Adoção, exílio e memória

Resenha publicada no Estadão em 05.12.2015.

Há um belo momento de inflexão em A Resistência, já no terço final do romance, em que Sebastián, o narrador, fala sobre como está escrevendo o próprio “fracasso”, vacilando “entre um apego incompreensível à realidade – ou aos esparsos despojos de mundo que costumamos chamar de realidade – e uma inexorável disposição fabular, um truque alternativo, a vontade de forjar sentidos que a vida se recusa a dar”. Tal “vacilo”, contudo, é o que confere sentido à narrativa de Julián Fuks sobre adoção (de alguém por uma família; de qualquer pessoa pelo lugar onde se encontra, seja o ambiente familiar, seja a cidade ou o país em que vive), exílio e memória.

Filho de argentinos, nascido em 1981, o paulistano Fuks parece concentrado não em empreender uma espécie de recuperação da história familiar – e aqui nos eximimos de especular sobre o que seria “verdade” e o que seria “invencionice”, até porque o volume chega até nós como ficção –, mas em explicitar, tendo em vista o que é narrado, a sensação de desterro que ora une, ora desune seus personagens. Em capítulos curtos, e partindo de um conflito central, enunciado já no primeiro parágrafo (“Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adotado”), o narrador passeia tanto pelas recordações íntimas quanto pelas décadas recentes da história latino-americana, repletas de ditaduras sanguinárias, gente torturada e morta, órfãos, exilados, e o faz oscilando “ao infinito entre história e história”.

Os pais de Sebastián são psicanalistas argentinos que, por conta de sua posição militante, infensa ao status quo totalitário, se viram obrigados a fugir para o Brasil em fins da década de 1970, antes que fossem destroçados pelas engrenagens ditatoriais. Antes, ainda em Buenos Aires, adotaram uma criança, de quem jamais esconderiam esse fato. E, uma vez instalados em São Paulo, conceberam um casal de filhos. O núcleo familiar tem, assim, a marca indelével da violência que os atirou de lá para cá: pais argentinos, exilados, uma criança adotada, cujo nascimento “não foi narrável”, e dois outros filhos nascidos em terra estrangeira. Mas, em meio a tudo isso, em que consiste a “resistência” aludida pelo título?

Sob os nossos olhos, há “um livro sobre essa criança, meu irmão, sobre dores e vivências de infância, mas também sobre perseguição e resistência, sobre terror, tortura e desaparecimentos”, é verdade, mas também um objeto narrativo dos mais sólidos, que não procura ser invasivo ou indiscreto (não obstante os receios exprimidos pelo pai no penúltimo capítulo), mas, acima de tudo, intenta resistir ao que nos devasta: o esquecimento, a alienação e a inobservância do outro e de si.

Em um ambiente tão conflagrado e irascível quanto este em que vivemos hodiernamente, A Resistência aponta para a necessidade de um cuidado maior para com a história, tanto a privada quanto a pública. Noutras palavras, por mais rarefeita que hoje nos pareça a ideia de lar, seja no contexto familiar, seja no âmbito político-social, há que se pensá-la por meio da inclusão, jamais da exclusão. E o esforço de Julián Fuks, oscilando, conforme citamos acima, “entre história e história”, é algo assim compreensivo e inclusivo.