Novembro, 29

Novembro, 29

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Sinto pena de quem acha que futebol é “só um jogo”. Em geral, é gente que nunca se apaixonou, que passa a vida vegetando feito “abacaxis numa estufa”, como diria certo personagem de Rubem Fonseca.

Ontem, devastado pela tragédia ocorrida na Colômbia, arrepiei-me com o momento de silêncio em Anfield, antes do apito inicial do jogo entre Liverpool e Leeds pela Copa da Liga Inglesa. Não foi um gesto qualquer, mas algo vindo de um clube que tanto sofreu com Hillsborough.

E, por clube, entendo acima de tudo os torcedores, claro, porque nós somos o clube, nós o fazemos e sustentamos, e por “sustentar” não me refiro apenas às compras de camisas e ingressos e pagamentos de anuidades, temporada após temporada, não, eu me refiro à maneira como damos sentido e coexistimos em seu interior, transcendendo o jogo ao mesmo tempo em que emprestamos a ele e às cores pelas quais torcemos um sentido ulterior, antes metonímico que metafórico no que tange à própria vida.

Vida, caralho.

Não, não é só um jogo, e as reações fraternas e de solidariedade diante da tragédia que se abateu sobre a Chapecoense, sobre Chapecó, dão bem a medida de tudo aquilo que o futebol ultrapassa enquanto extensão da existência humana.

No jogo de ontem, havia uma atmosfera nebulosa, intranquila, a própria tela da TV parecendo prestes a se desfazer. Mal consegui me concentrar. Torci, é claro, sempre torço, mas era como se tudo o que rolava entre aquelas linhas transcorresse no que o poeta chamaria de velocidade do pesadelo, uma qualidade opressivamente líquida, e nos afogássemos.

Então, algo aconteceu.

A torcida dos Reds cantaria You’ll Never Walk Alone no minuto 76 (número que chegou a ser divulgado como o de vítimas do desastre), mas foi bem aí que Origi abriu o placar. Sim. Gol da Chape, pensei. Não poderia haver homenagem maior ali dentro.

Gol da Chape, em Anfield Road.

E, depois, quando Ben Woodburn, um galês de dezessete anos em sua estreia de fato no time principal (pois só entrou nos segundos finais do jogo contra o Sunderland, sábado passado), marcou o segundo gol, fui às lágrimas.

Um menino.

Um garoto marcando seu primeiro gol diante do Kop em um dia como ontem. Uau, pensei, se isso não serve de inspiração para lutarmos contra esse dia e vencermos, se isso não é motivo para termos alguma fé no futuro, eu não sei o que é.

Woodburn.

Desmarcado, às costas da defesa, recebendo o passe de Wijnaldum e chutando com segurança, no alto, tirando do goleiro, e depois correndo e pulando à frente do Kop, com aquela expressão única, de quem não acredita que aquilo esteja mesmo acontecendo, um garoto, só isso, como se alguém nos dissesse: por mais doloroso que às vezes seja, a vida segue.

Sim.

Foi um desses pequenos milagres do futebol, o tipo de coisa que ilumina e reafirma o milagre maior, que é a própria vida.

Círculos

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1. O primeiro contato que tive com o cinema de Denis Villeneuve foi em 2011, com o lancinante Incêndios, seu quarto longa de ficção (também dirigiu curtas, programas de TV e um dos segmentos do documentário Happiness Bound). Desgostei dos dois filmes que ele lançou a seguir (algo me diz que preciso rever Os Suspeitos, mas O Homem Duplicado é bem digno do Saramago que adapta: chato, vazio e filosoficamente infantil) e gostei, com umas poucas ressalvas, de Sicário. Assim, fui ver A Chegada sem saber muito bem o que esperar, até porque ainda não li o conto de Ted Chiang que o inspira e, exceto pelo trailer (ou seja, nada) e alguns comentários (positivos e negativos) de amigos, sabia bem pouco a respeito. Saí impressionado do cinema.

2. Villeneuve constrói o filme de forma circular (ou palindrômica) e, muito embora esta não seja a primeira coisa que percebemos, é um dos elementos que o oxigenam e afastam do sentimentalismo. Mais do que uma história sobre uma invasão alienígena, ele nos oferece uma reflexão delicada e nem um pouco óbvia sobre a memória, o poder contingenciador do luto e as escolhas que fazemos no decorrer da vida.

3. Brincando com o nosso olhar domesticado por centenas de filmes que usam e abusam do recurso, Villeneuve insere flash forwards como se fossem flashbacks. Não chega a ser uma cama-de-gato (embora alguns resenhadores se refiram ao início do filme como algo relativo ao passado da protagonista, o que é engraçado), mas a forma que o diretor encontrou de refletir o tema de A Chegada em sua própria estrutura, conforme a circularidade narrativa se deixa explicitar.

4. Louise (Amy Adams) é uma linguista recrutada pelo governo dos EUA para encontrar um meio de se comunicar com uma raça alienígena recém-chegada à Terra. Há doze naves estacionadas ao redor do globo, uma delas em Montana. O mundo está em pânico, e os governos também, porque ninguém sabe se as intenções dos aliens são amistosas ou não. A protagonista precisa encontrar um meio de se entender com os visitantes, e rápido.

3. No começo, Villeneuve sugere que ela perdeu uma filha pequena, destroçada por um câncer. Mas, à medida que o filme avança, torna-se claro que as inserções não são lembranças de uma mente atormentada pelo luto, mas visões de um futuro (e não do, pois sempre há escolhas a serem feitas), tornadas possíveis pela própria língua alienígena que Louise, forçosamente, aprende.

2. A meu ver, o melhor do filme reside no modo como essa consciência de si, do que virá e, portanto, do luto, é paulatinamente erigida. Ao final, Louise sabe o que a aguarda se fizer uma determinada escolha (ou duas: casar-se e depois ter a filha, que morrerá), mas também sabe que, não obstante a brutal perda vindoura, a beleza do que vivenciará/vivenciou é incontornável, e diz sim.

1. Por fim, há que se ressaltar a excelente direção de Villeneuve. Ele usa a economia de recursos (orçamento foi de apenas US$ 47 milhões, enquanto lixos como Independence Day: Resurgence torram US$ 165 milhões) a favor do filme, tirando o máximo dos poucos cenários, mostrando ou não o que interessa (note-se a ótima cena na sala de aula, em que a tela da TV noticiando a chegada dos OVNIs é “sonegada” e ficamos com os rostos embasbacados da professora e dos alunos na sala quase vazia) e criando uma simetria conceitual que vai desde o roteiro até a câmera — vide alguns dos planos gerais e travellings que, a exemplo de um Malick, transmitem com perfeição o assombro diante do desconhecido.

Sula

“Se numa amora passares farinha,
terás então um retrato de Sula.”
Plutarco, Sula, 2.

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“(…) Quando Sula começou seu discurso descrevendo a vitória sobre Mitrídates, os senadores começaram a ouvir os gritos abafados dos prisioneiros samnitas. Sula continuou a falar, aparentando não se dar conta dos gritos. A certa altura ele interrompeu seu discurso e pediu que os senadores não se deixassem distrair. ‘Alguns criminosos estão sendo castigados’, explicou ele sem dar importância ao fato. ‘Não há motivo para preocupação. Está tudo sendo feito por ordens minhas.’¹
“O massacre foi total. Apinhados como estavam, os cadáveres formavam pilhas altas. Terminadas as execuções, os corpos foram arrastados pelo Campo de Marte e atirados no Tibre, que ficou coalhado de cadáveres até que ‘a correnteza do rio lançou uma grande mancha de sangue no azul do mar aberto’.² As manchas deixadas na Villa Publica não saíram tão facilmente. O censo havia se realizado ali três anos antes e agora os lugares onde eram realizadas as eleições estavam imundos por causa da carnificina. O simbolismo era óbvio e chocante. Sula raramente fazia algum gesto sem antes calcular exatamente o efeito que teria. Ao lavar a Villa Publica com sangue ele informava dramaticamente que faria uma cirurgia na República. (…)
“Os esquadrões da morte já se espalhavam por toda Roma quando a carnificina dos samnitas ainda estava sendo executada na Villa Publica. Sula não fez qualquer tentativa de impedir que prosseguissem. Até mesmo seus partidários, habituados a derramamento de sangue, ficaram perplexos diante daquelas demonstrações de violência. Um deles ousou perguntar quando se colocariam freios naqueles assassinos. Ou, pelo menos, acrescentou ele apressadamente, ‘dê-nos uma relação daqueles que deverão ser punidos’³. Sula, ironicamente, atendeu-o de pronto: fez afixar uma lista no Fórum. Nela constava toda a liderança do governo de Mário, todos condenados à morte. (…)”

::: Tom Holland, em Rubicão (trad. Maria Alice Máximo, ed. Record).

¹Plutarco, Sula, 30.
²Lucano, 2220.
³Plutarco, Sula, 31.

Duas aproximações

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1.
O núcleo de Elefante (2003) é o massacre numa high school. A data e o local não são precisados, de tal forma que o filme se refere a todos e a nenhum desses eventos. Muito de sua força está na estruturação elíptica: ela contorce o tempo dolorosamente ao redor daquele núcleo sanguinário — dois alunos armados até os dentes, atirando nos demais — e nos abandona ali; é algo que aconteceu, está acontecendo, continuará a acontecer.

Gus Van Sant nos aproxima de alguns personagens (incluindo a dupla de assassinos) ao mesmo tempo em que evita quaisquer simplificações e psicologismos. Ao posicionar a câmera, acompanhando as pessoas pelos ambientes da escola (longos travellings cuja composição remonta aos de Stanley Kubrick, mas também aos de jogos como GTA e similares), e também pela escolha dos recortes, a própria organização dos retalhos que formam o longa, o cineasta parece nos dizer da impossibilidade de dar conta da(s) tragédia(s) como um todo, de “explicá-la(s)” ou coisa parecida. Assim, o filme funciona num outro nível, distante do sensacionalismo, por um lado, e do sentimentalismo, por outro.

Elefante está mais para um trabalho arqueológico que desvelasse ao espectador uns restos de pinturas rupestres, nos escombros de uma caverna recém-implodida ou em constante, eterna implosão (aconteceu, acontece, acontecerá). O jogo que estabelece é ao mesmo tempo naturalista — o uso de atores não-profissionais; o esforço para imergir no ambiente — e antinaturalista — vide o extremo rigor com que dilata o tempo para melhor alquebrá-lo, como se encalacrasse as pessoas naquelas horas brutais, num labirinto sem saída, fadadas à eterna repetição da violência, e a edição de som a realçar o estranhamento e a atmosfera de pesadelo. Elefante é, ademais, um filme que se sustenta em paradoxos: como é possível que seja, ao mesmo tempo, tão radical e tão discreto? Ele nos pede silêncio, não histeria. E, em vez de se quedar à distância, exige que nos aproximemos, até onde for possível.

2.
O Conformista (1971) é lugar onde Bernardo Bertolucci “assassina” um de seus “pais”, Jean-Luc Godard (o outro é Pier Paolo Pasolini, de quem se livrara em Prima della Rivoluzioni). Os travellings laterais, o antinaturalismo de algumas cenas e diálogos, o uso contraintuitivo e chistoso da música em algumas passagens, são todos elementos gordardianos. Mas, claro, o filme vai muito além disso.

É uma adaptação livre do romance homônimo de Alberto Moravia. O tom “decadente” foi visto com reservas à época do lançamento; esperava-se algo “menos artístico” e mais incisivo. Por sorte, Bertolucci optou por fazer cinema (grande cinema) em vez de fazer a revolução. Assim, pôde dar estofo a um personagem cuja vaziez é tão absurda que transcende o maniqueísmo ideológico, um crianção de família (mil&)quatrocentona obcecado pela ideia de levar uma vida “normal”. Como estamos na Itália fascista, uma vida “normal” inclui um casamento com uma burguesa cretina e um estar ao dispôr da ditadura de Mussolini: em sua viagem de lua-de-mel, ele se reaproxima de um ex-professor, esquerdista, agora exilado em Paris e a quem é incumbido de matar.

Acho curioso o modo como Bertolucci teatraliza a encenação, até certo ponto. É uma estilização que não chega aos extremos da artificialidade porque o diretor sabe muito bem onde instalar o seu ponto de ruptura, a saber, na violência que é a argamassa do regime, primeira e última instâncias de um ordenamento maníaco que visa a obliteração de qualquer indivíduo tido como subversivo. O filme flerta com o excesso e o patético, seja no modo como reconstitui eventos passados da vida do personagem principal, seja no distanciamento com que certas passagens são concebidas (a visita ao pai louco; a ida ao ministério; a missão dada num bordel), mas, quando a brutalidade irrompe, Bertolucci não tergiversa: o assassinato não é um acidente, mas o símbolo de um permanente estado de exceção e resultado direto da irreflexão do indivíduo “normal”, obcecado em anular o (suposto) crime pregresso com os crimes presentes (estes, crimes de fato).

Depois, num epílogo situado nas ruínas do fascismo, restam as sombras, como se o status quo invertesse a alegoria platônica e nos acorrentasse de vez no interior da caverna, indignos que somos da claridade exterior e de qualquer coisa que se assemelhe com a busca pela verdade. Mas não é como se o fascismo se esfacelasse. Em vez disso, ela alcança uma interiorização, mesclando-se com os ossos dos indivíduos, com os alicerces do lugar político onde, cegos, ainda pisamos uns nos outros.

……

Uma versão menor deste texto foi publicada ontem pelo jornal O Popular.

Trompe-l'œil

At first I thought you and the others were gods,
but then I realized you’re just men.
Maeve.

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Fiquei muito impressionado com o episódio exibido ontem de Westworld. Depois de assisti-lo, veio à minha cabeça um texto publicado na Folha tempos atrás, segundo o qual um possível “problema” da série residiria no fato de que os espectadores não teriam “empatia” por um monte de robôs.

A burrice, ela sempre me impressiona.

Sejamos didáticos: mais do que em relação à natureza da realidade (e de como a percebemos), Westworld explicita zonas perturbadoras de indistinção no que concerne à própria natureza do humano, não só enquanto suposta “realidade objetiva” (apaguem a luz), mas sobretudo enquanto conceito.

Claro, são todas questões epistemológicas, tratam dos modos como percebemos (ou da possibilidade ou não de perceber) uma e outra coisa, mas a percepção do humano em si e por si se dá por meio de adições (animal + razão) e contraposições, como, aliás, Aristóteles ilustra no De Anima (e, dentre tantos outros, Heidegger investiga e questiona brilhantemente em textos como Ciência e pensamento do sentido). Agora, a partir do momento em que um ser artificial como os anfitriões de Westworld, o HAL de 2001 ou os replicantes de Blade Runner questionam a natureza da realidade em que estão inseridos e lançam mão do livre-arbítrio (mesmo que este não passe de mais uma linha de código em sua programação) (mas quem disse que esse também não é o nosso caso?), a zona de indistinção entre eles e os seres de carne e osso cresce ao ponto de colocar em questão a própria noção de humano na qual nos fiamos pelo menos desde que o supracitado estagirita tentou hierarquizar os viventes.

Claro que, conforme demonstra (por exemplo) Agamben em O Aberto – O Homem e o Animal, a concepção aristotélica foi mastigada, digerida, regurgitada e de novo mastigada etc. no decorrer do tempo. No entanto, a inquietação que a produziu permanece dependurada à nossa frente — ainda que, para muitos, ela seja como a porta que o personagem Bernard não enxerga a certa do altura do episódio de ontem de Westworld — e seus desdobramentos ainda se fazem mais do que presentes. Como todo problema filosófico, trata-se de um campo minado do qual não é possível desviar.

Sempre que se procurou definir o que é o humano, e a legislar a partir dessa ou daquela definição, mostra-nos Agamben, a tal zona de indistinção se inscreve e nós nos vemos obrigados a lidar com um mecanismo diabólico que envolve inúmeras gradações, subdivisões, poréns, interesses e coisas do tipo. Vide o modo como alguns grupos étnicos e/ou religiosos são eventualmente tidos como “menos humanos” que os demais, e assim tornados “matáveis” em determinadas circunstâncias — indígenas, hereros, namas, armênios, judeus, bósnios etc.

A burrice (ou a perversidade) reside justamente na presunção de que há uma definição clara e inequívoca do que seja (ou não) humano, quando a História (esta maravilhosa criação humana) aponta para a direção contrária, de que tal conceito é tão mutante e fugidio quanto problemático. Óbvio que os anfitriões de Westworld são máquinas, mas o grande barato da série é justamente o de brincar com a percepção (falha, irrefletida, presunçosa) que temos de nós mesmos, de nossa condição, e daqueles que consideramos ou não “semelhantes”.

Ainda no que diz respeito à série, convém ressaltar que alguns orgas e mecas parecem ser iguais ao menos em um aspecto importantíssimo: a teleologia. Os diálogos entre William e Dolores deixaram isso muito claro. E o tal labirinto talvez leve a uma compreensão (precária, momentânea, mas valiosa) dessa afinidade teleológica. Tentarei voltar a esse aspecto em um texto futuro, após o final da temporada, quando, presumo, algumas questões serão respondidas e outras serão suscitadas.

Seja como for, é sempre melhor partir de um estado de suspensão epistemológica, ou pelo menos de desconfiança. A ânsia por definições fáceis quase sempre resulta em impropriedades linguageiras e, a partir daí, em coisas muito piores. A violência é também um índice do nosso fracasso com ou frente à linguagem. Dar alguns passos para trás e repensar ideias e conceitos que em geral temos como prontos ou mesmo autoevidentes é uma estratégia tão velha (oi, Sócrates) quanto boa. Em se tratando de Westworld, o convite me parece irresistível: colocar-se por um tempo sub specie machinae. Na medida em que mal conseguimos enxergar o outro com os nossos olhos humanos, talvez as máquinas possam nos mostrar uma coisinha ou duas sobre a natureza indefinível que, de um jeito ou de outro, compartilhamos.

…………

BIBLIO A melhor tradução do livro de Agamben é ESTA (corram da edição brasileira, onde até o nome do autor é grafado erroneamente na folha de rosto). Em se tratando de Aristóteles, a edição da 34 é estupenda. E, na falta de outro melhor, o texto do Heidegger pode ser lido no volume Ensaios e Conferências, lançado pela Vozes e encontrável em sebos.

Sobre a noção de verdade em Tarski

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A intenção deste texto é discorrer sobre Verdade e demonstração, de Alfred Tarski. Para iluminar alguns pontos, recorro (ainda que brevemente) ao capítulo que Richard L. Kirkham dedica à teoria semântica em Teorias da Verdade.
Quanto aos seus objetivos, Tarski é explícito desde os primeiros parágrafos de Verdade e demonstração. Ele coloca em discussão duas noções para, ao final, relacioná-las. As noções são aquelas citadas já no título: verdade e demonstração. Aqui, eu me ocuparei apenas da noção de verdade.
Como bom deflacionista, Tarski restringe o termo e deixa bem claro que só lhe interessa o que chama de “concepção lógica de verdade”. O escopo de sua investigação poderia ser traduzido pela pergunta: o que se quer dizer quando se afirma que uma determinada sentença é verdadeira?
Estamos, portanto, diante do incipit de uma teoria da verdade.
Kirkham chama a atenção para o fato de que Tarski preferir chamá-la, em vez de teoria, de “concepção semântica”, até por considerar que a verdade pode ser definida em termos de outros conceitos semânticos, como o de satisfação. Ao fim e ao cabo, segundo Kirkham, está um projeto maior, que viria a ser o estabelecimento de uma “semântica científica” que não estivesse, por assim dizer, contaminada por “nenhuma entidade abstrata cuja existência já não estivesse pressuposta pela ciência da física” (p. 204). Ou seja, Tarski definia a verdade em termos de satisfação, que, por seu turno, era definida em termos de conceitos lógicos e matemáticos. Mas talvez estejamos indo rápido demais.
Voltando ao ensaio de Tarski, quando ele afirma que está interessado exclusivamente numa “noção lógica de verdade”, isso significa, segundo suas próprias palavras, uma acepção do termo verdadeiro unicamente relacionada a sentenças. E, ainda nesse saudável espírito de delimitação de seu objeto, ele sublinha que sentenças são vistas como “objetos linguísticos, como certas sequências de sons ou de signos escritos”, e apenas sentenças declarativas (esqueçamos, portanto, as interrogativas e as imperativas). O problema de fundo, aqui, é o dos portadores de verdade, isto é, aqueles concernentes a uma outra pergunta: a que tipo de objetos o termo verdadeiro pode ser aplicado?
Ao explicar um termo qualquer, há que levar em conta os objetivos e o caráter dessa explicação do ponto de vista lógico: se a intenção é dar conta do uso corrente do termo, temos algo descritivo; se, por outro lado, tenciona-se sugerir uma determinada maneira de se usar o termo, a explicação tem um caráter normativo. A intenção de Tarski em seu trabalho é oferecer uma explicação ao mesmo tempo normativa (haverá a sugestão de um uso determinado do termo verdadeiro) e descritiva (a sugestão ainda estará conforme o uso cotidiano do referido termo).
Os antecedentes históricos desse problema remontam, claro, a Aristóteles, em cuja concepção (retirada da Metafísica e citada textualmente por Tarski: “Dizer do que é que não é, ou do que não é que é, é falso, enquanto que dizer do que é que é, ou do que não é que não é, é verdadeiro”) encontramos a ideia de que a palavra “falso” é sinônima da expressão “não-verdadeiro”. O que temos ali expresso é a concepção clássica de verdade ou, ainda, concepção semântica de verdade. Tarski esclarece que semântica vem a ser o ramo da lógica que, grosso modo, “discute as relações entre os objetos linguísticos (tais como sentenças) e aquilo que é expresso por esses objetos”. Assim, sem se desvencilhar de Aristóteles, o que ele procura é “uma explanação mais precisa da concepção clássica de verdade”, usando as bases da formulação do estagirita para catapultar-se rumo a outra formulação, mais completa em suas especificações.
A fim de não se dispersar nessa busca, Tarski delimita a linguagem da qual se ocupará (no texto original, o inglês comum; na tradução que utilizamos, o português). Em seguida, começa por uma sentença simples, a neve é branca, denominando-a sentença ‘S’ e perguntando: “o que queremos dizer quando falamos que S é verdadeira, ou que S é falsa?”. Para Aristóteles, S é verdadeira quando a neve é branca, e falsa quando a neve não é branca. Assim: (1) ‘a neve é branca’ é verdadeira se e somente se a neve é branca; (1’) ‘a neve é branca’ é falsa se e somente se a neve não é branca. A ideia de um círculo vicioso nessas explanações pode ser afastada ao notarmos que, ao inserir as aspas, distinguimos o objeto de seu nome, isto é, “uma expressão entre aspas deve ser tratada gramaticalmente como uma só palavra, sem nenhuma parte sintática” (não é o caso, evidentemente, da explicação entre aspas colocada imediatamente antes da abertura destes parênteses). Ocorre que esse método, embora resolva diversos problemas, acaba por criar outros (como a própria impressão de um círculo vicioso). Tarski, então, procura por outra forma de constituir nomes de expressões, e chega ao seguinte: ‘p’ é verdadeira se e somente p. (Nesse ponto, ele chama a atenção, contudo, para os casos em que a sentença colocada em ‘p’ tiver entre suas partes a própria palavra ‘verdadeiro’, como em: nem toda palavra escrita neste texto é verdadeira. A fim de verificar o que é exprimido nesta última sentença, ter-se-ia que analisar atentamente a verdade de todas as sentenças do texto em questão.)
Reformulando o norte de sua reflexão, Tarski estipula que a utilização do termo verdadeiro relativamente a sentenças em português só estará de acordo com a concepção clássica de verdade se permitir avaliar toda equivalência da forma ‘p’ é verdadeira se e somente se p, onde ‘p’ é uma sentença qualquer de nossa língua. Uma vez satisfeita tal condição, dir-se-á que o termo verdadeiro é adequado. Com isso, recoloca-se o problema fulcral: é possível estabelecer um uso adequado do termo verdadeiro para sentenças em língua portuguesa? Em caso positivo, por quais métodos? Observe que, se fizer isso, ele estará de acordo com os objetivos traçados anteriormente, de estabelecer uma solução ao mesmo tempo normativa (uso adequado) e descritiva (passível de ser aceita pelos falantes do português).
Tal empreendimento seria consideravelmente mais fácil de atingir se, em vez de abarcar toda a língua portuguesa, nós nos restringíssemos a um fragmento dela (que se poderia chamar de linguagem L), com regras sintáticas precisas, sem ambiguidades quanto ao significado de suas palavras, um número finito de sentenças (digamos que quinze) e em que o termo verdadeiro não ocorresse. O critério de adequação diz respeito, no caso, a uma definição de verdade v para uma linguagem L a partir da qual deduzimos (isto é, tiramos uma consequência lógica) todas as equivalências da forma ‘p’ é verdadeira se e somente se p, onde ‘p’ é substituído em ambos os lados da equivalência supracitada por uma sentença qualquer de L. Como consequências desse critério, temos que a definição de verdade v para L deve ser uma sentença, e uma sentença (no que depender de L) com certo grau de complexidade. Deve ser uma sentença porque a relação de dedutibilidade só se dá entre sentenças, e a complexidade se dá porque, dependendo de L, o número de deduções necessárias para verificar a própria adequação poderá ser grande ou mesmo infinito.
Para criar um exemplo dessa natureza, os passos seriam: (1) preparar uma lista completa de todas as sentenças em L (‘s1’, ‘s1’… ‘s15’); (2) construir uma definição parcial de verdade para cada uma dessas sentenças (‘s1’ é v se e somente se s1); (3) formar uma conjunção lógica de todas essas definições parciais, combinando-as em um enunciado só, usando o conectivo ‘e’ entre quaisquer duas definições parciais consecutivas (‘s1’ é v se e somente se s1, e ‘s2’ é v se e somente se s2, e…); (4) formular essa conjunção final de maneira diversa das anteriores (mas equivalente), satisfazendo os requisitos formais das regras lógicas de definições, assim: Para toda sentença x da linguagem L, x é verdadeira se e somente se ou s1 e x é idêntica a ‘s1’, ou s1 e x é idêntica a ‘s2’, ou… s15 e x é idêntica a ‘s15’.
Assim, chegamos a um enunciado passível de ser aceito como uma definição geral da verdade, posto que é formalmente correto e adequado. Por outro lado, ele diz respeito apenas à linguagem L. A obtenção de uma definição de verdade efetivamente geral, isto é, que diga respeito a toda e qualquer sentença de língua portuguesa, esbarra numa série de problemas: ambiguidade quanto à forma das expressões (às vezes, uma mesma expressão pode, em contextos distintos, configurar-se ou não como uma sentença); o conjunto de sentenças em português é provavelmente infinito; e, por fim, a ocorrência da palavra verdadeiro também impede que adotemos em português o procedimento acima, aplicado à linguagem L.
A fim de ilustrar esse último item, relativo à ocorrência do termo verdadeiro, Tarski recorre à antinomia do mentiroso. Segue um exemplo dessa antinomia. Atente para a seguinte frase: A SENTENÇA ESCRITA INTEIRAMENTE EM MAIÚSCULAS NO DÉCIMO QUARTO PARÁGRAFO DESTE TEXTO É FALSA. Abreviamos essa sentença como S. O paradoxo está em que S é verdadeira se e somente se S é falsa. Ora, não é possível que uma mesma sentença seja, simultaneamente, falsa e verdadeira, posto que isso contraria o princípio lógico do terceiro excluído. Temos, portanto, uma antinomia.
A origem da antinomia do mentiroso remonta à antiguidade e é em geral atribuída ao grego Eubúlides. Desde então, segundo Tarski, podemos encontrar duas formas de encarar as antinomias: desconsiderando-as como sofismas ou jogos estéreis de linguagem ou, pelo contrário (e como fizeram Russell e Peirce), vê-las como fontes dignas e saudáveis de reflexão. Para Tarski, o melhor seria procurar um meio-termo. Embora não se mostre disposto a defenestrá-las, ele tampouco intenta se reconciliar com elas, aceitando-as “como um elemento permanente do nosso sistema de conhecimento”, pois elas seriam, sim, o “sintoma de uma doença” (p. 214).
Em vista de seu objetivo, Tarski pergunta, então, como evitar as contradições criadas por essa antinomia. Solução bastante radical seria a de remover o termo verdadeiro do vocabulário vigente, ao menos no que diz respeito a discussões mais consequentes. Outra solução seria adotar o que o filósofo polonês Tadeusz Kotarbinski chama de “abordagem niilista da teoria da verdade”: nesta, a palavra verdadeiro não possui significação por si só, mas deve ser usada em expressões como “é verdadeiro que” e “não é verdadeiro que”, tratadas como se fossem palavras. Por exemplo: “não é verdadeiro que este é um trabalho sobre Platão”, o que equivale a dizer “este não é um trabalho sobre Platão”. Se abordarmos segundo essa concepção a frase em maiúsculas acima, pela sua própria formulação, podemos afirmar que ela não é uma sentença significativa. Com isso, a antinomia desaparece, embora surjam outras complicações, como a de que, em função dessa abordagem “niilista”, em alguns casos, não seria possível expressar coisas como conjecturas. A abordagem “niilista” é forçosamente preto-no-branco, o que engessaria a nossa maneira de se expressar, inviabilizando “a noção de verdade do estoque conceitual da mente humana” (p. 216).
Tarski, então, retorna ao seu intento primeiro, o de encontrar uma noção de verdade que inclua uma solução para o problema da antinomia e não abra mão do conceito clássico de verdade. Para tanto, ele compreende que será necessário restringir a aplicabilidade da noção de verdade.
Uma das características da linguagem comum é justamente a sua universalidade. Sua abrangência inclui, assim, não só os chamados objetos linguísticos (sentenças, termos), mas também os nomes dos objetos. Daí a possibilidade de criarmos sentenças autorreferentes (dizer algo de uma sentença S, por exemplo) e, no limite, incorrermos outra vez no paradoxo do mentiroso (quando S afirma a própria falsidade). Para escapar disso, Tarski observa que não há necessidade de utilizar essa universalidade da linguagem em toda e qualquer situação. Como exemplo, ele cita as linguagens extremamente especializadas de algumas ciências, como a química. Dizendo de outra maneira, não é possível expurgar a verdade da linguagem natural, mas no discurso da química, por exemplo, não há necessidade de remeter à verdade (exceto no caso de uma metalinguagem, que se encontra, ademais, no âmbito da linguagem natural). Nos discursos não-ordinários, portanto, não há referência ao próprio discurso, ou seja, não há necessidade de termos semânticos.
Recoloca-se, então, a questão: é possível que a noção de verdade seja precisamente definida e que se estabeleça um uso consistente e adequado dessa noção pelo menos nas linguagens do discurso científico? A resposta, desde que se observem certas condições, é sim. Agora, vejamos quais são essas condições. Se atentarmos bem, notaremos que não são muito distintas daquelas observadas quando da fundamentação da linguagem L. Trata-se, portanto, de condições que devem ser satisfeitas pela linguagem de modo a fornecer uma definição de verdade adequada (em termos de critério).
A primeira condição é de que o vocabulário deve ser completamente especificado. As regras sintáticas, por sua vez, devem ser formuladas com precisão. Esta é a segunda condição. A terceira é de que, além disso, essas regras têm de ser puramente formais, isto é, referirem-se tão somente ao formato das expressões, não dependendo do significado destas. Temos, assim, uma espécie de gramática formal cujo vetor reside, por assim dizer, na denotação, e não na conotação. Com isso, ambiguidades são evitadas e torna-se possível identificar determinada expressão como uma sentença (ou não) de imediato. Uma linguagem que satisfaz essas três condições é uma linguagem formalizada. Elas são muito usadas na apresentação de teorias lógicas e matemáticas, e, no entender de Tarski, não há razão para que não sejam também utilizadas noutros campos do conhecimento. Além disso, ele esclarece que as linguagens formalizadas imbuídas de interesse são justamente aquelas constituídas a partir de fragmentos de linguagens naturais ou que podem ser traduzidas de maneira adequada em uma linguagem natural.
Com isso, há que se observar ainda uma outra condição: é imprescindível distinguir rigorosamente entre a linguagem que é o objeto da discussão e a outra na qual deve ser formulada a definição e estudadas as implicações. Esta última é a metalinguagem; a primeira, a linguagem-objeto. A metalinguagem, até pelas suas atribuições, deve abarcar a linguagem-objeto. Ou, desenvolvendo melhor essa noção, a metalinguagem, na medida em que fornece os meios necessários para definir a verdade, é essencialmente mais rica do que a linguagem-objeto e, portanto, não coincide com ela, não é traduzível nela ou por ela. Do contrário, elas seriam, ambas, semanticamente universais e passíveis de ter a antinomia do mentiroso reconstruída tanto numa quanto na outra.
Observadas as condições acima, é possível, sim, que tenhamos uma noção de verdade definida com precisão e com um uso, conforme as delimitações expostas, perfeitamente adequado e livre da antinomia do mentiroso. Com isso, se não estou enganado, Tarski satisfaz sua intenção, anunciada logo no começo do ensaio, de engendrar uma explicação ao mesmo tempo normativa e descritiva quanto ao uso do termo verdadeiro.

……

TARSKI, Alfred. A Concepção Semântica da Verdade. Org.: Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra. Tradução: Celso Reni Braida, Cezar Augusto Mortari, Jesus de Paula Assis, Luiz Henrique de Araújo Dutra. São Paulo: Editora UNESP, 2007.

KIRKHAM, Richard L. Teorias da Verdade – Uma Introdução Crítica. Tradução: Alessandro Zir. São Paulo: Unisinos, 2004.

Do ponto de vista do inanimado

Texto originalmente publicado no Blog do IMS.

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Não é difícil imaginar o que levou David Cronenberg a adaptar o romance Cosmópolis (2003), de Don DeLillo. Talvez o cineasta canadense tenha se identificado com o tom hiperbólico da narrativa e com a sua recusa em investir numa levada realista para dar conta de um mundo ancorado quase que exclusivamente na virtualidade: o sistema financeiro global, que está ao mesmo tempo em todo lugar e em lugar algum. É um mundo no qual “os seres humanos e os computadores se fundem” e as pessoas deixam de morrer para ser “absorvidas em fluxos de informações”. Esse tipo de coisa deve ter soado como música para o diretor de eXistenZ (1999).

O filme ressignifica, à luz trevosa dos eventos de 2008 e da crise econômica que se seguiu, um livro que, ao ser lançado em 2003, foi tido por muitos como exagerado, absurdo e até mesmo identificado com alguma subespécie de “realismo fantástico”. É verdade que Cosmópolis está distante da excelência de Ruído Branco (1985) ou da monumentalidade de Submundo (1997), duas das obras mais festejadas do autor, mas merece ser lido ou relido, dentre outros motivos, porque parece ter mais a nos dizer hoje do que há treze anos. Como se sabe, a quebradeira de 2008 transformou o estouro da bolha ponto-com numa marolinha.

O protagonista, Eric Packer, é um bilionário de vinte e oito anos, especulador maiúsculo que cruza Nova York em uma limusine num dia em abril de 2000 para cortar o cabelo. Não é um dia qualquer: a cidade está em polvorosa com a visita do presidente, o funeral de um rapper, um protesto antiglobalização (ou coisa que o valha) e, acima de tudo, com um pânico financeiro galopante que, logo veremos, é causado pela teimosia (suicida?) de Packer em especular com a moeda japonesa. Em seu trajeto, e muitas vezes sem deixar a limusine, ele faz uma consulta médica rotineira (ou nem tanto), encontra-se com a esposa, com assessores, é informado de uma possível ameaça à sua vida e, aos poucos, ausenta-se da histeria circundante ao mesmo tempo em que a incrementa. Ele vê o mundo em que vive e sabe que não escapará dele. Logo, só poderia mesmo tentar destruí-lo.

Nesse percurso, DeLillo busca resgatar o que uma personagem chama de “qualidade narrativa do dinheiro”, perdida numa época em que “a riqueza virou seu próprio objeto”. O dinheiro não tem mais história, vem de lugar algum e vai para lugar algum. Sua “qualidade narrativa” desapareceu em função da inexorável imaterialidade do sistema financeiro, que domina tudo e em relação ao qual não há “lado de fora”. Como deixar de “especular no vazio” e recuperar aquela materialidade?

A princípio, mesmo o prazer sexual está alicerçado em um “pacto de intocabilidade”: Packer e sua gerente financeira gozam sem se tocar, enquanto ele passa por um animado exame de toque retal. Elementos corpóreos como suor, esperma e sangue começam a aparecer com insistência no decorrer do livro, e os contatos físicos vão aumentando até culminar na “extensão lógica dos negócios”, isto é, no assassinato. A violência está presente desde o começo, mas não a humanidade que lhe é ou deveria ser inerente. A humanidade é, digamos, reengendrada por meio da expressão mais primitiva ou propriamente física da violência. Óbvio que DeLillo não elabora um elogio da violência, qualquer que seja, mas ela é intrínseca ao personagem, desde a sua forma mais impessoal e “civilizada”, no distanciamento dele em relação ao mundo e às outras pessoas, até os embates físicos, de natureza sexual ou não, aos quais ele passa a se entregar. Despersonalizado, Packer só recupera algo de si a partir do momento em que é confrontado por alguém disposto a matá-lo: “(…) Mas era a ameaça da morte ao cair da noite que lhe falava de modo mais decisivo sobre algum princípio do destino que ele sempre soubera que um dia haveria de se esclarecer”. É só a partir disso que ele pode “dar início à atividade de viver”.

A recuperação da “qualidade narrativa do dinheiro” está, portanto, ligada à possibilidade de resgatar o corpo e suas demandas: comer, transar, sangrar, morrer. É a vida nutritiva de que nos fala Aristóteles no De Anima ao distinguir os seres animados dos inanimados. Packer é (re)animado à medida em que come, transa, sangra, ou seja, quando volta a se perceber lançado para a morte. Roubando o título de um romance posterior de DeLillo, ele se redescobre vivo justamente ao tomar consciência, reassumir e acentuar sua posição de homem em queda.

No fim das contas, Cosmópolis é um romance narrado não do ponto de vista do especulador, daqueles que o cercam ou de quem deseja ir à forra contra ele, mas pelo próprio dinheiro que Packer, em seu ímpeto autodestrutivo (e por isso mesmo criador, posto que a “vontade de destruir é um impulso criativo”), trata de espalhar de “modo metódico pelas fumaças dos mercados destroçados”. O homem é visto pela entidade que, virtualizada ao extremo, trata de pulverizar enquanto passeia pela cidade. Packer desumanizou o dinheiro. O dinheiro, então, numa reação de força igual e em sentido contrário, re-humaniza Packer. Temos, em suma, uma história contada do ponto de vista do inanimado. O que pode ser mais contemporâneo do que isso?

Bronson

Escrevi este conto há uns quatro anos, depois de aceitar o convite do Diego Moraes para participar de uma antologia tão divertida quanto insólita. Publico aqui uma versão revista (mas não muito).

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1.
Tudo isso aconteceu há muito tempo, logo depois que o meu pai foi negociar umas cabeças de gado lá pros lados do Kansas, seguindo pela Trilha de Chisholm, e acabou morto a bala numa ocorrência que a minha mãe chamou de “história muito mal contada”.
Mas até hoje eu acho que o pior de tudo, pior até do que o meu pai morrer de um jeito assim tão estúpido, foi a gente nunca ter podido ver o corpo e se despedir dele da maneira apropriada e, claro, enterrar o homem assim debaixo das nossas fuças. Quando alguém morre assim, à distância e sem que se possa velar o corpo e dizer adeus, fica faltando alguma coisa para os que ficaram, feito uma conversa interrompida com brutalidade sem que a última palavra, não importa de quem, seja dita. Acho até mesmo que a gente é assombrado pelo resto da vida por aqueles de quem não pôde se despedir direito.
Quem veio nos dar a notícia foi o sr. McGee em pessoa, e é como se eu ainda pudesse ver os quatro homens, ele e três capangas armados com rifles Spencer, montados em seus cavalos junto à cerca, o sr. McGee dizendo para mim e para a minha mãe que sentia muito, mas estava na cara que eles não sentiam porcaria nenhuma, estava escrito nas fuças deles, não sentiam nada, e que espécie de gente vai dizer para uma mulher que ela ficou viúva e para o filho dela que ele agora é órfão levando consigo três capangas com rifles Spencer e sequer tem a delicadeza de apear do cavalo e tirar o chapéu? Ele contou que o rancheiro que tinha ido com o meu pai negociar o gado, o sr. Burdette, voltou naquela manhã do Kansas dizendo que, durante um carteado num saloon de Abilene, as coisas se precipitaram (foi essa a palavra que o sr. McGee usou), alguém fez ou disse uma coisa que não devia, o outro respondeu e daí a senhora já viu, homens sacando armas e atirando por conta de duas ou três palavras mal escolhidas.
“O mundo é um diacho de lugar perigoso”, disse o sr. McGee e cuspiu de lado, quase acertando a bota do capanga que estava à sua direita.
Sem tirar o chapéu, ele repetiu que sentia muito, muito mesmo, que agora as diferenças que ele tinha com o meu pai não importavam mais, e que o meu pai era um bom sujeito, um sujeito dos mais decentes, do tipo que quase não se encontra mais por aí, e que era uma pena ele ter se deixado levar daquele jeito, morrer numa briga de saloon por conta de um carteado, que desperdício, que estupidez, e agora a mulher dele era viúva e o filho dele ia crescer sem pai, que Deus Todo-Poderoso nos protegesse do Mal que grassa por essa terra selvagem em que a vida vale tão pouco, não é mesmo?
Ele disse essas coisas todas olhando não para mim ou para a minha mãe, mas por sobre as nossas cabeças, para o rancho atrás de nós e a fumaça que saía pela chaminé, e depois se aprumou na sela, endireitou o corpo e só então me encarou, embora não falasse comigo, mas com a minha mãe:
“Mas talvez essa desgraça toda seja pro bem. Talvez a senhora tenha a cabeça no lugar a aceite a minha oferta. A senhora sabe, todo mundo sabe, é uma oferta justa, não, mais do que justa, generosa. A senhora pode pegar esse dinheiro e levar o garoto prum lugar mais tranquilo, lá pros lados do leste, daí ele cresce em paz e quem sabe até não estuda pra virar um doutor ou coisa parecida, não?”
Falou e não esperou resposta, foi logo indo embora com os capangas, cavalgando cada vez mais rápido.
Minha mãe ficou um bom tempo ali junto à cerca, sem se mexer, olhando fixo na direção que o sr. McGee e os capangas tinham tomado, como se adivinhasse o nosso futuro nas formas que a poeira levantada pelos cavalos assumia. Ela não parecia triste ou com raiva. Tinha no rosto a mesma expressão dura, de quem sempre espera pelo pior porque o pior é só o que vem.
Quando falou comigo, não se virou: “O que é que você está esperando pra dar de comer aos porcos? Seu pai se levantar da cova em que meteram ele lá no Kansas e vir aqui te dar uma surra?”.
Dei de comer aos porcos e, depois, quando entrei em casa, a janta já estava na mesa. Minha mãe estava sentada junto do fogão com os braços cruzados e toda encolhida. A lenha crepitava. Pensei que ela estava chorando e fiquei parado, sem saber o que fazer. Eu mesmo vinha sentindo vontade de chorar pelo meu pai, mas era como se não fosse verdade, como se ele fosse entrar pela porta a qualquer momento, todo empoeirado e cheio de histórias da viagem.
Muito ruim não velar, não enterrar, não se despedir. Muito ruim.
A cabeça dela pendia para um lado e, quando vi que não chorava, pensei que talvez estivesse cochilando. Tentei me lembrar de quando a tinha visto cochilar assim, mas não consegui. Acho que nunca vi a minha mãe sequer dormindo, estava sempre acordada, andando de um lado para o outro, cuidando do que quer que fosse. Agora, ela não se mexia.
Talvez estivesse morta.
Ela e meu pai, então. Junto com ele.
Abri a boca para dizer o nome dela, mas o som de um cavalo se aproximando fez com que levantasse a cabeça.
“E agora o quê?”, resmungou descruzando os braços.
Era o sr. Burdette, logo posto para dentro. Ele se sentou com a gente, mas tratou de recusar o jantar dizendo que estava gordo demais. De fato, sua barriga parecia maior a cada dia, como se estivesse esperando uma criança. Aceitou uma caneca de café e contou o que tinha acontecido lá no Kansas, ressaltando não estar presente no momento da briga e confirmando a versão do sr. McGee. Minha mãe, então, perguntou onde é que ele estava quando se deu a confusão.
“Cuidando dos cavalos. A gente revezava. Ele cuidou na noite anterior, então eu devia cuidar naquela noite.”
“Você ficou cuidando dos cavalos e ele foi jogar cartas?”
“Foi, sim, senhora. E, como eu disse, eu não estava lá, ia encontrar com ele quando terminasse os afazeres, mas quem estava disse que foi tudo muito estranho.”
“Estranho? Estranho como?”
O sr. Burdette respirou fundo e olhou para mim como se me visse pela primeira vez. Arregalou os olhos por um segundo, como se estivesse assustado com a minha presença. Na verdade, foi só então que, ao prestar atenção em mim, ele parecia se dar conta do tamanho da desgraça. “Ai meu Deus”, suspirou.
“Estranho como?”, minha mãe repetiu, firme.
“Bem”, ele se recompôs, “o sujeito com quem ele estava jogando, um dos sujeitos, um camarada que depois, bem… esse sujeito era um forasteiro e não parecia boa coisa, não, senhora.”
“Por quê?”
“Ele trapaceava e provocava todo mundo, mas principalmente o nosso amigo. E o pessoal que estava lá, que acompanhou tudo, ficou dizendo depois que ele fazia isso como que de propósito, sabe? Como se tivesse ido lá só pra fazer isso, puxar briga.”
“E o que foi que aconteceu depois?”
“Bem, ele aguentou até onde deu. Eu estava lá fora e só ouvi os tiros.”
“Quantos?”, perguntei.
“Três tiros. Seu pai deu o primeiro e errou. Ele nunca foi pistoleiro, né? Nunca foi bom nisso. Ele deu o primeiro e errou e levou os outros dois tiros.”
As mãos da minha mãe estavam sobre a mesa e tremeram. Ela as escondeu.

2.
Chegou na manhã seguinte.
Se a minha mãe rezasse, eu diria que era uma resposta às preces dela. Mas ela não rezava, nunca.
Eu estava pegando um pouco de lenha e a minha mãe estendia uns lençóis enquanto provavelmente matutava sobre o que o sr. Burdette tinha dito na noite anterior ao se despedir:
“Acho que vocês deviam aceitar a oferta do sr. McGee, pegar o dinheiro e recomeçar a vida noutro lugar.”
Ele falou essas coisas logo depois de colocar a parte que cabia ao meu pai pela venda do gado em cima da mesa e se levantar reclamando da coluna. “Estou velho e gordo demais pra fazer essas viagens.”
A gente só deu pela presença dele quando já se aproximava da cerca. Parou e olhou para mim e depois para a minha mãe. Tinha uns olhos estreitos, como os de um desses chinas que trabalhavam nas ferrovias, e a cabeça redonda. A imundície de suas roupas e de seu corpo denunciava o quanto tinha viajado, e eu não teria ficado surpreso se ele dissesse que vinha desde o outro mar, no leste, cavalgando dia e noite, sem parar.
Como se o conhecesse, como se fosse um parente distante passando para uma visita, minha mãe se aproximou e disse para ele apear, que se lavasse e comesse alguma coisa, o cavalo também precisava de um descanso.
Fui dar de comer ao cavalo enquanto ele a minha mãe ficaram de conversa ali junto do tanque. Vi ele mergulhar a cabeça na água e ouvi qualquer coisa sobre o meu pai e as terras. Minha mãe falava daquele jeito dela, bem direto, sem enrolar, e eu pensei que estivesse oferecendo trabalho ou coisa parecida. Ouvi ela dizendo “vinte dólares” e homem dizendo “não, senhora”.
Foi a única coisa que ouvi dele naquele momento.
Tirou a camisa e jogava água nos ombros e no peito. Minha mãe falava e falava. Acho que nunca a vi falar tanto. Levei o cavalo para os fundos antes que ela me visse por ali e ralhasse comigo.
Quando, duas horas depois, a gente se sentou para almoçar, perguntei qual era o nome dele e de onde vinha e minha mãe mandou que eu deixasse o homem em paz, ele estava cansado e não precisava de mim e das minhas perguntas. Como se não a tivesse ouvido, o homem disse que seu nome era Bronson e vinha lá da Pensilvânia, do Condado de Cambria. Eu não sabia onde ficava a Pensilvânia, mas com certeza ia procurar no mapa que o velho Holmes tinha pregado numa das paredes do armazém na próxima vez que fosse até a cidade.
Eu queria perguntar mais coisas, para onde estava indo, se sabia o que tinha acontecido com o meu pai, o que a minha mãe tinha falado, se ia ficar com a gente e ajudar na lida, se o rifle preso na sela do cavalo era um Winchester, mas fiquei calado, não queria que a mãe ralhasse comigo outra vez.
Quando a refeição estava perto do fim, ouvimos o velho som de cavalos se aproximando. Minha mãe repetiu o que tinha dito na noite anterior: “E agora o quê?”.
Eram os três capangas do sr. McGee.
Minha mãe, o sr. Bronson e eu saímos da casa, o sr. Bronson um pouco atrás, as mãos assim bem junto do corpo: eu não vi quando, ao se levantar da mesa, ele alcançou e recolocou o cinturão com as duas pistolas Colt que tinha deixado no encosto da cadeira, pendurado.
Os três sujeitos olharam para o sr. Bronson assim como se o medissem e depois se entreolharam. Um deles se adiantou e perguntou para a minha mãe, sem tirar os olhos do sr. Bronson, se ela tinha alguma resposta.
“Resposta pra quê?”
“O sr. McGee quer uma resposta”, o sujeito se limitou a dizer.
Minha mãe não disse nada.
O sr. Bronson deu um passo adiante e parou junto dela. Os três sujeitos se entreolharam de novo.
O ar estava parado, sem vento nenhum.
O mesmo sujeito que tinha falado com a minha mãe agora se voltou para o sr. Bronson: “Qual é a sua história?”.
“Nenhuma.”
“O que é que você quer por aqui?”
“Nada.”
“Pra onde é que vai?”
“Oeste.”
“Aqui é o oeste.”
“Mais pro oeste.”
“Não tem mais nada pra lá.”
“Ouvir dizer que tem, sim.”
“Vai se jogar no mar?”
Os três caíram na gargalhada, mas foi um riso nervoso, atravancado.
O sr. Bronson ficou ali parado na frente deles, como se esperasse que os três parassem de rir e fizessem alguma coisa.
Eles pararam de rir.
Os cavalos parece que adivinharam o que estava por vir, porque relincharam bem alto e deram uns passos para trás.
“Vai pra dentro”, minha mãe disse para mim enquanto o sr. Bronson tomava a frente dela com um passo decidido.
Ela veio para junto de mim e me empurrou para dentro de casa e depois entrou também.
“Quer acabar como o marido dela?”, ainda ouvi um dos sujeitos perguntar.
O sr. Bronson não disse mais nada.

"Leviatã" (e ainda "Aquarius")

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A verdade é que, de uns tempos para cá, eu mais revejo do que vejo filmes. Assim, tem muita coisa boa que estreou nos últimos anos e que só tardiamente vou assuntando. Sem problemas. O que é bom tende a ficar, e hoje em dia o acesso a quaisquer cinematografias fica a dois ou três cliques de distância.

Ontem, por exemplo, vi o multipremiado Leviatã, de Andrey Zvyagintsev. Este excelente filme russo teve o efeito de tornar Aquarius ainda menor às minhas retinas. É sobre uma expropriação criminosa, para a qual convergem o poder secular (representado por um prefeito e outros criminosos) e o poder religioso (que faz vistas grossas às práticas do político, por um lado, e é incapaz de oferecer consolo àquele que ferram, por outro). Ou seja, o filme explora com propriedade alguns dos piores aspectos da sociedade russa, tão similar à brasileira no que tange à corrupção e à violência. E não para por aí.

Zvyagintsev cria um potente drama familiar a partir da relação entre o protagonista, um mecânico, seu filho e a esposa (madrasta do menino), tumultuada pela presença de um quarto personagem. Este é um velho companheiro que atua como advogado na disputa relativa à expropriação. Eles estão apanhando no processo, quando surge a ideia de chantagear o prefeito.

No melhor espírito russo de (auto)aniquilamento, cada passo os leva um pouco mais perto do penhasco, e lá embaixo só há o mar Barents e as pedras castigadas por suas ondas. Recorrendo a Jó (40, 25): “Poderás pescar o Leviatã com anzol e atar-lhe a língua com uma corda?”. Não mesmo, queridos.

Vendo Leviatã, foi impossível não pensar em Aquarius. No lugar da explicitação estereotipada do conflito, tão porcamente desenvolvido no longa brasileiro, Zvyagintsev nos apresenta circunstâncias que nada têm de óbvias. O mecânico é sacaneado pelas autoridades, é claro, mas há uma teia de conflitos, interesses e anseios tão grande, envolvendo esposa, filho e amigos, que a narrativa se torna escorregadia. A crescente complexidade de cada situação e cada personagem contribui para que o filme adquira esse caráter elusivo.

Assim, o roteiro escapa do didatismo que corrói Aquarius por dentro, feito cupins. Leviatã é elíptico, permite que os personagens circulem e nós com eles, quando nos é dado conhecê-los um pouco e aos poucos. As lacunas e a forma como elas são eventualmente preenchidas (ou não) alimentam a referida complexidade do todo, evitam a identificação fácil com este ou aquele indivíduo e, acima de tudo, tornam ainda mais inclemente o clímax, que nada tem daquela patacoada pretensamente catártica e ideologicamente ingênua, “engajada” e risível do filme de Kleber Mendonça Filho.

E a questão, aqui, nem é propriamente política (embora passe por aí), mas, antes, de construção fílmica mesmo. É impossível que não haja contaminação ideológica, à direita, à esquerda, ambidestra ou por omissão, uma vez que (conforme Godard) o próprio ato de filmar é, em si, político. Fica a cargo do realizador trabalhar tal contaminação com inteligência, colocando-a a serviço do filme, se for o caso, e não o filme a serviço dela.

Leviatã nos diz muito da Rússia, mas, sobretudo, fala de e para nós a um nível essencial e brutalmente humano. Aquarius também nos diz muito do Brasil, mas o faz meio que sem querer, na medida em que, a exemplo do país, é um projeto malogrado pela preguiça e pela burrice.

Uma mesa muito velha, devorada por cupins

Aquarius

Há poucos anos, quando vi O Som ao Redor, longa de estreia de Kleber Mendonça Filho, escrevi sobre a sutileza daquele filme, sobre como ele desvelava (em vez de pontificar, discursar, panfletar) alguns aspectos do apartheid brasileiro e passeava, na maior parte do tempo de maneira invulgar, por esse enorme fosso em que todos vivemos. Infelizmente, não é possível dizer o mesmo do novo trabalho do diretor, Aquarius. Neste, é como se houvesse dois filmes em um, ou a tentativa frustrada de fazer confluir um e outro a partir de um esboroante chão comum: o da memória.

O espaço da memória é simbolizado menos pelo edifício-título (um prédio antigo localizado na Praia de Boa Viagem, no Recife) e mais pela relação da protagonista (Sônia Braga), única e última moradora, com tudo aquilo que o lugar diz e/ou deveria dizer para ela e seus familiares, vivos ou mortos. Há uma teia relacional, cujos fios muitas vezes estrangulam quem se prende a ela, mas que, não raro, sustentam aqueles que se aproximam do mergulho derradeiro.

A essa teia relacional, ou antes ao modo como ela é tecida, corresponde o que o filme tem de bom. É KMF trabalhando com inteligência. Desde a bela sequência de abertura, ele recria audiovisualmente (isto é um filme, caralho!) o lugar da memória, inclusive e/ou sobretudo ao sublinhar uma série de ausências. Tome-se como exemplo o olhar que a velha aniversariante lança para uma cômoda, e a inserção que se segue, não de algo que ela tivesse guardado ali, cartas, um diário, fotografias, nada disso, mas, sim, da lembrança de uma trepada com alguém que já não está. A memória é um tal esforço para, ausentando-se, presentificar-se uma vez mais, mesmo que precariamente. Isto nós vemos.

A dança com fantasmas é animada pelo ótimo uso da trilha-sonora e devassada por uma câmera que, na maior parte do tempo, movimenta-se conforme a protagonista. O filme é da personagem (logo, da atriz), seus olhos conduzem o passeio e este se lança para trás, sublinhando aquela presença que se/nos ausenta (e vice-versa) típica da rememoração.

O que o filme tem de pior diz respeito ao prédio-título e à luta da protagonista para não deixá-lo. Há uma construtora que tenta forçá-la a vender o apartamento. Querem derrubar o edifício para construir outro, maior, mais “moderno” etc. e tal. A mulher se recusa, não obstante a pressão que passa a sofrer de todos os lados. Os “vilões” partem para o ataque. Ela resiste.

Ressalte-se: o tema é de enorme importância e se liga diretamente àquele primeiro aspecto, da relação com a memória e tudo o mais. O problema, então, é a forma como KMF trabalha determinadas cenas. A sutileza cede lugar para situações-laboratório e discursos travestidos de diálogos. A caracterização desses “vilões” é caricata, expondo uma espécie de preconceito às avessas; eles são os Incorporadores do Mal que não hesitarão em recorrer a coisas terríveis como bacanais barulhentos, cultos evangélicos e cupins para conseguir o que querem. Eles são passivos-agressivos (sic) que só se preocupam com dinheiro — e o termo é usado como se fosse um palavrão: dinheiro, diz, com nojinho, a protagonista.

Assim, a complexa incursão original é barateada, dando lugar a uma investida simplória e estereotipada contra a selvageria do capital. Após construir com cuidado a teia de relações da personagem com os lugares (pretéritos e presentes, físicos e não), KMF coloca tudo a perder com cenas mal ajambradas de embate com os homens malvados. O confronto na garagem (após a queima dos colchões usados na suruba) e o suposto clímax na construtora (catarse!) são tão constrangedores que parecem ter sido dirigidos via WhatsApp, enquanto o diretor depredava uma agência do Bradesco e corria da polícia no centro da cidade.

Em resumo, o saldo final é negativo. A sofisticação inicial de sua construção redunda em uma simplificação canhestra, no conflito entre protagonista (boa, íntegra) e antagonista (rico, logo mau). A desinteligência de tal escolha corrói o que foi tecido antes, e Aquarius desaba como uma mesa muito velha, cujos pés foram devorados por cupins.