Vocês precisam conhecer o Cristiano.

Vocês precisam conhecer o Cristiano.

O escritor Flávio Izhaki dedicou alguns parágrafos ao meu novo romance, Abaixo do paraíso. Autor dos ótimos De cabeça baixa e Amanhã não tem ninguém, Flávio editou dois livros meus: Paz na Terra entre os monstros e esse meu novo romance. Graças a ele, o primeiro resultou num volume menos descompensado, com nove contos e uma novela (em vez de dezessete narrativas e sabe D’us mais o quê), e o segundo foi repensado e adquiriu (espero) mais consistência. Leia abaixo o texto do Flávio.

Abaixo

VOCÊS PRECISAM CONHECER O CRISTIANO
por Flávio Izhaki

Parte da crítica literária brasileira sussurra, de quando em quando, que a literatura nacional contemporânea circula demais pelo próprio umbigo, seja na autoficção ou em livros sobre escritores, em geral com romances urbanos no eixo Rio-SP-Porto Alegre. Cobram, de certa maneira, que os escritores sejam também seres políticos quando fazem literatura. Justa ou não a reclamação (e não vou entrar no mérito aqui), essa parte da crítica vai adorar conhecer Abaixo do paraíso, sexto livro de André de Leones.
O romance é centrado num tarefeiro, um faz-tudo do governador de Goiás que se movimenta pelo sub mundo de quartos de hotéis baratos, pequenas negociatas, transações e favores. Um subalterno, um encarregado que se descama aos olhos do leitor, que vai deixando sua pele pelas páginas, desencontrando-se aos esbarrões, errando de cidade em cidade, de mulher em mulher, de abandono em abandono, mas sabendo onde deve chegar.
O livro começa em Goiânia, entra por Anápolis, Brasília até alcançar Silvânia. Um Brasil que o Brasil da literatura pouco conhece. Mas escrever isso é diminuir o autor e o livro. Abaixo do paraíso é um grande romance não pela temática, mas pelo arcabouço psicológico que o autor consegue transmutar para o tarefeiro Cristiano. Vocês precisam conhecer o Cristiano…
Em seu sexto livro, o autor remonta a tríade que melhor descreve suas fixações: casa, sexo e morte. De certa maneira, a temática esteve presente em todos os seus livros, mas em Abaixo do paraíso, respira-se isso como foi o caso em seus dois primeiros livros, Hoje está um dia morto, que lançou De Leones como vencedor do Prêmio Sesc de Literatura na categoria romance, e Paz na Terra entre os monstros, única coletânea de contos do autor.
Como desaparecer completamente, Dentes negros e Terra de casas vazias mostram um caminho de depuração do escritor, testando temas, personagens, estruturas narrativas fragmentadas, espaços e vozes. Neste Abaixo do paraíso lemos um autor ainda mais consciente do peso que cada palavra adquire no papel, que organiza sua narrativa de maneira retilínea, mas não plana. De Leones é capaz de desconstruir uma ação pela sua narrativa, alternado focos, perspectivas e até a velocidade do que é narrado. Um autor que chega pronto ao sexto livro. Um autor que precisa ser lido.

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Abaixo do paraíso chega às livrarias em março, pela Rocco. Leia um trecho dele AQUI e um post meu a respeito AQUI.

Sintomas da doença da cultura

hitler

Leio numa matéria d’O Globo: “Não é possível entender a mente de Hitler sem ler seus textos. Não é possível combater completamente e honestamente suas ideias sem combatê-las na fonte”. A fala é do publisher da Geração Editorial, Luiz Fernando Emediato, que está prestes a colocar no mercado uma nova edição de Minha Luta, de Adolf Hitler. Noutra matéria, publicada no Estadão, o mesmo Emediato afirma que se trata de uma “edição ‘antídoto’ de um clássico como outro qualquer”. Aqui já temos um problema.

Indo direto ao ponto: Minha Luta não é “um clássico como outro qualquer”. Não é sequer um clássico, e talvez Emediato devesse ler Calvino ou, caso esteja muito ocupado divulgando o livro de Hitler, recorrer a um bom dicionário antes de usar a palavra.

No Estadão, Emediato também responde ao escritor Ricardo Lísias, que se posicionou contra o lançamento de edições comerciais do livro, dizendo que ele teria começado “a fazer uma ridícula campanha contra a divulgação deste domingo no lançamento da Geração, e infelizmente agindo como o próprio Hitler (sic) – mentindo e distorcendo informações sobre a primorosa edição da Geração Editorial”. A ocorrência da Lei de Godwin não me parece inteligente, sobretudo neste caso. O texto de Lísias é claro, ponderado e bem fundamentado — assim como o de Miguel Sanches Neto, favorável à publicação, mas com ressalvas). Ademais, se Lísias agisse mesmo “como o próprio Hitler”, Emediato estaria em apuros. Quase todos nós estaríamos.

Voltando às primeiras aspas do publisher, de que não seria “possível entender a mente de Hitler sem ler seus textos”, bem, aqui temos outro problema. Tome-se a descrição que o historiador Ian Kershaw faz de Minha Luta em sua primorosa biografia Hitler (pág. 181):

“Num resumo conciso, o livro se reduzia a uma visão simplista e maniqueísta da história como uma luta racial na qual a entidade mais elevada, a ariana, estava sendo solapada e destruída pela mais baixa, a parasítica judia. Em suas palavras: ‘A questão racial dá a chave não somente para a história mundial, mas também para toda a cultura humana’. A culminação desse processo havia se dado com o domínio brutal exercido pelos judeus através do bolchevismo na Rússia (…). A ‘missão’ do movimento nazista era, portanto, clara: destruir o bolchevismo judeu. Ao mesmo tempo — num salto de lógica que avançava convenientemente para uma justificativa da conquista imperialista direta — isso propiciaria ao povo alemão o ‘espaço vital’ necessário para que a ‘raça superior’ se sustentasse.”

Não há mais do que isso em Minha Luta. O resumo de Kershaw é preciso e completo. E, dada a enorme quantidade de excelentes estudos sobre Hitler e o nacional-socialismo disponíveis, é realmente imprescindível para alguém que não seja um especialista ter contato com as “ideias” de Hitler “na fonte” para melhor “combatê-las”? E, sendo um livro tão estúpido quanto perigoso, mesmo uma edição crítica, comentada etc. não correria o risco de insuflar nos imbecis justamente o mal que pretende “combater”? E, vou me repetir agora, sendo um livro tão estúpido quanto perigoso, não é problemático que uma editora queira capitalizar com essa monstruosidade, mesmo que a partir de uma edição crítica, comentada etc.? E ficou evidente que a Geração Editorial quer, sim, capitalizar, e muito, conforme demonstrou sua primeira — e cretiníssima — ação publicitária, descrita na matéria do Estadão.

É claro que a opção da Centauro, de lançar uma edição “nua”, sem comentários, prefácios, contextualizações, nada, é ainda pior, de uma venalidade (em todas as acepções do termo) grotesca. Mas o posicionamento da Geração, explicitado pelas intervenções infelizes de seu publisher, transpiram a mesma venalidade, a mesma estupidez: “Ansioso para adquirir Minha Luta, de Adolf Hitler?”, perguntavam num e-mail promocional, enviado há alguns dias. A forma como você responde a essa pergunta diz muito a seu respeito, acredito. E afirma o editor Willian Novaes que “centenas de pessoas telefonam diariamente para a editora perguntando ansiosamente se e quando o livro vai sair”. Que espécie de argumento é esse? Voltarei a ele, mas aposto que, se colocarem nas prateleiras um Minha Luta para Colorir, milhares ligarão.

No estupendo Hitler e os alemães, o filósofo alemão Eric Voegelin recorre a Robert Musil para nos lembrar (pág. 133) de que toda estupidez “é sempre relacionada com a normalidade de um comportamento social determinado”, um comportamento “que não desempenha algo para o qual todas as condições, exceto as individuais, estão presentes”. Musil, segundo Voegelin, distingue diversos tipos de estupidez, e chega a um tipo “elevado, inteligente”, que se atreveria “a realizações a que não tem direito” (pág. 137). E ele prossegue com Musil: “Então, aqui vem o elemento de atrevimento, de hybris, de arrogância espiritual. A estupidez elevada ou inteligente é um distúrbio no equilíbrio do espírito”, uma espécie de “revolta contra o espírito, que dá ensejo a dizer ou fazer coisas contra o espírito”.

“Essa estupidez elevada é a verdadeira doença da cultura (mas para evitar mal-entendido: é um sinal de não-cultura, de incultura, de cultura que vai para o lado errado, de desproporção entre o material e a energia de cultura) [Então, todas essas negações da educação genuína.] e descrevê-la é uma tarefa quase infinita. Alcança a mais alta esfera intelectual.”

Que o editor da Geração se esconda atrás do fato de que “centenas de pessoas telefonam diariamente para a editora perguntando ansiosamente se e quando o livro vai sair” é algo deveras preocupante. E que o publisher da casa compare uma pessoa que se posiciona honesta, clara e contrariamente ao lançamento comercial com Hitler, mais do que preocupante, é um sintoma da doença descrita por Musil e citada por Voegelin. No meu entender, é um álibi muito frágil que a edição seja crítica, comentada etc., porque não disfarça os interesses reais e a pobreza moral dos que se escondem atrás dele, ambos, pobreza e interesses, cintilando nas fraturas expostas do discurso (“um clássico como outro qualquer”, “ansioso para adquirir?”, “agindo como o próprio Hitler”).

“Consideramos esse debate encerrado”, disse Novaes ao Estadão, “e estamos apenas dando informações para a sociedade.” A pressa em encerrar o debate é típica dos que não têm capacidade para se posicionar racional e moralmente nele. E a desculpa de que estão “apenas dando informações para a sociedade” só reforça a irreflexão e o descuido daqueles que, dizendo fazer o bem, estão na verdade vendendo o mal.

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Espero que as livrarias se recusem a comercializar Minha Luta. Assinei um manifesto pedindo isso hoje cedo. Que muitos mais também assinem.

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Sobre "Abaixo do paraíso"

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Abaixo do paraíso, meu quinto romance, já está em fase final de produção (miolo aprovado; no momento, definimos a capa). A previsão é que seja lançado em março, pela Rocco. (Leia um trecho AQUI e outro AQUI.)

Eu o escrevi entre janeiro de 2013 e janeiro de 2015. Ou seja, faz um ano que o dei como terminado e enviei para a editora. Lá, no decorrer do primeiro semestre do ano passado, foi lindamente editado por ninguém menos que Flávio Izhaki, responsável por uma sucessão de leituras críticas e sugestões que, é claro, acatei e (creio) só tornaram o livro melhor.

Foi um romance bem mais tranquilo de escrever que o anterior, Terra de casas vazias, que consumiu três anos e dois meses da minha vida e, por vezes, parecia um quebra-cabeças que eu jamais conseguiria montar. Alternava momentos de intensa produção (e animação) com outros nos quais eu queria fazer qualquer coisa, menos escrever. Aquela foi uma sensação inédita para mim, e eu cheguei a pensar em me dedicar a outra atividade. Cogitei desde a pesca submarina até a pistolagem, passando pelo retorno ao magistério e pela metalurgia. Em julho de 2012, contudo, ao final de um surto produtivo permeado por crises asmáticas, pornografia virtual e ao som da Quarta de Bruckner (a Romântica), consegui dar um ponto final em Terra de casas vazias, bebi uma garrafa de vinho, peguei no sono e só fui acordar em janeiro de 2013, largado no sofá e com um belo torcicolo. Levantei-me, tomei um banho, comi alguma coisa, peguei um caderno novo e comecei a escrever Abaixo do paraíso. (Ok, talvez eu tenha deixado passar alguns detalhes nessa reconstituição, mas os fatos não estão muito longe disso.)

Em muitos sentidos, Abaixo do paraíso é uma espécie de desdobramento do romance anterior. Não estruturalmente (Terra não tem um protagonista, mas vários, e alude ao desenho urbano da Velha Jerusalém em sua fragmentação meio autista, ao passo que Abaixo tem um protagonista e um desenrolar vetorialmente único, por assim dizer), mas em seu tom (compassivo, compassado) e nos termos de uma discussão de cunho moral acerca do nosso lugar em relação ao outro, inclusive (e socraticamente) entendendo a si próprio como um outro com quem primeiro dialogamos.

O protagonista, Cristiano, é um tarefeiro, um aspone, alguém responsável pelo tipo de serviço escuso que alimenta a nossa paupérrima República e confunde mundo e submundo, revelando-os como ambientes de um mesmíssimo — e apodrecido, repleto de infiltrações — edifício político. Cristiano é o sujeito que, nas eleições, vai ao interior oferecer combustível de graça para que os locais encham o tanque e engordem as carreatas de campanha; é o nobre funcionário que leva a amante do secretário da educação ao dentista; é o homem de confiança que se enfia num quarto de hotel vagabundo para se encontrar com outro homem de confiança, e envelopes trocam de mãos, algo vendido ou comprado; é um dente nessa engrenagem, uma peça no maquinário republicano. Então, algo acontece, e ele precisa fugir, esconder-se. O reencontro com a família (pai, madrasta, meia-irmã, tia) aponta para um ressituar-se, mas nada é assim tão simples. Cristiano deve voltar a si antes de se voltar para o outro, sob pena de confundir tudo. Ele se esforça. E é tal esforço que acompanhamos na segunda metade de Abaixo do paraíso.

Não seria inteligente falar mais (e talvez não tenha sido inteligente falar tanto) sobre o romance. Importa que, em breve, ele estará à disposição dos leitores. Haverá outros posts de divulgação, neste espaço e também no blog da editora.

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A frialdade do tabuleiro

Oito

A paixão por contar histórias está lá, intacta. É o que mais me apaixona não só n’Os Oito Odiados, mas em toda a filmografia de Quentin Tarantino. São filmes cuja afabilidade para com o espectador é impressionante. Sim, afabilidade. Mesmo com toda a violência, estamos seguros. Estamos do lado do Narrador. Ele se aproxima, senta-se perto da fogueira e diz: “Vê essas sombras? Vou usá-las para te contar uma história”. E usa, conta, e, quando percebemos, já amanheceu. Podemos seguir viagem, transformados por algo que mal compreendemos. Olhamos por sobre os ombros, para trás, querendo ver o Narrador mais uma vez, talvez acenar, mas ele não está lá. Não. Como estaria? O Narrador está sempre à frente.

N’Os Oito Odiados, a estruturação continua sendo literária (na maneira como apresenta história e personagens, nos diálogos que velam e desvelam, no Verbo que restitui vida a um mundo cuja frialdade beira o insuportável). Acho extremamente feliz que a maior parte do filme se passe num único cenário. Estamos presos ali, com os personagens odiosos, enquanto o mundo lá fora é varrido por uma tempestade. O filme fracassaria sem essa sensação de asfixia e exaustão. Como escreveu alguém (referindo-se a Fargo, dos Coen), as dores doem muito mais no inverno.

E, a exemplo do que já fizera em Cães de Aluguel (com quem compartilha o flerte, agora menos explícito, com Rashomon, de Kurosawa), a encenação parece teatral. Parece: a utilização do espaço é nunca menos que soberba. É por isso que Tarantino, grande escritor, é antes de tudo um cineasta, pela maneira como guia o nosso olhar (e, com ele, as nossas vísceras), construindo uma história que vemos se desenrolar (as sombras junto à fogueira), a despeito de toda a maravilhosa verborragia, distinguindo entre (embora eles às vezes coincidam) o mundo do discurso e o (sub)mundo das sombras que se movimentam, inquietas.

O isolamento dos personagens ecoa o isolamento de seus ódios — pela cor do outro, pelas ações e supostos objetivos do outro, pela procedência do outro, pela vitória do outro, pela posição do outro, pelas mentiras e/ou verdades do outro. Cenário e encenação adquirem, também por isso, sua coloração apocalíptica. Um punhado de seres humanos largados no meio do nada, impossibilitados de escapar uns dos outros.

Creio que o filme também fracassaria acaso houvesse escapatória, por mais que um bom número delas seja ensaiado no decorrer da narrativa. Deus colocou todos e cada um deles ali para morrer. Assim como colocou todos e cada um de nós aqui para, também, morrer.

A certa altura, o Narrador se cala e olha para a fogueira. É noite alta. As vozes dos outros ainda ecoam, distanciando-se na escuridão. A pausa (que identifico com o capítulo que encerra o flashback) serve não para dispôr as peças corretamente no tabuleiro, mas para explicitar a solidão irredimível de cada uma delas. O tabuleiro, o cenário, não toma conhecimento delas, de nós. O tabuleiro é de uma crueldade silenciosa, cuja impassibilidade reafirma não a sua própria brutalidade, mas a brutalidade de cada peça, que se movimenta, ataca, mata, morre. É, talvez, a passagem mais avassaladora, e também mais triste. Uma chacina preparando o cenário para a próxima. Elas se sucederão, uma após a outra. Até que o tabuleiro queime.

Sarmento

Resenha publicada em 18.12.2015 no Estadão.

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Uma boa maneira de apresentar o humor delirante de Associação Robert Walser para Sósias Anônimos, de Tadeu Sarmento, é a partir da história (provavelmente falsa, e o livro está cheio de mentiras dentro de mentiras) de um personagem, o mentor da associação que dá título ao romance: Hussein é assim chamado porque teria sido um dos vários dublês do filho mais velho de Saddam, Udai. Certo dia, o ditador iraquiano ordena ao filho que vá a Basra “levantar a moral das tropas”. Lá, Udai sofre um atentado e perde um dos braços. Consequentemente, os dublês são coagidos a arrancar o membro respectivo, “obrigados a fazer esse sacrifício para se adequarem à nova condição do duplo”. Feitas as amputações, descobre-se que Udai estava na verdade em um cassino na Suíça, e que a pessoa que sofreu o atentado era um dos sósias.

Passagens como essa pipocam nas páginas do livro, muito bem costurado pelo pernambucano Sarmento em duas tramas que correm paralelas: a primeira diz respeito à tal associação e é narrada em primeira pessoa por um sósia de Robert Walser; a segunda (que pode muito bem ser um livro dentro do livro) se passa no começo dos anos 1960, em uma cidadezinha no interior do Paraguai chamada Nueva Königsberg, onde os moradores (nazistas foragidos com o patrocínio da Igreja Católica e sob a proteção do ditador Alfredo Stroessner) são sósias de Immanuel Kant, adotando, inclusive, os hábitos do célebre filósofo prussiano. A forma como as tramas são finalmente ligadas é um primor de imaginação, com o romance se debruçando sobre si mesmo e se revelando um labirinto de espelhos no qual a própria estrutura da fabulação reflete o jogo de duplos e impostores estabelecido desde o começo.

Sarmento também devassa a fixação contemporânea pelas celebridades. Em princípio, os membros da associação estariam ali “para reaprender a ser” eles mesmos, “isto é: ninguém”, almejando “a tranquilidade fria do anonimato”, cuja liberdade “quebra em pedaços a aura de promessas que, às vezes, se forma em torno das pessoas”. No entanto, tal projeto é pervertido, e o mentor deles diz a certa altura: “Porque nós somos tudo aquilo o que todos gostariam de ser: somos outra pessoa, cada um de nós, e isto que nós somos é o ápice de toda cultura moderna”. Não por acaso, no momento em que essa mudança de paradigma se torna patente, é que um crime tem lugar às portas da associação. E o crime ainda encerra uma tremenda – e hilariante – inversão de papéis.

Para terminar, ressalte-se que Associação Robert Walser para Sósias Anônimos foi justamente agraciado com o Prêmio Pernambuco de Literatura. Aguardemos outra “comédia triste sobre literatura e desaparecimento”, como o autor tão bem definiu esse seu romance de estreia.

Eu não vou tirar você desse lugar

Um conto (*).

soja

Vim pela estrada de terra, milho de um lado e soja do outro, contornei a casa e estacionei o carro lá atrás. Lucélia e outra menina estendiam roupas no varal, as caras inchadas, vozes roucas, olheiras, deviam ter acordado fazia pouco tempo. Fiquei sentado ali dentro, fingindo procurar alguma coisa no porta-luvas, mas não procurava bosta nenhuma, só queria olhar pra Lucélia mais um pouco, de longe. A estupidez de imaginar com quem ela teria ido na noite anterior, com quantos. Sou estúpido pra caralho. Fico imaginando coisas que não devia. Pensando demais. Eu fingindo procurar alguma coisa no porta-luvas e ela fingindo que não tinha me visto, pendurando uma camiseta branca, as calças de alguém, uma blusa vermelha. Desci, afinal. Pedrão estava sentado numa cadeira, fumava um cigarro, não o tinha visto. Fui até ele e estendi a mão.
— A gente só te esperava à tardezinha — ele disse.
— Eu sei. Acordei cedo. Achei melhor pegar a estrada logo, previsão de chuva.
— Não vai chover, não — ele retrucou.
— A previsão disse que vai.
— Eu não acredito nessas merdas — ele insistiu, depois jogou o cigarro no chão e deixou lá, queimando no cascalho. — Seu quarto é o de sempre.
Ele se levantou e entrou. Voltei ao carro, peguei a mochila no banco traseiro e fui até os dormitórios. O meu era o último. Passei por Lucélia e disse bom-dia.
— Boa tarde — ela respondeu, sorrindo, uma piscadela.
Então você me viu, pensei. É claro que sim. Tomei um banho. Quando saí, ela estava deitada na cama, de bruços. Tinha engordado um pouco. A bunda parecia maior. As roupas dela estavam em cima das minhas.
— Vem logo — disse. — Mas vem com jeitinho. Noite passada foi concorrida.
A gente tinha terminado quando ouvi duas batidinhas na porta. Lucélia cochilava ao meu lado. Eu a cobri, vesti as calças e abri a porta. Era a menina que ajudava Lucélia a pendurar as roupas. Pedrão queria falar comigo. Fechei a porta, tirei as calças, vesti uma cueca limpa, voltei a colocar as calças, depois uma camisa e saí, descalço. Lucélia não se mexeu.
Pedrão estava sentado ao balcão. Não havia mais ninguém no lugar. Ainda era cedo. Sentei ao lado dele.
— Tem uns discos seus ali — ele disse, apontando para a jukebox desligada.
— Eu sei.
— O pessoal ainda gosta de ouvir. De vez em quando, um caminhoneiro, um peão, outro dia foi um PM.
Achei engraçado. — Como assim, um PM? Que música ele colocou?
— Aquela do primeiro disco.
— Qual?
— Sobre o cara que perde a mulher porque é preso, ela foge com outro.
— Ah — eu ri. — Claro, a mulher foge com um policial.
Pedrão também riu. — Quer beber alguma coisa?
Ele não me esperou responder, levantou-se, contornou o balcão, pegou uma Skol litrão no freezer, dois copos. Não disse nada, ficou ali do outro lado do balcão, em pé, esperou que terminássemos aquela primeira garrafa, pegou outra, os copos cheios outra vez.
— Você sabe, eu gosto de você — ele começou.
— Eu sei, sim.
— Nunca te neguei trabalho.
— Eu sei, porra. Eu sei.
— Você vem aqui, canta, o pessoal da região gosta, enche o lugar, bebe, come as meninas.
— É verdade, Pedrão. O lugar sempre lota.
— Desde quando a gente se conhece?
— Desde quando eu era um pica-grossa — respondi.
— Desde quando você lotava lugares bem melhores do que esse — ele complementou.
— Não que tenha alguma coisa errada com esse lugar.
Ele sorriu. — Claro que não. É que as coisas mudam, numa hora você está aqui — ele disse, apontando para o teto —, e noutra hora está aqui — apontou para o chão.
Didático. Podia ter sido professor. Desviei os olhos, tomei um gole amargo de cerveja.
— É a vida — acabei dizendo.
— Se é — ele concordou. — Tive aquela boate em Brasília, uma casa de shows de Goiânia, e agora toco um puteiro na região da estrada de ferro.
Dei outro gole amargo e falei que o importante era seguir em frente. Se é, ele repetiu. Abriu uma terceira garrafa e chegou finalmente ao que interessava:
— O lance é que eu não posso me dar ao luxo de perder a Lucélia e, ao mesmo tempo, também não quero me dar ao luxo de te perder.
— Você não vai perder ninguém — eu disse.
— Vou, sim. Se vocês começam a se gostar e tal. Começam a ter ideias. Ela vai querer sair ou você vai querer tirar ela daqui, ou as duas coisas. Nossa amizade não ia suportar uma merda dessas. Amor é merda.
Ele suspirou.
— O amor é uma bosta — sorri.
— Entende a minha posição?
— Entendo, sim. Claro que entendo. — E eu não estava mentindo, entendia mesmo.
— Quer dizer — ele continuou —, ela é a menina que me dá mais lucro, a mais limpa, a mais tranquila, todo mundo gosta dela, e você, a gente falou disso agorinha mesmo, você vem aqui uma vez por mês, duas até, lota o ambiente, ganha o seu, todo mundo ganha.
— Todo mundo feliz — concordei, balançando a cabeça. — O que você quer que eu faça, Pedrão?
— Desculpa te pedir isso, mas acho que ia ser bom você não comer ela mais.
Virei o copo de cerveja. — Você é quem manda.
— Ainda bem que você sabe disso.
Não deixei que ele enchesse o meu copo outra vez. Saí pela porta dos fundos, a mesma que tinha usado para entrar.
Parei ali na soleira.
As roupas balançavam no varal. Olhei para os meus pés sujos, teria de tomar outro banho.
Voltei ao quarto.
Lucélia estava acordada e vestida, sentada na beira da cama. Contei o que tinha conversado com Pedrão. Ela primeiro sorriu, balançando a cabeça, depois chorou um pouco, sem fazer barulho. O peso que senti no peito foi idêntico ao de quando me prenderam pela primeira vez, por posse, dois míseros papelotes e os caras adorando aquila merda toda. A sensação desgraçada de que algo tinha acabado, de que era o fim de alguma coisa importante, nada vai ser como antes, fim de papo. Fiquei ali parado, as costas apoiadas na parede, as mãos enfiadas nos bolsos das calças, olhando para os meus pés imundos. Queria dizer alguma coisa pra ela, mas não me ocorreu porra nenhuma. Acho que ela esperava que eu dissesse. O peso aqui dentro só aumentando, depois se transformando num buraco, como se tivessem arrancado meus pulmões e, de alguma forma, eu continuasse respirando. Ela esfregou os olhos, depois me encarou. Pensei que fosse dizer alguma coisa, mas continuou calada. Eu cheguei a abrir a boca, mas não saiu nada, nem mesmo um palavrão, ou o nome dela, e depois, relembrando tudo, eu pensei nisso, podia ter dito o nome dela, só o nome, mais nada.
Mas não. Eu não disse nada.
Ela se levantou, esfregava os olhos de novo, e saiu do quarto sem olhar na minha direção.
Deixou a porta aberta ao sair.

…………

(*) Versão revista de um conto originalmente publicado na antologia Assim você me mata (Terracota, 2012), organizada por Claudio Brittes.

Notas sobre o leprosário

“Brasília é Las Vegas funcionando em um leprosário repleto de psicopatas.”
Tadeu S.

Dilma Rousseff: 'Do I look happy, Mr Obama?'

::: Na Piauí deste mês, um artigo assinado por André Singer, jornalista, cientista político, professor da USP e ex-secretário de imprensa da Presidência da República (2003-2007). Trecho: “O completo isolamento em relação ao capital precipitou o fim da experiência desenvolvimentista. O lulismo não encontrou resposta para a unificação da burguesia contra Dilma. Por dois anos, a presidente resistiu bravamente às crescentes pressões para dispensar Mantega e proceder ao ajuste recessivo. Mas como não mobilizou qualquer tipo de apoio político a essa resistência (…), o isolamento do Planalto e da equipe econômica tornou-se cada vez maior (…)”. Singer cria uma narrativa que intenta justificar o desastre administrativo da suposta “experiência desenvolvimentista” (a qual ele compara ao New Deal rooseveltiano, no que eu ri), culpando não a inépcia de seus artífices, que cometeram crimes como as famigeradas pedaladas fiscais para financiar uma máquina corrupta e paquidérmica e um projeto irresponsável e, como hoje se vê, insustentável, mas, sim, a perversidade do monstruoso Capital, que não aceitaria ser alijado de tal “experiência” (vide a “batalha do spread“) e trabalharia organicamente (por meio de “veículos respeitados pelo grande empresariado mundial”, por exemplo) para naufragá-la. Os maiores erros da sra. Rousseff, no entender de Singer, não teriam nada a ver com o intervencionismo paralisante, espúrio, e o descontrole dos gastos (e a tentativa de escondê-lo) que leva ao aumento da dívida pública (41,4%, o equivalente a 9% do PIB), à contração do Produto Interno Bruto (estimada em 8,1% no triênio 2014-2016), ao aumento do desemprego (que deve passar dos 10% em 2016) e, por fim, à impossibilidade de se manter os programas “desenvolvimentistas” — e o apoio eleitoral que decorreria deles. Os maiores erros da sra. Rousseff, segundo Singer, foram a irascibilidade, a incapacidade de negociar e compactuar quando necessário, a arrogância e a imposição de um “estilo” que minaria qualquer apoio político, incluindo na outrora chamada “base aliada”.

::: Na IstoÉ desta semana, uma entrevista com Gustavo Franco: “Vejo o Palácio dizendo que fez a pedalada para não deixar de pagar os programas sociais, o que é uma confissão de crime”. E: “Há 25 anos, tínhamos um grande solucionador de problemas, que era a inflação. Era uma maneira de tributar o pobre para pagar as contas que ninguém queria pagar. Hoje em dia, uma maneira de ver o que aconteceu é que nós não tributamos o pobre com a inflação, mas tributamos os nossos filhos e netos com dívidas. A criação excessiva de dívida hoje é como a criação excessiva de dinheiro há 25 anos”.

::: Franco também traça uma distinção entre o que enfrentamos hodiernamente com aquilo com que FDR se deparou, há quase um século: “O mundo já experimentou crises que poderiam ser resolvidas com o aumento do gasto público. Só que esta é uma crise produzida pelo excesso. O remédio utilizado nos anos 30 para uma crise diferente foi o aumento do gasto público. Agora, o problema é o inverso. Trata-se de um endividamento fora de sintonia com a capacidade de o Brasil pagar. E não é para o exterior, é para nós mesmos”. Mais claro, impossível.

::: Vieram me dizer das “coisas boas” que a sra. Rousseff teria feito, como manter os juros e a conta de luz lá embaixo por um tempo, como se esse tipo de medida populista não tivesse um custo enorme, que agora conhecemos (e pagamos), especialmente os mais pobres — justamente os que ela, em tese, procurava “assistir”. Muito se noticiou sobre o quão nocivo é o fato de ela ter ordenado a manutenção dos preços dos combustíveis, por exemplo, num valor abaixo daquele praticado no mercado, coisa que torpedeou a Petrobras, já tão destroçada pela corrupção metastática. O salto inflacionário resultante desse tipo de prática intervencionista é tão previsível quanto evidente. Muitos procuram justificar a estupidez administrativa ressaltando os programas assistencialistas que se tentava implantar e/ou manter, sublinhando que outro governante (tucano, por ex.) não teria esse tipo de preocupação, mas ignoram (de boa ou má-fé) que o modus operandi foi não apenas criminoso, mas também inviável sob qualquer ponto de vista. As pedaladas não são motivo para divórcio (ou impedimento). As pedaladas são motivo para crime passional.

::: A essa altura, parece evidente que não é possível desenvolver um país na marra e a qualquer custo, distorcendo as contas públicas e intervindo em setores cujos humores obedecem a variáveis alheias aos humores da sra. Rousseff e suas “melhores” intenções. Não por acaso, aqueles que foram arrancados da miséria estão, de novo e aos poucos, sendo abraçados por ela. A conta chega para todos, mas são os mais pobres que terão de se virar com a parcela maior, e mais acachapante, dos custos da aventura político-econômica “desenvolvimentista”. O Estado os engoliu, e agora trata de cagá-los de volta.

Adoção, exílio e memória

Resenha publicada no Estadão em 05.12.2015.

Há um belo momento de inflexão em A Resistência, já no terço final do romance, em que Sebastián, o narrador, fala sobre como está escrevendo o próprio “fracasso”, vacilando “entre um apego incompreensível à realidade – ou aos esparsos despojos de mundo que costumamos chamar de realidade – e uma inexorável disposição fabular, um truque alternativo, a vontade de forjar sentidos que a vida se recusa a dar”. Tal “vacilo”, contudo, é o que confere sentido à narrativa de Julián Fuks sobre adoção (de alguém por uma família; de qualquer pessoa pelo lugar onde se encontra, seja o ambiente familiar, seja a cidade ou o país em que vive), exílio e memória.

Filho de argentinos, nascido em 1981, o paulistano Fuks parece concentrado não em empreender uma espécie de recuperação da história familiar – e aqui nos eximimos de especular sobre o que seria “verdade” e o que seria “invencionice”, até porque o volume chega até nós como ficção –, mas em explicitar, tendo em vista o que é narrado, a sensação de desterro que ora une, ora desune seus personagens. Em capítulos curtos, e partindo de um conflito central, enunciado já no primeiro parágrafo (“Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adotado”), o narrador passeia tanto pelas recordações íntimas quanto pelas décadas recentes da história latino-americana, repletas de ditaduras sanguinárias, gente torturada e morta, órfãos, exilados, e o faz oscilando “ao infinito entre história e história”.

Os pais de Sebastián são psicanalistas argentinos que, por conta de sua posição militante, infensa ao status quo totalitário, se viram obrigados a fugir para o Brasil em fins da década de 1970, antes que fossem destroçados pelas engrenagens ditatoriais. Antes, ainda em Buenos Aires, adotaram uma criança, de quem jamais esconderiam esse fato. E, uma vez instalados em São Paulo, conceberam um casal de filhos. O núcleo familiar tem, assim, a marca indelével da violência que os atirou de lá para cá: pais argentinos, exilados, uma criança adotada, cujo nascimento “não foi narrável”, e dois outros filhos nascidos em terra estrangeira. Mas, em meio a tudo isso, em que consiste a “resistência” aludida pelo título?

Sob os nossos olhos, há “um livro sobre essa criança, meu irmão, sobre dores e vivências de infância, mas também sobre perseguição e resistência, sobre terror, tortura e desaparecimentos”, é verdade, mas também um objeto narrativo dos mais sólidos, que não procura ser invasivo ou indiscreto (não obstante os receios exprimidos pelo pai no penúltimo capítulo), mas, acima de tudo, intenta resistir ao que nos devasta: o esquecimento, a alienação e a inobservância do outro e de si.

Em um ambiente tão conflagrado e irascível quanto este em que vivemos hodiernamente, A Resistência aponta para a necessidade de um cuidado maior para com a história, tanto a privada quanto a pública. Noutras palavras, por mais rarefeita que hoje nos pareça a ideia de lar, seja no contexto familiar, seja no âmbito político-social, há que se pensá-la por meio da inclusão, jamais da exclusão. E o esforço de Julián Fuks, oscilando, conforme citamos acima, “entre história e história”, é algo assim compreensivo e inclusivo.

Notas sobre "A poeira da glória"

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto
Drummond

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::: No canto inferior esquerdo da capa de A Poeira da Glória, o editor teve a péssima ideia de colocar: “O livro que até mesmo o politicamente incorreto julgou imprudente”. Felizmente, o livro de Martim Vasques da Cunha não é algo assim leviano, e sua reflexão consequente sobre a literatura brasileira (e muito mais) não se permite confundir com ou por essa estupidez editorial.

::: Martim traça um panorama crítico (aqui numa acepção, vá lá, kantiana, mas jamais frankfurtiana, pelo amor de D’us) da literatura brasileira ao mesmo tempo em que reflete sobre as condições de possibilidade de nossa produção cultural e os mecanismos de recepção e discussão da mesma. Indo além, ele (doutor em Ética e Filosofia Política) contextualiza política e culturalmente autores e obras, utilizando-os como instrumentos para eviscerar a miserável alma brasileira, chegando, por fim, à rarefação própria da perquirição de cunho religioso.

::: Os estádios kierkegaardianos são utilizados com inteligência para fundamentar alguns aspectos da crítica. Para Martim, os literatos brasileiros raramente saltam do estádio estético para o estádio ético, e deste para o estádio religioso. Segundo ele, valendo-se também de Edmund Burke, falta-nos imaginação moral, e tal carência ecoa obliquamente o autoengano e a hipocrisia nacionais.

::: Há um câncer de ordem anímica que se perpetua por aqui. Os olhos estão voltados para dentro, para o “abismo de espelhos” do ego, e não para fora, para o outro, ou para o alto, seja para D’us, seja para a possibilidade de um reino dos fins que nos permitisse organizar racionalmente a vida em comum.

::: “A equivalência do bem e do mal, do certo e do errado, somada a uma ambiguidade literária que se assemelha a um abismo de espelhos, paralisa a sensibilidade nacional (…)”, ele escreve (pág. 38), e também (pág. 169) que “há um horror que se esconde na beleza — e nenhum intelectual quer ver isso. Prefere olhar para o outro lado e imaginar que há uma cordialidade na nossa vida interior que descarta qualquer chance de nobreza acima de tudo”.

::: Em sua leitura, Martim mergulha no centro tormentoso das obras (desde Gregório aos contemporâneos, com capítulos organizados por blocos temáticos que não se orientam, necessariamente, pela cronologia). A preocupação de teor moral, mas não moralizante, relê com olhos livres, por exemplo, um Grande Sertão: Veredas, em que Guimarães Rosa “faz um livro inteiro a respeito de um pacto demoníaco e, ousadia das ousadias, demonstra que esse fato é a raiz da alma brasileira” (pág. 429), pois o romance (e aqui parafraseio) é uma espécie de radiografia espiritual “de um momento crítico na história pessoal e política do Brasil” (pág. 409), uma raridade que se concentra no “único problema sobre o qual vale a pena refletir: o problema do Mal”, que “não é mera abstração; é uma força ativa num mundo incapaz de fazer algo a respeito” (pág. 430).

::: Tal visão de mundo é reiterada por diversas vezes ao longo do ensaio (de tal modo que não me assustei ao ler que Lavoura Arcaica é algo “sulfuroso”, catarticamente negativo, “a morte da ordem, o fim da inocência e a vitória do mal”, pág. 485), e é o fato de ser muito bem fundamentada (Platão, Agostinho, More, Kierkegaard, Voegelin etc., aos quais ele jamais recorre com gratuidade, mas no interesse mesmo de clarificar a tese exposta) que a torna (como afirmei acima) consequente.

::: Não se trata, em primeira instância, de “concordar” ou não com o autor, e muito menos de “gostar” ou “desgostar” do que ele escreve, mas, sim, de respirar fundo e abrir os olhos para algo que oferece subsídios (repito) bem alicerçados para compreendermos criticamente o estado terminal de nosso espírito (e o leitor que dê a acepção que lhe apetecer ao termo; nesse ponto, todas são aceitáveis para mim). Tal compreensão (minha, sua, de quem quer que seja) pode ou não se coadunar com as posições assumidas por Martim, pode problematizar todas e cada uma delas, mas o principal, a meu ver, é que no mínimo haja um real entendimento do que é exposto.

::: Em uma nação que se equilibra (?) sobre fraturas, Martim se pergunta (no corpo de um belo comentário à poesia de Alberto da Cunha Melo, pág. 586) “até que ponto somos realmente livres em um mundo destituído de sentido”. E o sentido não me parece algo primordialmente objetivo, solto na imanência e/ou na transcendência, uma coisa a ser agarrada lá fora. Um reordenamento interno se faz necessário, até porque (conforme a leitura de Voegelin d’A República de Platão) “o estado da psique individual, em saúde ou doença, expressa-se no estado correspondente” da sociedade em que nos debatemos.