme a mão que gesticula, usadas que são por uns e outros, na verborragia imbecilizada que escorre pelas paredes feito o vômito de uma criança possuída. Mas, além das paredes nas quais esfregamos as nossas mãos sujas de excremento, como se assim fosse possível limpá-las, não há nada à esquerda ou à direita, exceto o que por hábito, burrice ou oportunismo alucinamos. O breu nos descolore os olhos, a imundície nos resseca as mãos, o bodum nos queima as narinas, o choro nos ensurdece de cerúmen, enquanto uns galgam as escadas e tentam alcançar a porta — mas ela foi trancada por fora. Rousseff, Cunha, Lula, Calheiros, Temer etc. são como peças de um jogo de damas que insiste em se fantasiar de xadrez, aqui e ali um cavalo improvisado, uns pelos de vassoura fazendo as vezes de crina e os dentes escancarados enquanto falseia um relincho que ouvimos ao longe, na planície desolada do tabuleiro.

……

Imagem: Leviathan, de Bo Bartlett.

Da mais primitiva e bela humanidade

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Preciso lhes dizer, dar testemunho de algo que vi, algo que vivenciei e ainda vivencio na memória, atrás dos olhos e dentro do meu coração tão vermelho, mais vermelho do que nunca, e peço desculpas por só conseguir fazê-lo assim, desfolegado, num só bloco, as vírgulas constituindo pausas precárias e a ausência de pontos dando conta da minha sofreguidão (…)

Trecho da minha crônica desta quinzena para o jornal goianiense O Popular. Leia na íntegra AQUI. Quem não for assinante e quiser ler, basta se cadastrar. É rápido e gratuito.

N'"O Povo". E na barbearia.

Enquanto concebia e escrevia o livro, o que mais me interessava era trabalhar e desenvolver essa fantasmagoria em todos os seus níveis, afetivos, familiares, profissionais, sexuais, mais do que expôr e pensar acerca do trabalho dele como tarefeiro de políticos corruptos – embora isso também esteja lá e seja muito importante.

Trecho da entrevista que cedi ao jornalista Jáder Santana para a edição deste domingo do jornal O Povo, de Fortaleza, sobre o meu romance Abaixo do paraíso. Leia na íntegra AQUI.

……

Enquanto isso, descubro que Tadeu Sarmento levou um exemplar do romance para a barbearia. Fico veramente lisonjeado. Para quem não sabe ou não se lembra, Tadeu é autor do excelente Associação Robert Walser para Sósias Anônimos, que resenhei outro dia para o Estadão.

N'O Popular

Pop

A partir de hoje, integro o time de colaboradores de O Popular, jornal de maior circulação na minha terra natal. Meus artigos sairão quinzenalmente, às terças-feiras, na coluna Crônicas & Outras Histórias. Clique AQUI e leia o primeiro deles.

Ah, sigo colaborando com O Estado de São Paulo. Há duas resenhas por sair. Assim que publicarem, linko aqui, como sempre fiz.

No "Correio"

Na edição de hoje do Correio Braziliense, há uma bela matéria assinada por Nahima Maciel sobre como a literatura contemporânea tem refletido acerca da crise política brasileira. Estou por lá discorrendo um pouco sobre meu romance Abaixo do paraíso e o momento pelo qual passamos. Leia na íntegra AQUI.

Abaixo, publico minhas respostas às questões propostas por Nahima Maciel, algumas das quais ela utilizou para escrever a matéria.

1. Até que ponto Cristiano encontra correspondência no mundo real e contemporâneo? Não dá para acompanhar a história dele sem pensar no cenário político e social atual…
Acho que Cristiano encontra total correspondência no mundo real. Vejo esse tipo de tarefeiro voejando ao redor dos políticos desde que me entendo por gente. Eles são um sintoma de como a política brasileira opera mais nas sombras e no submundo do que às claras, de como ela é viciada e violenta.

2. As atualidades da política brasileira te motivaram, de alguma forma, a escrever?
Quando concebi “Abaixo do paraíso”, os escândalos ainda não tinham atingido a magnitude atual. Mas, agora que o livro saiu e, coincidentemente, as coisas chegaram a esse ponto na política nacional, torço para que os leitores encontrem na ficção material para refletir sobre os acontecimentos e, sobretudo, desacontecimentos da nossa vida republicana.

3. Estou com pelo menos três romances que tratam dessa temática da política atual brasileira. Acho que é a resposta literária mais rápida que já vi a um fenômeno ocorrido na sociedade brasileira. Por que, na tua opinião, isso está acontecendo?
Não creio que seja uma resposta rápida. Pelo contrário. Convivemos há mais de uma década não só com escândalos como o do mensalão, mas também com uma crescente radicalização das posições políticas e ideológicas (vide as eleições de 2010 e, sobretudo, 2014). Creio que os autores tiveram bastante tempo para perceber esses fenômenos e refletir sobre eles, cada qual a seu modo.

4. Com que olhos você enxerga a política brasileira dos últimos tempos? Tem esperança? Está assustado?
Nunca tive qualquer esperança. Os acontecimentos da última década só corroboraram o meu desencanto. Não sinto medo. Apenas raiva e impotência.

5. Acha que o diálogo político no Brasil amadureceu? Ou está afundando? Como tem encarado as polarizações? O que acha delas?
Nunca houve diálogo no Brasil. Este é um país incapaz de vivência política. Somos o lugar da violência, expressa nas e pelas polarizações, por exemplo. Não haverá pacto ou entendimento, mas apenas a carnificina de sempre.