A amarga busca dos desterrados

A amarga busca dos desterrados

Resenha publicada no Estadão em 16.06.2012.

krauss

 

A memória de nossas memórias, terceiro romance da norte-americana Nicole Krauss, é estruturado a partir de cinco narradores dispersos no tempo, no espaço e em si mesmos. De certa forma, o livro é um acúmulo de situações vividas por desterrados ou que aludem, direta ou indiretamente, ao desterro. A conexão entre a maior parte dos personagens é feita por um objeto, uma escrivaninha que atravessa o século 20 como a própria seta ensanguentada do tempo. Convém ressaltar que, felizmente, Krauss não esboça coincidências absurdas nem força encontros inesperados entre essas pessoas. Aqui, os desencontros é que dão o tom.

Há uma descontinuidade inerente a cada uma das circunstâncias evocadas por essas vozes e a elas próprias, que dão voltas, lançam-se ao passado, tergiversam, escondem-se, revelam-se e por vezes se calam. Há coisas sobre as quais não se pode, não é possível falar. Ou, como diz um dos narradores a certa altura, “as histórias eram sempre deixadas incompletas, alguma coisa em sua atmosfera fugidia e inexplicada”.

A escrivaninha simboliza e, em alguns casos, ocupa o lugar do passado trevoso em um presente condenado à incompletude. Com suas várias gavetas, uma delas sempre trancada, é a própria imagem do desterro, da orfandade, de todas as coisas que não conseguimos verbalizar ou conferir significado. Logo no começo do romance, ela é confiada a Nadia, uma reclusa escritora nova-iorquina, por Daniel, um jovem poeta chileno. A ideia é que ele volte para buscá-la, mas isso não acontece. No decorrer dos anos seguintes, Nadia escreverá seus romances sentada à escrivaninha. Eventualmente, descobrirá que Daniel nunca retornou porque fora preso, torturado e assassinado na ditadura de Augusto Pinochet.

Na Inglaterra, Arthur, o viúvo de outra escritora, ela própria dona da escrivaninha por anos, tenta iluminar alguns fatos da vida da esposa. A investigação, mais do que respostas, traz novas dúvidas e inquietações. Sobrevivente do Holocausto, ela optara por se calar a respeito. O viúvo evoca a imagem de seu quarto de solteira, ocupado quase que inteiramente por aquela escrivaninha – a metáfora para o que ela deixou e, sobretudo, para o que ela não deixou para trás. “Você tem de entender que na vida de Lotte”, ele conta, “uma vida reduzida para caber no menor espaço possível, não havia quase nenhum traço de seu passado. Nem fotografias, nem lembranças, nem heranças. Nem mesmo cartas, ou nenhuma que eu tenha visto.” Exceção feita à escrivaninha.

Outra “vida reduzida para caber no menor espaço possível” é a do antiquário Weisz, dedicado a recuperar móveis perdidos por pessoas que, como ele, sobreviveram ao Holocausto. Ele próprio faz de tudo para reconstituir os objetos perdidos por sua família e, assim, tenta recuperar algo que, no fundo, sabe que é irrecuperável, que se perdeu para sempre. Aqui, a mesma escrivaninha – ou a sua ausência – terá um papel dos mais importantes. A questão é a mesma, desse móvel como símbolo do passado e de sua devastação, a ponto de a memória, para o antiquário e outros personagens, ser mais real, “mais precisa do que a vida que vive, que se torna mais e mais vaga”.

Sem ligação direta com a escrivaninha, temos outro narrador, Aaron, um velho advogado israelense. Também viúvo, dirige-se a um dos filhos, Dov, em uma tentativa dolorosa de aproximação, de decifrar o silêncio em que ele se enredou. Dono de uma sensibilidade aguda, Dov queria ser escritor mas, devastado pelo que passou na Guerra do Yom Kippur, renunciou à escrita e ao país, mudando-se para a Inglaterra, distanciando-se da família e investindo na carreira jurídica.

No entanto, uma história concebida por Dov antes de ter o espírito esmigalhado pela guerra talvez nos ofereça uma bela maneira de pensar o próprio romance, tratá-lo como uma narrativa sobre pessoas “deitadas em quartos, ligadas por um sistema de eletrodos e cabos a um grande tubarão branco. A noite toda o tubarão, suspenso num tanque iluminado, sonha os sonhos dessas pessoas. Não, não os sonhos, os pesadelos, as coisas difíceis demais para suportar. Então elas dormem e através dos cabos as coisas apavorantes saem delas e vão para o peixe assombroso com a pele cheia de cicatrizes capaz de suportar a desgraça acumulada”. O livro seria o tubarão, e narrar, uma forma possível de catalisar os pesadelos, de suportá-los e de suportar o que se viveu.

Já perto do fim, Weisz narra sua chegada a Israel, aportando em Haifa, no Norte do país. Ali, viu uma mulher que “beijava o chão seco, chorando. Talvez tivesse encontrado sua própria sombra debaixo de outra pedra”. É o que temos em A memória de nossas memórias: seres humanos revirando pedras e procurando incessantemente pela própria sombra e, em alguns casos (como o de Arthur e o de outra narradora, Isabel), buscando a sombra fugidia do outro. No fim das contas, somos todos desterrados.

“I want to realize too late I never should have left New Jersey.”

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=08fqHr_KGPY&w=560&h=315]

Esta é do segundo álbum da banda Titus Andronicus, The Monitor, lançado em 2010. Lançaram outros dois desde então, tão excelentes quanto (sendo que o quarto, The most lamentable tragedy, é uma tremenda ópera-rock sobre a depressão), mas, em The Monitor, há qualquer coisa assim trevosa que prefigura a década que nascia então, ao mesmo tempo em que se volta para a anterior e mija furiosamente em seu cadáver. Trata-se de um álbum conceitual, que evoca a Guerra da Secessão para discorrer sobre a vida besta & suburbana no seio de uma economia fraturada. New Jersey faz as vezes de uma Ítaca arruinada,  lar de uma caralhada de Odisseus que nunca foram a Troia.

À espera de Le Pen

Trecho de Ravelstein, de Saul Bellow:

As coisas não chegam a acontecer se não acontecem em Paris, ou se Paris não fica sabendo. Aquela velha fornalha em erupção, Balzac, estabeleceu que isso era um princípio. O que Paris não havia examinado nem mesmo existia.
É claro que Ravelstein conhecia demais o mundo moderno para concordar com isso. (…) A França, que pena, não era mais o centro do julgamento, das luzes. A França não era o lar do ciberespaço. Não atraía mais os grandes intelectuais do mundo e todo o resto do schtuss cultural. A França tinha tido sua época. De Gaulle, a girafa humana bufando. Churchill dizendo sobre ele que a ofensa da Inglaterra tinha sido ajudar la France. A imponente criatura militar observando a copa das árvores do mundo moderno não podia aceitar a ideia de que seu país precisava de ajuda.
A mente de Abe nunca ficava sem citações para preencher as lacunas ou para documentar a época. “‘A França sem um exército não é a França’ — Churchill de novo.” O meu gosto para conversas era parecido. Eu não conseguia fazer o mesmo, mas adorava ouvir quem conseguia. Ravelstein era infinitamente melhor nisso. Ele tinha um talento especial pela Grande Política. Nesse sentido, é claro, a França hoje estava falida. Só restava o hábito, e eles faziam o máximo que podiam com isso mas estavam blefando, e sabiam que estavam falando bobagem. (…)

Em A Conexão Belarossa. Tradução de Caetano & Rogério Galindo. Cia. das Letras, 2015.

Sunny Jim

Resenha publicada no Estadão em 16.04.2014.

Finns

Antes de abordar Finn’s Hotel, e até para esclarecermos seu título, falemos um pouco sobre Nora Barnacle, a moça de Galway que fugiu de casa depois de levar uma surra de um tio, pois teria se engraçado com um rapaz protestante. Ela arranjou trabalho como camareira no Finn’s Hotel, em Dublin. Tinha vinte anos de idade. No dia 10 de junho de 1904, quando descia a Nassau Street com seus sapatos rasgados, esbarrou no dublinense James Joyce, nos seus vinte e dois anos. Papearam um pouco; ele foi fisgado. Veio, então, a noite de 16 de junho, quando as carícias dela (não chegaram às vias de fato na ocasião) teriam “feito dele um homem”. Não por acaso, o Ulysses é situado em 16 de junho de 1904 (e na madrugada seguinte). Nora passou o resto da vida com Joyce, boa parte dela no exílio, Trieste, Zurique, Paris, e eles tiveram um casal de filhos. Uma vida repleta de dificuldades, em que a única coisa estável parecia ser a entrega irresoluta dele ao trabalho.

Os frutos desse trabalho estão entre os mais geniais já produzidos em literatura e encerram uma complexidade crescente, desde, por exemplo, os contos de Dublinenses até o Finnegans Wake, passando por Um Retrato do Artista Quando Jovem e, claro, pelo Ulysses. Qualquer tentativa de abarcar uma obra tão monumental restaria incompleta, mas Joyce poderia ser descrito como uma espécie de besta mitológica que se alimentasse de Dublin e da Irlanda para gestar, literariamente, um outro país. E não foram gestações simples, pelo contrário: antes do Retrato, por exemplo, temos Stephen Herói; antes do Ulysses, há Giacomo Joyce; e, finalmente, antes do Finnegans Wake, eis que nos aparece Finn’s Hotel.

Os dez episódios editados sob o título Finn’s Hotel pelo scholar Danis Rose foram, em sua maioria, descobertos décadas atrás entre os manuscritos de Joyce, mas só publicados há pouco tempo por conta de desavenças judiciais com os herdeiros (a obra do autor só entrou em domínio público recentemente) e, o que pode ser bem mais brutal, discordâncias entre os estudiosos. Joyce os teria escrito em 1923, após terminar o Ulysses e antes de começar propriamente a lidar com o Finnegans. Para alguns, eles não constituiriam uma obra independente. Rose, contudo, acredita que eles se sustentam sozinhos. Seja como for, o melhor talvez seja deixarmos toda essa discussão genética com os afáveis acadêmicos e nos concentrarmos nos dez nacos de altíssima prosa reunidos no volume (o qual também traz uma nova tradução do Giacomo Joyce).

Uma vez que São Patrício chegou à Irlanda há coisa de um milênio e meio, é justamente esse o período coberto por Joyce no que ele chamou de “epiquetos”. Ele se fixa em paisagens tanto míticas quanto históricas da formação do país e o faz por meio de uma enorme diversidade estilística.

Seus procedimentos envolvem inversões, reimaginações (do mito de Tristão e Isolda em O Grande Beijo), paródias (Berkeley e Patrício irrompem juntos logo no primeiro episódio, A Tintinjoss de Irlanda), sacaneadas (com o eremita Kevin de Glendalough em Bondade com Peixinhos: “Ele simplesmente não tinha tempo para moças ou coisas e sempre dizia à caríssima mãe e às caras irmãs como o quanto a caríssima mãe e as caras irmãs lhe bastavam e pronto”) e, bem, mais sacaneadas (“Para qualquer um que tenha conhecido e amado a Cristicidade do grande gigante mentelimpa H. C. Earwicker durante toda sua longa existência, a mera sugestão de que seria ele um fuçaluxúrias à cata de mauscaminhos caídos em suas armadilhas soa particularmente patusca”, em Homem Comum Enfim).

Há motivos, vozes, situações e personagens aos quais ele retornaria selvagemente no Finnegans Wake. Logo, as preciosidades de Finn’s Hotel envolvem tanto um vislumbre da gênese de sua obra-prima mais radical quanto uma amostra razoavelmente acessível, ensolarada e divertida da prosa de James Joyce.

Todos os dias, nós todos

Para a Kelly, meu riocorrente.

tom-hunter

Introibo.

Para um estudo centrado no sexto capítulo do Ulysses de James Joyce (e no trecho correspondente da Odisseia de Homero), sugiro que leiam Hades, Glasnevin. Aqui, não me limito aos muros daquele cemitério, embora ainda esteja (em parte) preso à extensão do domínio da morte.

1. “Mamãe morrendo, volte.”

May Joyce sofreu uma morte lenta, terrível. A orfandade de seu filho James se refletiria na orfandade de Stephen Dedalus. Ambos, autor e personagem, não se ajoelharam junto ao leito de morte, negaram-se a rezar com e por suas respectivas mães, a rezar por eles todos.
“Mamãe morrendo, volte”, dizia o telegrama recebido por James em Paris. Sobre o falecimento de May, escreve Edna O’Brien (pág. 29):

A lenta morte da mãe, com câncer, é um tableau de crueldade e melodrama, e mais um movimento definitivo na vida do jovem obcecado. As roupas mortuárias marrons na cadeira ao lado, ela colhia imaginários botões-de-ouro na colcha e falava com voz errante a um médico que não estava presente. (…) O irmão de May implorava a James e a Stanislaus que se ajoelhassem ao lado da moribunda e prometessem confessar-se e comungar, como parte dos deveres da Páscoa, mas nenhum deles se submetia. (…).

Odisseu desce ao Hades para ter com Tirésias. Estamos no décimo-primeiro canto da Odisseia. Ele quer saber se conseguirá regressar a Ítaca. Depois de Tirésias lhe assegurar que sim e dar alguns conselhos valiosos (por exemplo: mantenha distância das vacas e ovelhas de Hélio-Sol), Odisseu fala com alguns de seus companheiros da Guerra de Troia, como Agamêmnon e o próprio Aquiles.  “‘(…) Odisseu divino / Laércio multissinuoso e temerário, / que empresa mais audaz pudeste cogitar? / Como ousaste baixar ao Hades, onde os mortos / restam vazios de tino, imagens de alijados?'”, diz Aquiles a Odisseu (XI, 471-476).
O reencontro mais pungente, contudo, é com sua mãe, Anticleia.
Odisseu pergunta a Anticleia como morreu (pois, ao partir para Troia, ela ainda vivia): “‘(…) Peço sejas clara: Quere, a Morte, / como ela te domou? Moléstia renitente? Ou Ártemis flecheira, com seus dardos sacros, / te fulminou? (…)'” (XI, 170-171). Penso em James lendo essa passagem e pensando na mãe; em Dedalus lendo essa passagem e pensando na mãe. Moléstia renitente. O Ulysses tem também a profundeza e o peso da morte materna. Ele carrega isso. É algo inscrito nele. É um livro único em seu abandono de órfão: é evidente desde o título a sua ascendência, mas é evidente, também (na medida em que Odisseu se lança ao Hades e se depara com Anticleia), o modo como a orfandade é um de seus motores.
Anticleia diz ter morrido por culpa da ausência do filho: “‘Não foram dardos hábeis da flecheira a me / ferirem mortalmente, nem alguma doença / que amiúde tolhe a vida com definamento / estígio, mas não ter a ti, teus pensamentos / agudos, Odisseu ilustre, o mel da ânima / que me afagava, eis o que me roubou a vida.'” (XI, 198-203). Odisseu desce ao Hades para ouvir isso de sua mãe, que ela morreu porque ele estava fora. A mãe de Joyce, incapaz de dobrá-lo em vida, continuará presente para entortá-lo e atormentá-lo, obrigando-o a também se lançar nas profundezas desse abismo de culpa. E ele se lança por meio de Stephen, que também se recusou a ajoelhar.
Logo no primeiro capítulo do Ulysses, Stephen ouve de Mulligan: “Tem alguma coisa sinistra em você…” (pág. 100). Não é apenas o gesto (ou a recusa do gesto), mas a própria orfandade e a culpa que ele carrega, como se tivesse também ouvido, a exemplo de Odisseu: tua ausência me matou. Mas a desgraça é que Dedalus esteve lá, ao pé da cama, não se submetendo. Ele esteve lá e continua ali, naquela manhã de 16 de junho de 1904, fitando a manga preta do casaco enquanto: “(…) Dor, que não era ainda a dor do amor, roía-lhe o coração. Calada, em um sonho ela viera a ele após a morte, o corpo gasto na larga mortalha marrom exalando um odor de cera e de jacarandá, o hálito, que se tinha curvado sobre ele, mudo, reprovador, um vago odor de cinzas úmidas. (…)” (pág. 100).
James e Stephen não mataram suas mães, e tampouco fizeram como Odisseu e desceram ao Hades para ter com elas. Noutra dessas inversões geniais do Ulysses, a mãe é que traz consigo o Hades quando retorna, e retorna para devorar o filho em vida.

2. Ascensão do Hades.

No sexto capítulo do Ulysses, Leopold Bloom toma parte de um cortejo até o cemitério. Paddy Dignam morreu. Precisam enterrá-lo: “(…) Um sujeito podia viver com a sua solidão a vida inteira. Podia, sim. Ainda assim ele ia precisar de alguém pra tapar a cova quando ele morrer mesmo que cavar ele consiga sozinho. Nós todos. Só o homem enterra. Não as formigas também. Primeira coisa que todo mundo pensa. Enterrar os mortos” (p. 237).
Bloom está rodeado por mortos. A medida de um homem também é dada por seus mortos. Bloom perdeu o pai e um filho. O pai se matou. O filho, Rudy, morreu ainda bebê. Ambos acompanham Bloom até o cemitério e também esperam por ele ali. Ambos o acompanham por toda parte, sobretudo Rudy. Vivemos à sombra dos que partiram porque nos sabemos lançados nesse sentido, também. Bloom, ao menos, parece saber. É como um lembrete dos mais dolorosos. Os que partiram.
Sobre a morte do pai: “Aquela tarde do inquérito. O frasco de rótulo vermelho em cima da mesa. O quarto do hotel com os quadros de caça. Abafado que estava. O sol pelas frestas da veneziana. As orelhas do legista, grandes e peludas. O camareiro prestando testemunho. Pensei que ele estava dormindo primeiro. Aí eu vi como que uns riscos amarelos na cara dele. Tinha escorregado pro pé da cama. Veredito: intoxicação. Morte por desventura. A carta. Para meu filho Leopold” (p. 220).
Morte por desventura. E qual não seria? E qual vida, também? Há vidas melhores, claro. E mortes melhores, pelo que dizem. A morte de Dignam, por exemplo: “a melhor morte”, alguém diz, porque repentina, sem sofrimento. Tão repentina, talvez, quanto a vida inteira de Rudy. A vida surda de Rudy. Uma “caixa de pinho e forro branco” com seu “corpo de anão” (p. 218). “Não significava nada. Equívoco da natureza.” E, no entanto, significa tudo, posto que ressignifica a vida inteira de Bloom.
A dor contingenciadora da perda, o meio-dia escuro ensombrecendo o antes e o depois. Bloom segue vivendo, caminhando. Mas é um caminhar que eventualmente fraqueja em sua precariedade, sobretudo ao se perceber ali, cercado por túmulos, os cadáveres (seus e alheios) pendendo, de certa forma infensos à cabeça: “Jardins sombrios então vieram, um por um: sombrias casas” (p. 224); “Tons de morte pairando aqui com todos os mortos esticados em volta” (p. 235).
A descida ao Hades de Bloom não é bem uma descida, portanto, e pouco tem a ver (nesse sentido) com a descida de Odisseu. É o Hades que parece ascender até Bloom. Ele, contudo, não ouve ninguém (exceto a própria memória), não tem diante de si um Tirésias para vaticinar e aconselhar. Num dado momento, o sr. Dedalus (pai de Stephen) aponta para o túmulo da esposa e diz (p. 231): “Logo vou estar esticado com ela. Ele que venha me buscar quando quiser”. Pouco depois (p. 238), lemos: “A casa de um irlandês é o seu caixão”.
Mas Bloom, no meio da morte, encontra-se na vida (p. 235). O que há para ver ali é a própria precariedade refletida na precariedade alheia, sobretudo a do alheio que partiu. Em sua epopeia negativa, Joyce nos oferece a única morte possível para seu everyman Bloom: surda. Pois assim seguimos todos, “caindo num buraco, um depois do outro” (p. 239).

3. “Você já ouviu falar nisso?”

Hades é algo como a extensão do domínio da morte. Extensão móvel, claro. Você já ouviu falar nisso? Somente uma literatura como a de Joyce, uma literatura tão comprometida com a vida, pode se dar ao luxo de flanar tanto e com tamanha naturalidade pelo Hades. E, enquanto flanamos, o domínio cresce e decresce, sempre ao redor, atrás, à frente. Ele nos percorre e depois será percorrido por nós. Isso é obviamente incontornável.
Há uma passagem em Stephen Herói que diz muito a esse respeito. É a morte de Isabel, irmã de Stephen. Este “era muito solitário” e, quando não “andava a esmo pelas ruas” (p. 130), sentava-se ao piano: “(…) Os acordes que flutuavam na direção das teias de aranha e da sujeira e flutuavam futilmente na direção das janelas cobertas de pó eram as vozes sem sentido da sua perturbação, que tão-somente fluíam em inexpressiva sucessão pelas câmaras da sensibilidade. Ele respirava um ar de túmulos” (p. 131).
Certo dia, a mãe se aproxima e pergunta se ele “sabe alguma coisa sobre o corpo humano”. A voz da mãe é “a voz de um mensageiro numa peça de teatro” (lembremos do Seyton de Macbeth). A extensão, aquela, cresce e se acerca deles mais e mais. Diz a mãe (p. 132): “Tem alguma coisa saindo pelo buraco no… estômago… da Isabel. Você já ouviu falar nisso?”.
(Você já ouviu falar nisso? E quem não terá ouvido? Todos ouvimos, ouviremos.)
Pouco antes de morrer, Isabel torna-se uma mulher, “parecia ter envelhecido, o rosto se tornara o rosto de uma mulher”. Hades não esperaria tanto por Rudy, o filho de Bloom.
Assim, temos, de um lado, o “desperdício” (no entender de Stephen) que fora a vida da irmã, que “desfrutara de pouco mais que o fato da vida”, um “corpo esquálido que (…) tinha existido por resignação”, que “a nada se apegara, assim como nada a ele se apegara” (p. 133); e, de outro, o “equívoco da natureza” (no entender de Bloom) que teria sido Rudy, equívoco que, no entanto, configurou-se um rasgo contigenciador na existência de seu pai.
A morte de Isabel, embora ela “fosse quase uma estranha” para Stephen, na medida em que delimita o desperdício de sua (dela, Isabel) vida, também ilumina, por contraste, a dádiva intrínseca à vida enquanto tal. “(…) A vida lhe parecia uma dádiva; a asserção ‘Estou vivo’ parecia-lhe conter uma certeza satisfatória e muitas outras coisas consideradas indubitáveis pareciam-lhe incertas” (p. 133).
Stephen vive. Bloom vive. Molly vive. E é por meio deles que Joyce nos oferece algo como a extensão do domínio da vida.

4. A terceira Dublin

N’Um retrato do artista quando jovem (p. 213): “- Você é um homem terrível, Stevie – disse Davin, tirando o cachimbo curto da boca. – Sempre sozinho”.
Davin se autoproclama um nacionalista irlandês, no que é prontamente ridicularizado por Stephen. “Mas isso é bem você”, diz. “Você é um escarnecedor nato, Stevie.” Mas, por que tão sozinho?
Stephen não se enxerga como um everyman, embora também esteja na multidão. Flana por Dublin, ombro a ombro com outros tantos. Mas talvez seja ou venha a ou queira ser uma espécie de vertedor (p. 199).
Stephen é solitário demais para ser um irlandês. Percorre as ruas da cidade e os pavilhões da própria cabeça e não encontra nada além de si mesmo. Está entranhado demais na cidade e no país para percebê-los como os demais. “A Irlanda é a velha porca que come a sua ninhada”, diz a Davin (p. 215).
Stephen quer verter o veneno irlandês no ouvido adormecido da Irlanda. Diferentemente de Claudio, não cobiça o trono e a rainha. Almeja outra coisa, desnomeada, talvez inominável. E muito maior e perene.
No fim das contas, todos somos filhos “de entranhas exaustas” (p. 261). O que as exaustas entranhas de Dublin têm a oferecer para Stephen (e Joyce) é a possibilidade da projeção da cidade maior, recriada e sedimentada pela escrita, colocada ao alcance de todos por esse meio.
Mas, antes, as entranhas também exaustas de Joyce (e Stephen) precisam conseguir enxergar na cidade esse caráter transcendental (enquanto condição de possibilidade).
Antes de serem comidos por aquela velha porca, Stephoyce e Joyphen tratam de devorá-la.
Penso no resto existente entre a cidade real, efetivamente percorrida por eles, e a cidade literária, percorrida por nós. Não haveria uma terceira cidade, uma cidade indistinguível, lançada num limbo entre o concreto e a ficção? Talvez seja essa a cidade habitada por nós, impossibilitados de alcançar tanto uma quanto outra Dublin.
A Dublin que precariamente habitamos é uma Dublin provisória, emanação joyceana da Dublin real ou, ao menos, da Dublin de 16 de junho de 1904, cristalizada por ele conforme lhe apeteceu. Dado esse caráter de provisoriedade, a nossa Dublin precisa ser incessantemente atualizada. A atualização se faz percorrendo-a de novo e de novo e de novo.

5. “Ver o mundo imenso.”

Stephen Dedalus só se libertará da presença fantasmagórica e opressiva da mãe no décimo-quinto capítulo do Ulysses. É provavelmente uma libertação momentânea, mas notável pela forma como é narrada (um longo pesadelo teatral) e também pelo caráter marginal (dentro do capítulo) em que se dá. Marginal porque, em primeiro plano, na maior parte do tempo, temos outros confrontos fantasmagóricos protagonizados por Leopold Bloom.
Bloom e Dedalus se lançam na Mabbot Street, ao quarteirão dos puteiros, à “filoteologia pornosófica” (p. 669). Enxergando em Dedalus um Telêmaco particularmente desprotegido e muito bêbado, o Odisseu Bloom trata de acompanhá-lo na esbórnia a fim de impedir que seja depenado (Stephen recebera seus parcos rendimentos de professor pela manhã). Ali, Bloom se depara com o pai suicida, com a mãe, com Molly, sua Penélope, a lhe dizer (pág. 678): “Ah, Poldy, Poldy, você é um desgraçado de um estragaprazer! Vá ver a vida. Ver o mundo imenso”.
Assim como, na Odisseia, a feiticeira Circe transforma os homens de Odisseu em porcos, também Bloom é bestializado neste capítulo do Ulysses. E ele é bestializado não pela ação de outrem, mas pela sua própria memória, pelo que enlouquecidamente fantasia e, claro, pela culpa.
Joyce investe pesadamente no tom alucinatório, e Bloom se vê rodeado pelos seus mortos, por Molly, por várias outras mulheres do passado e do presente, como Gertie MacDowell, a quem “homenageara” mais cedo, em Sandymount (décimo-terceiro capítulo); uma empregada doméstica, Mary Driscoll, em cujas roupas teria “interferido” (p. 701); e a sra. Breen, que, confrontada com uma recordação (os dois sentados juntos, anos antes, numa festa, véspera de Natal), diz (p. 683): “Os caros dias mortos já perdidos na lembrança. A velha e doce canção do amor”.
A sra. Breen e Bloom seguirão juntos por um tempo, num passeio em que se esboça uma calorosa e dolorosa aceitação da passagem do tempo. Tal aceitação não perdura, claro. O único homem reconciliado com o passado é o morto. Bloom vive, está pelo “mundo imenso”. A sra. Breen desaparecerá com uma sucessão ansiosa de sims, como se timidamente antecipasse o monólogo orgásmico de Molly ao fim do romance.
Bloom está lançado no mundo imenso, e está só. Em seu delírio, funda Bloomusalém da Nova Hibérnia do Futuro (p. 727) para depois ser acossado (“O fetor judaicus é claríssimo”, p. 737; “Toda a Irlanda contra um!”, p. 793), emasculado, feminilizado, emprenhado (ele/ela “dá à luz oito filhos amarelos e brancos”, p. 739), escravizado (diz a “sólida caftina” Bella Cohen, tornada Bello: “(…) O que você desejava ansiosamente aconteceu. Daqui por diante você está emasculado e é meu completamente, uma coisa, subjugada. E agora teu vestido de castigo. (…)”, p. 783) e humilhado (diz Boylan, amante de Molly: “Você pode meter o olho na fechadura e brincar com a tua coisinha enquanto eu traço a senhora algumas vezes”, p. 816).
O que há para se ver no mundo imenso? Bloom vê a vida (interior, exterior, vivida, não-vivida, lembrada) e é dolorosamente visto por ela. O entranhamento alucinatório a que se submete é de uma honestidade estarrecedora. Ele se deixa ver. Ele se vê. É, para todos os efeitos, um homem feito, consciente do que é feito de si. Está aberto para o mundo. E, de certa forma, em sua humanidade extrema (reles, comum, anônima), abre o mundo para nós.

6. Non serviam.

Seguimos pelo décimo-quinto capítulo do Ulysses. Na descida aos puteiros, Stephen Dedalus se depara com a mãe. Em sua fantasmagoria, contudo, ela não prescinde de toda a glória da putrefação. Em Joyce, até mesmo os espíritos rescendem a carne apodrecida. A imanência é uma paisagem de túmulos.

(A mãe de Stephen, emaciada, surge hirta pelo piso de cinza leproso com uma guirlanda de murcha flordelaranjeira e um véu nupcial rasgado, rosto gasto e desnarizado, verde do mofotumular. Seu cabelo é ralo e liso. Ela fixa suas órbitas ocas contornazuladas em Stephen e abre a boca desdentada enunciando silente palavra. Um coro de virgens e de confessores canta senvozmente.)” (p. 831.)

Diz a mãe de Stephen (p. 832): “Eu um dia fui a bela May Goulding. Estou morta”. É a “nossa grande e doce mãe”, como diz em seguida Mulligan. Epi oinopa ponton: estamos sobre o mar escuro cor de vinho, talvez sob.
Sim, talvez sob: nossos mortos tentam nos enterrar em vida. Mulligan, que no primeiro capítulo acusara Stephen por ele não se ter submetido ao que a mãe pedira no leito de morte (ajoelhar-se; rezar), irrompe fugazmente, uma rebarba da alucinação maior, a mãe. Ela se aproxima do filho, “respirando sobre ele seu suave alento de cinzas úmidas“, tenta acalmá-lo: “Todos têm que passar por isso, Stephen”. Ao que ele, “voz embargada de pavor, remorso e terror“, diz: “Eles estão dizendo que eu te matei, mãe. Ele ofendeu a tua memória. Foi o câncer, não eu. Destino”.
Ela desfia um rosário. Diz, por exemplo (p. 833): “(…) Quem teve pena de você quando você estava triste entre os estranhos? (…)”.
Ela teve, por certo. Ela e ninguém mais. Mesmo agora, morta e putrefata, continua a sentir pena dele. “Cuidado! A mão de Deus!”, vocifera (p. 834). Stephen, passado o horror inicial, não se dobra. Non serviam!, repete (p. 834). Ele não se reconcilia com a mãe porque acredita não haver necessidade disso. Os outros sempre dirão o que lhes aprouver (“Ele ofendeu a tua memória.”), mas Stephen está noutro lugar. Ouve e sofre com o que dizem, mas também se alimenta disso: “(…) A imaginação intelectual! Comigo tudo ou não de todo. Non serviam!”
Stephen não pode ser quebrado. Ele não pode ser quebrado porque já se percebeu assim, aos pedaços, no momento mesmo em que foi lançado no meio dos outros. Desde sempre ele está “triste entre os estranhos”. Há nessa autopercepção uma recusa a se enganar e, por decorrência, enganar aos demais. Ele não se ajoelhou e rezou porque não queria, porque não poderia mentir para a mãe. Ela incompreende isso. Mesmo agora, morta e enterrada e carcomida pelos vermes, “cabeça em carneviva e os ossos sangrentos” (p. 833).
Não importa. Stephen está vivo, e sabe disso (p. 844): “(…) Dane-se a morte. Vida longa à vida!”.
A noite ainda seguirá abraçando Stephen e Bloom por algum tempo. Terão o que conversar e caminhar. E, afinal, quando Telêmaco seguir seu rumo e Odisseu se deitar (“Ele repousa. Viajou.”, p. 1036), a Penélope Molly abraçará a ambos e a noite, no seu término.
Molly é o próprio riocorrente joyceano.
É ela quem, em vez de caminhar contra o dia, caminha dentro dele; é ela quem lhe confere algum significado ao dizer reiteradamente sim.
Molly traz o dia para que nós estejamos nele. O dia são todos os dias. Nós somos nós todos.

São Paulo, 2014/17.
Foto: Tom Hunter.

BIBLIO

HOMERO. Odisseia. Tradução: Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2011.
JOYCE, James. Stephen Herói. Tradução: José Roberto O’Shea. São Paulo: Hedra, 2012.
__________. Um retrato do artista quando jovem. Tradução: Bernardina da Silveira Pinheiro. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2006.
__________. Ulysses. Tradução: Caetano W. Galindo. São Paulo: Penguin/Companhia, 2012.
O’BRIEN, Edna. James Joyce. Tradução Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.

Contra o silêncio

Resenha publicada n’O Estado de São Paulo
em 11.02.2017.

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Três momentos extremamente delicados da vida do compositor russo Dmitri Shostakovich (1906-1975), nos quais ele manca “cautelosamente de uma ansiedade para outra”, servem como espinha dorsal para o estupendo O ruído do tempo, romance do premiado autor britânico Julian Barnes. Aqui e ali, o leitor se depara com o protagonista à mercê do moedor de carne humana que era o Estado Soviético, obrigado a silenciar ou a falar em prejuízo de outros, colocando-os em situação semelhante ou pior, ou – o que pode ser o mais terrível – a simplesmente compactuar.

O primeiro dos tais momentos se dá em plena década de 1930, quando Stálin tratava de perseguir, prender, torturar e assassinar todos aqueles que julgava “subversivos” – palavra tão genérica que, no contexto de uma máquina totalitária, consegue abarcar qualquer um que desagrade ao ditador ou seja por ele antagonizado. O “crime” de Shostakovich foi compor Lady Macbeth de Mtsensk, ópera baseada na novela de Nicolai Leskov e que obteve enorme sucesso, pelo menos até que Stálin foi assisti-la e não gostou. É a senha para que a imprensa oficial (única que havia) crucifique o compositor, atacando sua obra como “apolítica e confusa”, capaz de despertar “o gosto pervertido dos burgueses com uma música inquieta e neurótica”.

Chamado a prestar contas às autoridades, logo percebe que a farsa é ainda maior: menos que ele, estão empenhados em trucidar seu protetor, o marechal Tukhachevski, a quem deve implicar num suposto (e falso) complô para assassinar Stálin. No entanto, antes que Shostakovich possa ser levado a “colaborar”, o moedor de carne humana se ocupa da pessoa que o interroga, vitimado por uma intriga similar. A ironia da situação é desesperadora.

No segundo momento, a pedido do próprio Stálin, ele viaja a Nova York com uma comitiva a fim de comparecer a um certo Congresso Cultural e Científico para a Paz Mundial. O tempo dos expurgos já passou, bem como a Segunda Guerra Mundial, mas o clima ainda é sufocante. “A paz tinha voltado, e portanto o mundo estava outra vez de cabeça para baixo”, escreve Barnes. Um exemplo: no momento em que Stálin o intima a viajar como “representante cultural” e na condição de maior compositor russo, sua música estava de novo proibida na União Soviética.

Por fim, na terceira e última parte do romance, já sob o governo de Nikita Khrushchev, as coisas mudam um pouco, mas não se tornam menos perigosas: “Antes, havia morte; agora, havia vida. Antes, os homens borravam as calças; agora, podiam discordar. Antes, havia ordens; agora, havia sugestões. Então as Conversas com o Poder se tornaram, sem que ele se desse conta, mais perigosas para a alma. Antes, tinham testado a extensão da sua coragem; agora, testavam a extensão da covardia”. Assim, o mais impressionante é que a humilhação final não venha por meio de avisos, censuras, interrogatórios ou ameaças, mas com uma nomeação: engolido e mastigado pela engrenagem, Shostakovich se vê obrigado a aceitar o cargo de Presidente da União de Compositores da Federação Russa, o que implica sua filiação ao Partido, coisa de que sempre se escusou.

“E agora, finalmente, depois que o grande terror havia passado, vieram em busca de sua alma”: com mais essa ironia dolorosíssima, a capitulação derradeira, o “suicídio moral” que faz com que Shostakovich prescinda do suicídio físico, Barnes coroa uma obra magistral sobre a devastação anímica causada desde sempre, e até hoje, pela opressão político-ideológica. Visto dessa forma, e tendo em perspectiva os dias atuais, O ruído do tempo ganha ainda mais corpo e relevância. O divórcio entre a arte e a verdade são o sintoma da doença não só do artista, mas também do povo que ele integra, e há que se tomar cuidado para que o ruído do título não seja o daquele moedor de carne humana, que persegue, oprime e silencia.

Auster etc.

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Paul Auster completa 70 anos de idade hoje.

A Trilogia de Nova York, A Invenção da Solidão e Leviatã (numa edição estourada da BestSeller que achei em um sebo na W3-Sul) foram muito importantes para mim quando, aos dezenove, vinte anos, vivia sozinho num barracão no Guará II, no DF, rascunhava meus primeiros contos, tinha um emprego de merda e, por companhia, apenas os livros que comprava aos poucos e com cheques pré-datados na Nobel e, depois que esta fechou, na Saraiva do ParkShopping.

Auster, Salman Rushdie, Italo Calvino, Thomas Bernhard, Philip Roth e Rubem Fonseca faziam a minha cabeça então. Talvez por identificá-los em demasia com tempos difíceis, e à exceção de Roth, eu os revisitei pouco desde aquela época. É um problema meu, não deles. Todos foram importantes. Todos me mostraram caminhos possíveis, ensinaram soluções, disseram algo quando tudo ao redor era uma cacofonia insuportável.

“Seis dias atrás, um homem morreu numa explosão à beira de uma estrada no norte de Wisconsin”: assim começa Leviatã e, sem entender direito o motivo, eu adorava. Talvez por ser tão simples e direto. Trilogia também começava de um jeito que me apetecia: “Foi um número errado que começou tudo, o telefone tocando três vezes, altas horas da noite, e a voz do outro lado chamando alguém que não morava ali”.

Interessava-me a diversão que era perceber a arquitetura, o mecanismo interno dessas vozes, medi-las, pesá-las, compreender o que cada uma delas poderia acrescentar à minha, que eu ainda não tinha descoberto, embora soubesse, ou pressentisse, que ela estava em algum lugar, bastava ter paciência que cedo ou tarde eu a alcançaria.

Sempre começamos a escrever no escuro, e a leitura é como a luz fraca de uma vela do outro lado da folha de papel que preenchemos; ela ilumina as nossas linhas mal traçadas (mas tão cheias de vontade, tão prenhes dessa inclinação que nos desgraça a vida, mas sustém o espírito), e é algo que devemos alimentar com cuidado. Começamos a escrever no escuro, e aos poucos aprendemos a fazê-lo na contraluz.

Enfim.

Foi graças a Auster (via dedicatória de Leviatã) que cheguei a Don DeLillo, o qual me levou a Thomas Pynchon, que por sua vez me apresentou a John Barth, que sugeriu que eu visitasse William Gaddis, e assim por diante. Uma vela acende a outra, e você só precisa tomar cuidado para não incendiar a própria casa. Depois, mal ou bem, tudo termina com um sopro.

Moneta, VA

Em Moneta, no estado norte-americano da Virginia, um atirador matou uma repórter, Alison Parker, de 24 anos, e um cinegrafista, Adam Ward, de 27, e registrou tudo em um vídeo que depois postou nas redes sociais.

Foi em 26 de agosto de 2015.

O atirador se chamava Vester Lee Flanagan (a.k.a. Bryce Williams) e era ex-funcionário da mesma emissora em que as vítimas trabalhavam. Perseguido pela polícia, Flanagan se deu um tiro. Morreu no hospital.

Cansamos de assistir ao vídeo, rep(r)isar aquelas mortes.

Vendo-o, lembrei de uma passagem do romance Submundo, de Don DeLillo, intitulada “Elegia para a mão esquerda”. A edição de que disponho é da Cia. das Letras e a tradução, de Paulo Henriques Britto. A passagem envolve um assassino em série que sai por aí dirigindo e atirando em outros motoristas, os carros em movimento. Um dos assassinatos é flagrado por uma criança com uma filmadora, dentro de um terceiro carro.

“Não é apenas mais um vídeo de assassinato”, escreve DeLillo. “É um assassinato documentado por uma criança que julgava estar fazendo uma coisa simples e quem sabe até um pouco esperta, captar a imagem de um homem num carro.”

O carro dirigido pelo atirador se aproxima daquele enquadrado pela criança.

“É claro que, se tivesse feito uma panorâmica para mostrar outro carro, o carro exato no momento exato, ela teria captado a imagem do assassino dando o tiro.”

Há um encontro, uma confluência de olhares e intenções.

“A aleatoriedade do encontro. A vítima, o assassino e a criança com sua câmara. Energias aleatórias que se aproximam de um ponto comum. Há aqui outra coisa que fala diretamente a você, que diz coisas terríveis sobre forças além do seu controle, linhas de interseção que atravessam a história, a lógica e todas as outras camadas razoáveis da expectativa humana.”

E:

“Lá vem o tiro. Ele é atingido na cabeça, e a câmara reage, a criança reage — há um sacolejo súbito mas ela continua gravando, há uma reação solidária, uma reação nervosa, o coração dela bate mais depressa mas ela continua com a câmara apontada para o homem que desliza em direção à porta (…).”

E DeLillo vai direto na jugular:

“Você fica pensando se esse tipo de crime não se tornou mais fácil quando se disseminou um meio de registrar um evento e o exibir imediatamente, sem um intervalo neutro, um espaço e um tempo equilibradores. A exibição imediata intensifica e comprime o evento. Desperta a necessidade de repeti-lo.”

No caso do atirador em Moneta, além do imediatismo (vídeo, redes sociais, ausência completa de “um intervalo neutro, um espaço e um tempo equilibradores”), há um elemento mais aterrador: é o próprio assassino quem faz questão de registrar o ato hediondo. Não temos, como no romance de DeLillo, uma terceira parte, uma testemunha gravando o evento — ainda que inadvertidamente — para a massa expectante, isto é, para nós.

“Não é apenas mais um vídeo de assassinato.”

Não mesmo. Em Moneta, no evento real, as crianças curiosas, que mal se contém de ansiedade diante do que se desenrola, somos nós. É como se o assassino tivesse cortado qualquer (inter)mediação além da própria câmera. Ele está conosco do começo ao fim.

Câmera subjetiva: vemos o que ele vê, fazemos o que ele faz.

E há um momento, um longo momento, quase tão assustador quanto os tiros em si: é quando Flanagan se aproxima das futuras vítimas e se queda perto, muito perto delas, sem que ninguém perceba. O assassino aguarda, e nós com ele. Então, aponta(mos) a arma e atira(mos).

E não há mais nada a ser dito.

…………

Versão estendida de um texto publicado n’O Popular em 24 de janeiro último.