Autopromoção desavergonhada

Autopromoção desavergonhada

1.

emil

No próximo dia 12 de novembro, quinta-feira, participarei do primeiro Encontro Mundial da Invenção Literária. Será no Teatro João Caetano, às 13 horas. Falarei um pouco sobre meus livros, projetos e fracassos em geral.
O site do EMIL divulgará os detalhes desse e dos outros eventos que acontecerão em diversos pontos da cidade, entre 12 e 15 de novembro.

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2.
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No começo de dezembro, estarei na Feira Internacional do Livro de Guadalajara, onde participarei de:

2.1 Destinação Brasil, 03/12: bate-papo com Ignácio de Loyola Brandão, Claudia Lage e Paula Pimenta, mediado por Gustavo Pacheco.
2.2 Lançamento da revista Machado de Assis #7, 03/12: debate com Gustavo Pacheco e Susana Ventura.
2.3 Lançamento da edição mexicana de Veia Bailarina, de Ignácio de Loyola Brandão, 04/12. Apresentarei La perla asesina. Historia de un aneurisma com Delia Juarez e Irene Selser.
2.4 Latinoamérica Viva, 05/12: bate-papo com William Grigsby, Margarita García Robayo e Andrea Jeftanovic, mediado por Jorge F. Hernández.

Para informações detalhadas sobre a programação, basta clicar AQUI.

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1986

Um conto.

Patricia-Piccinini

A árvore de Natal já estava na sala. A família a montou em silêncio, os quatro ali reunidos, dias antes da viagem. Aquele foi o intervalo doloroso de uma despedida, ou o seu início.
As malas ficaram no tapete, bem perto da árvore, esperando por eles, por sua partida, desde a véspera. Estavam no lugar que seria normalmente ocupado pelos presentes. Eram duas malas enormes (talvez não cogitassem voltar) e Junior as rodeava, pensando num jeito de sumir com ambas e impedir, assim, que o pai e o irmão fossem embora, arrastá-las até o quintal e escondê-las atrás da mangueira, no escuro, cobri-las com folhas e galhos, talvez com uma lona preta. Como se adivinhasse o que se passava na cabeça do menino, Domingos gritava do escritório, do quarto, da cozinha:
— Para de fuçar!
A mãe se fechou no quarto o dia todo, ele a ouvia resmungar e chorar sempre que o pai entrava para pegar alguma coisa. Domingos não respondia, entrava e saía calado. Nessas entradas e saídas, a porta mal recostada, rangendo, Junior entrevia garrafas de conhaque e de vinho pelo chão, ao lado da cama, e havia também um cheiro horrível que lembrava o de comida vencida, o quarto transformado numa geladeira imunda que alguém desligara.
As coisas apodreciam ali dentro; quem se daria ao trabalho de jogá-las fora?
Era muito raro que comessem juntos, à mesa, mas foi o que ocorreu na manhã do embarque, Conceição sentada à cabeceira, com Domingos à esquerda e Junior e João à direita. Não conversavam. Tudo o que se ouvia eram as xícaras aterrissando nos pires e as facas raspando as torradas. A expressão dela era a pior possível, os olhos fundos e muito vermelhos e os lábios trêmulos, a qualquer momento cairia no choro, desabaria sobre a mesa que fizera questão de colocar; pai e filhos esperavam por isso, mas não aconteceu.
Aquela foi uma manhã atípica, em que fizeram coisas que não costumavam fazer, primeiro o desjejum em família e, depois, na rodoviária, os abraços que trocaram. Junior olhava para João, as calças compridas, a camisa e os sapatos novos, a miniatura de um homem. Era apenas três anos mais velho. Não se parecia com o pai, exceto, naquele dia, pelos olhos de quem já não estava ali, mas noutro lugar, o lugar para onde embarcariam; os olhos deles já se tinham lançado na estrada. A mãe também percebeu e se ressentia disso, dos olhos, de como se comportavam, dançando com a distância antes mesmo de seguir viagem. Não queria que ninguém fosse embora. Queria que todos continuassem ali e não se movessem jamais, para lado nenhum.
Conceição e Junior permaneceram na plataforma, as mãos dela sobre os ombros do filho enquanto os outros entravam no ônibus e se acomodavam. Depois, eles acenaram e o ônibus os levou embora. Ela afinal chorou um pouco, o rosto inchado, dizendo que não iam demorar, voltam logo, você vai ver, passa bem rápido.
Mesmo dentro da Belina, enquanto dirigia de volta para casa, manteve a mão direita grudada no ombro, ausentando-se apenas para trocar as marchas. A mão pesava um pouco mais a cada segundo, as unhas começavam a machucá-lo. Ele a encarou. Mesmo inchado, o rosto da mãe era bonito, o formato arredondado, os olhos claros e os cabelos longos e naturalmente loiros. Parecia sempre prestes a sorrir, tanto que era um choque quando chorava, como se isso não pudesse ser admitido naquele espaço ou não combinasse com ele. Mas, ultimamente, chorava com tamanha frequência que a ideia de um sorriso brotar ali é que se tornara deslocada, quase absurda.
Ela estacionou o carro na garagem e pediu a Junior que fechasse o portão, não, é melhor trancar logo de uma vez.
— Coloca o cadeado?

Era tempo de férias. Os dias se alongavam insuportavelmente, o calor ardia e, às vezes, no meio do quintal, à sombra da mangueira, Junior invejava a terra fria sob os pés e especulava maneiras de enterrar-se inteiro e não morrer. Foi quando lhe ocorreu construir um pequeno aposento, um minibunker a alguns metros da superfície, com espaço suficiente para instalar um colchão com um travesseiro e uma escrivaninha na qual colocaria um abajur e algumas revistas em quadrinhos muito bem escolhidas. Uma escada desceria em espiral junto ao tronco da mangueira; quando voltasse à superfície, a primeira coisa que teria do mundo exterior seria aquela densa sombra abençoada.
Usou parte dos trocados que o pai lhe dera para comprar um caderno no qual rascunhou diversas plantas do minibunker. Sentado no chão, arrastava os pés e sentia a terra entre os dedos e gostava disso. Calculou que precisaria de uma pá. Teria ainda de convencer a mãe a permitir que transferisse um colchão, um travesseiro, um abajur e a escrivaninha para debaixo da terra. A ideia de ir ao encontro dela era desagradável, mas, depois de pensar bastante a respeito, percebeu que não tinha escolha.
Foi encontrá-la à mesa da copa, folheando uma revista. As janelas escancaradas, o vento forte esvoaçava as cortinas. O lugar estava preenchido por uma luz branca que se refletia na camiseta também branca que ela usava e em sua pele, nos olhos e nos cabelos: vista à distância, era um fantasma benévolo, a alma iluminada de alguém.
Ele se aproximou.
Conceição bebia vinho tinto de uma taça enorme. Suas mãos tremiam um pouco. Ele quase perguntou a ela se sentia frio, se não queria que fechasse as janelas. Em vez disso, tratou de mostrar as plantas que desenhara.
— Quem te ensinou essa palavra? — ela perguntou.
— Que palavra?
— Mini… bunker?
— Meu pai um dia me explicou o que é bunker. Ele me mostrou num livro.
— Seu pai?
— Foi. É um lugar que você constrói debaixo da terra para se proteger.
— Você não precisa de um lugar debaixo da terra para se proteger.
— Acho que todo mundo precisa.
— Não, não precisa. Você está errado.
— Fizeram um monte noutros lugares. Fizeram na Alemanha, por causa da guerra.
— Na Alemanha?
— Aham.
— E você está na Alemanha, Juninho?
— Não. Em Goiás.
— Goiás está em guerra?
— Não, mas pode entrar.
— Como? Contra quem?
— Eu não sei. Mas a Alemanha antes da guerra era igual aqui. E então a guerra começou.
Ela respirou fundo e, sem querer, soltou um meio arroto.
— Seu pai fica mostrando essas coisas e te deixando impressionado. Seu pai está errado. Vocês dois estão errados. Eu preciso ter uma conversa muito séria com o seu pai.
— Ele está viajando, mãe.
— Eu sei, eu sei, eu — ela começou a gritar, mas se calou, balançando a cabeça como se negasse e negasse e negasse algo, sabe-se lá o quê. O vento circulava livre de uma janela a outra, parecia mudar a direção repentinamente, no meio do cômodo. Uma das cortinas esvoaçava para fora, ensaiando uma fuga. Falou mais baixo agora: — Eu sei que ele está viajando. Vou ter essa conversa quando ele voltar, entendeu? Quando ele voltar.
— Aposto que ele vai gostar disso aí.
— Não interessa. Você não vai se mudar para um túmulo.
— É um bunker, mãe. Um minibunker, na verdade. Porque é pequeno. Só vai caber eu lá.
— Pois eu chamo de túmulo. Você não vai se enterrar vivo. Eu não vou deixar. Não agora que seu pai e seu irmão deixaram a gente aqui e sumiram naquele fim de mundo. Não agora. Daqui a uns anos, se você quiser. Quando você já for adulto e eu tiver morrido, mas não agora. De jeito nenhum. Você precisa ficar bem aqui, comigo.
— Mas eu vou ficar aqui com você.
— A culpa é do seu pai.
— Eu não vou morar lá embaixo, mãe.
— Eu não preciso disso.
— Não precisa do quê? Do minibunker?
Desde que se referira ao minibunker como um túmulo pela primeira vez, Conceição falava como se estivesse sozinha, os olhos semicerrados, ainda balançando a cabeça. De repente, ela o encarou, ele nunca vira seus olhos tão vermelhos, ela o encarou e disse, quase gritando:
— E como é que essa coisa vai se sustentar? Hein? Você não abre um oco no meio do chão e espera que ele continue assim, oco. Você não é uma minhoca, não é uma toupeira. É?
— Não.
— Pois a terra vai desabar em cima dessa sua cabeça. Você consegue imaginar isso? Você consegue se imaginar enterrado vivo com seu abajur e suas revistinhas. Consegue? Consegue imaginar uma coisa dessas? Consegue ver?
— Eu… eu tive um pesadelo uma vez.
— Pois eu tenho pesadelo toda noite — ela resmungou, despencando a cabeça com tal força que deu a impressão de que fosse cair no choro ou no sono, talvez mergulhar por entre as próprias pernas, romper as tábuas do assoalho com as unhas e, repentinamente convencida da ideia (um lugar debaixo da terra para se proteger), cavar um bunker para si.
— A terra caindo na sua cabeça? — Junior perguntou.
Depois de um instante, talvez precisasse pensar um pouco antes de responder, não estivesse prestando atenção e corresse atrás das palavras, as do menino e as dela própria, em atraso, retardatária, ela levantou a cabeça outra vez, os olhos arregalados, talvez tivesse se lembrado de uma coisa muito ruim, um daqueles pesadelos, o pior deles, fosse qual fosse, o mais terrível, e sussurrou:
— Algo do tipo. Algo do tipo.
E, inesperadamente, puxou-o com força para um abraço muito forte, depois mandou que parasse de pensar naquelas bobagens e se sentasse à mesa e lhe fizesse companhia, estou sozinha aqui, você não pode me deixar sozinha, pode? Ele obedeceu.
— Você precisa cuidar de mim.
Bebericava o vinho e folheava a revista e acariciava as mãos e os cabelos do menino, ele louco para sair, voltar para o quintal, ir para o quarto, para a sala, para qualquer outro lugar do casarão. A carência da mãe era tão implacável e desesperada que não seria surpresa acaso, em algum momento, ela o devorasse, a cabeça primeiro.

Junior passava a maior parte do tempo no quintal, brincando sozinho, pensando em um jeito de abrir um oco no meio do chão e fazer com que permanecesse assim, oco. Quando não estava no quintal, esgueirava-se pelos cômodos do casarão, fingindo não ouvir quando a mãe o chamava. Mas havia momentos em que ela o cercava e abraçava e dizia coisas muito doces que contrastavam com o cheiro, um ar fétido de coisa defunta, que exalava, como se a língua tivesse morrido em sua boca e apodrecesse lá dentro. Um pedaço escuro de carne podre, aquele cheiro. Ele sentia vontade de xingá-la e sair correndo, de vomitar, mas aguentava firme, jamais diria nada que a chateasse, que a machucasse. Prendia a respiração, esperava que o soltasse e desaparecia outra vez.
Ela não dormia muito, pelo menos não nos horários normais. Passava muitas noites em claro, vendo televisão. Comia nas horas mais esdrúxulas. Certa vez, ele a viu com um prato cheio de arroz, rodelas de tomate e batatas fritas às oito e pouco da manhã. A cada dois ou três dias, varria o casarão. Não passava a vassoura por todos os cômodos, apenas pela sala e pelos quartos, às vezes pela cozinha. Ela se cansava, bebia mais um pouco e cochilava no sofá. Junior se aproximava, afagava seus cabelos, todo o cuidado para não acordá-la, postado logo atrás, a uma distância segura daquele cheiro, dela, para que não o devorasse (a cabeça primeiro).
O casarão era uma construção do final do século XIX. As paredes derruídas sugeriam mais história do que o lugar tinha na verdade. Era só uma casa muito velha e mal cuidada, sem nada de especial, encravada no centro de uma cidade também muito velha e mal cuidada, sem nada de especial. O que havia eram as histórias de fantasmas envolvendo antigos moradores, coisas repetidas em noites de verão quando os primos se amontoavam em algum quarto, luzes apagadas, a fim de assustar e serem assustados. Alguém, por exemplo, teria se enforcado na despensa, coisa que os pais negaram categoricamente para depois ralhar com os mais velhos, deixem de besteira, parem de assustar os menores. Os defuntos tinham nomes. Era isso o que mais assustava Junior, o fato de que até mesmo uma alma penada ou, como diziam, uma assombração pudesse ter um nome e, pior, que esse nome pudesse ser pronunciado, não por ele, não era louco, mas por qualquer outra pessoa, pelos primos, pelo irmão e até mesmo pelos pais, respeitem fulano, respeitem o descanso de fulano, isso não é brincadeira, isso é coisa séria, e ele pensava: como é que alguém descansa enforcado na despensa? A corda no pescoço, os pés sem tocar o chão, suspensos, corpo dependurado, quase ouvia a corda ranger, a madeira estalar no escuro, chamavam de despensa, mas nada guardavam ali, era um cômodo abandonado, as janelas fechadas, grossa poeira escura, mofo e breu.
Mas isso fora em outros verões, quando a casa se enchia de primos e primas, o mundo e as coisas tinham gosto de Natal e as férias, a despeito das histórias mal assombradas, aconchegavam tudo e todos. Agora, o pai e o irmão estavam fora como nunca estiveram antes e no casarão restavam ele e a mãe, sozinhos, e o telefone que, uma vez por semana, como se encarnasse a distância daqueles que ligavam, parecia tocar não sobre a mesinha junto ao sofá da sala, mas dentro de um sonho ruim repleto de estradas intermináveis e pessoas que simplesmente iam embora e desapareciam lá adiante, na poeira.

Certa vez, como resultado de uma discussão sobre o que sintonizar na TV, ele foi arrastado por João até a despensa e trancado ali. Eram férias, também, e havia primos pela casa e um amigo do irmão, que o ajudaram, João não era tão maior, tão mais forte, e Junior se debatia, agarrava móveis, portas, portais, arranhava as paredes e o chão e berrava, ameaçando, implorando. A sensação de ser lançado no escuro. Era um breu intenso, inabarcável, não havia muitas frestas, uns poucos furos no telhado. Ficou agachado, as costas apoiadas na porta, cabisbaixo, trêmulo. Não saberia dizer quanto tempo durou. Talvez uns poucos minutos, o irmão não era mau, é provável que se tenha arrependido em seguida, quando a raiva arrefeceu, e abriu a porta após ouvir a promessa de que nada seria dito aos pais, não vou contar nada, só me deixa sair daqui, por favor, me deixa sair. Talvez muito tempo, meia hora, uma, duas horas, o irmão não era mau, mas suscetível aos primos, ao amigo, a molecada ali sozinha, largada nos intestinos do casarão, eram férias. A sensação permaneceria para sempre, o ar abafado que o empurrava para baixo e contra a porta, o medo que o acachapava, a própria tessitura do breu, o negror como que se infiltrando nos poros e se instalando sob a pele, para sempre. Saiu mais pesado dali, pesado e escuro, tanto que, depois, o minibunker só lhe pareceria aprazível porque sempre o imaginava muito bem iluminado, a lâmpada potente do abajur transformando aquele oco subterrâneo em uma pequena e claríssima antessala do paraíso.

Na véspera da partida, o pai o levou até o escritório e abriu um enorme mapa sobre a mesa.
— Nós estamos aqui — disse, apontando para um ponto minúsculo no centro do mapa. — Eu e seu irmão viajaremos para cá.
Junior acompanhou o dedo que subia e subia e quase se perdeu. Era uma distância enorme, maior que um braço esticado do pai. Viajariam até o fim do mapa, e ele não conseguia imaginar um lugar tão distante ou que duas pessoas pudessem percorrer uma distância daquelas assim, sem mais nem menos, feito aquele dedo. Temeu que o pai e o irmão não conseguissem voltar ou, pior, que demorassem tanto tempo para voltar que não se lembrariam de seu nome, do nome da mãe ou de seus próprios nomes, dois andarilhos desmemoriados, sujos e empoeirados como os vaqueiros que costumava ver à beira da estrada quando, em certos domingos festivos, iam todos almoçar na fazenda de um tio.
Naquela noite, no escritório, depois de mostrar para onde viajaria, o pai explicou que a razão de tudo era uma excelente oportunidade profissional, e que levaria João porque ele nunca tinha viajado para tão longe de casa e da mãe, coisa imprescindível, disse, para o amadurecimento de qualquer pessoa. Junior gostava quando o pai usava aquelas palavras, “oportunidade profissional”, “imprescindível”, “amadurecimento”, por mais que não compreendesse a maior parte delas, e, no entanto, de alguma forma, soubesse exatamente o que elas significavam.
— A gente vai ficar quarenta dias lá e, conforme for, se as coisas derem certo, a gente volta e busca você e a sua mãe. De acordo?
Ele se imaginou fazendo aquele trajeto. Uma viagem interminável, até o fim de tudo. Sentiu um aperto no coração, mas fez um esforço tremendo para sorrir. O pai gostou de vê-lo sorrir, e para ele foi bom pensar (embora soubesse que não era verdade) que toda a aventura dependia exclusivamente disso, de um sorriso, de ele estar de acordo.
— Você tem que me prometer que vai cuidar da sua mãe enquanto eu e seu irmão estivermos fora.
Nas semanas seguintes, observando a mãe se arrastar bêbada pelo casarão e chorar ao telefone sempre que o pai ligava ou que ela própria ligava para alguma amiga a fim de desabafar, era o que dizia sempre, você está aí?, está ocupada?, desculpa, preciso conversar com alguém, não aguento mais isso, não aguento essa história, ele sentia crescer algo que ainda não conseguia nomear, uma sensação terrível de insegurança, uma espécie muito particular de terror que parecia vir de fora, talvez do alto do mapa, do lugar onde o dedo do pai finalmente estacionara, mas que na verdade nascia e crescia ali mesmo, entre as paredes do casarão, dentro da mãe, e se espalhava a partir dela, ensombrecia tudo e entrava pelos poros de Junior feito o escuro da despensa, tornando-se também parte dele. O pai lhe dissera, você tem que me prometer que vai cuidar da sua mãe enquanto eu e seu irmão estivermos fora, e ele concordara, como não concordaria?, mas, agora, não tinha a menor ideia de como fazer isso.
O aparelho de som 3 em 1 ficava na copa ou sala de jantar que raramente usavam. O pai tinha uma coleção de discos de música clássica e às vezes Junior pedia que colocasse um, qualquer um, para que, apartados do resto do casarão, ouvissem. Fizeram isso naquela noite em que Domingos, mapa aberto sobre a mesa no escritório, descreveu para o filho, com a ponta do dedo, a viagem que faria com João. Como sempre, Junior sentou-se no tapete e o pai, depois de fechar a porta que dava para a sala onde a mãe assistia à televisão, puxou uma cadeira para junto da estante e escolheu um disco. Tchaikovsky era um dos favoritos, talvez pelos canhões da Abertura 1812; ele sabia da predileção do caçula por tiros e canhões.
A maior parte dos discos ficava em uma espécie de maleta azul, presente de Conceição no Natal do ano anterior. Domingos se sentava, depois arrastava a cadeira para junto da estante, abria a maleta com todo o cuidado e escolhia um disco. Não tinham capas, mas ficavam dentro de envelopes brancos. Ele retirava o escolhido do envelope e o soprava antes de encaixá-lo no prato. Em seguida, pegava o pequeno braço com a agulha, ao que o disco começava a girar, e pousava no início da primeira faixa. Chiados e pequenos arranhões e, então, as cordas. Recostava-se na cadeira e olhava para o filho. Junior permanecia quieto, e era sempre estranho quando aquela melodia, que lhe parecia tão fora do tempo e de todo o resto, fora de tudo, ecoava na boca do estômago e depois começava a subir bem devagar, até a garganta. O pai não percebia nada. Apreciava o interesse do filho. Comentava com a mulher, com os parentes, orgulhoso, esse aí tem bom gosto, ouve música clássica.
Naquela noite, quando terminaram de ouvir, o pai lhe estendeu alguns trocados e pediu que não esquecesse o aniversário da mãe, na primeira semana de janeiro.
— Não gaste tudo com bobagem. Compre alguma coisa para ela, qualquer coisa. Acho que eu e seu irmão não voltaremos a tempo.

No dia do aniversário da mãe, as amigas dela invadiram o casarão logo cedo. Conceição ainda não tinha bebido muito naquele dia. Assistia à televisão, a taça de vinho sobre o braço do sofá, quando elas entraram sem bater ou tocar a campainha, meia dúzia de mulheres sorridentes falando ao mesmo tempo e carregando sacolas com garrafas de cerveja e vasilhas cheias de comida. Uma delas trazia um bolo.
Levaram a mesa da copa e as cadeiras para o quintal e logo estavam todas sentadas à sombra da mangueira, sobre o que deveria ser o minibunker, jamais construído. Falavam ao mesmo tempo, e cada vez mais à medida que bebiam. Uma delas colocou um toca-fitas sobre a mesa, as pilhas estão novinhas, disse, o que vocês querem ouvir? Conceição se levantou, animada, espera, espera, e, correndo, desapareceu dentro de casa. Voltou logo em seguida trazendo uma fita cassete.
Em algum momento, estavam ali fora havia duas horas ou mais, a fita sendo ouvida pela terceira ou quarta vez (O aniversário é meu ou o quê?), Conceição se levantou e correu outra vez para dentro do casarão; de alguma forma, em meio à barulheira das amigas e do som ligado, ela ouviu ou, talvez seja melhor dizer, adivinhou o telefone tocando lá dentro.
Voltou alguns minutos depois.
Não corria como antes, ao trazer a fita. Tampouco sorria. Sua expressão estava mais próxima daquela à mesa do café, na manhã em que Domingos e João partiram, os olhos vermelhos e fundos, os lábios trêmulos. Ela se aproximou de Junior, estava sentado no chão, as costas apoiadas no tronco da mangueira, agachou-se e, voz embargada, disse que o pai tinha ligado.
— Ele deixou um abraço para você. Um abraço bem forte. Ele está com muitas saudades. Sabia disso? Que ele está com saudades? Que ele sente a sua falta? A minha? A nossa falta?
Então, sem qualquer aviso, quando dava a impressão de que se levantaria para retomar o lugar à mesa e na festa, as amigas continuavam a beber e falar ao mesmo tempo, alheias a tudo, ela o sufocou com um abraço e o cheiro putrefato que exalava pela boca, a língua podre lá dentro e talvez mais, o corpo outrora dependurado pelo pescoço num dos cômodos, na despensa, o defunto de que os primos mais velhos falavam para assustá-lo, o cadáver de alguém que vivera e morrera no casarão, talvez Conceição o tivesse devorado, a cabeça primeiro, o fedor agora quadruplicado, quintuplicado, ela o abraçou por muito tempo e com muita força, tanta que ele mal conseguia respirar, as unhas lhe machucando as costas e o pescoço.
Junior gritou.
Uma das mulheres, sem se virar, disse a ela que deixasse o menino em paz, senta aqui, sua cerveja está esquentando. Ela recolheu os braços, mas não se levantou de imediato. Quando se viu livre, ele tossiu e a empurrou com uma das mãos, o punho fechado, sai daqui, o que a desequilibrou, por muito pouco não caiu sentada no chão. Olhou para Junior como se não o reconhecesse.
— Sai daqui — ele repetiu, mais alto.
Conceição abriu um sorriso torto, anormal, seu rosto agora tão vermelho quanto os olhos, a lua vermelha de um planeta distante, e reiterou, a voz subitamente distanciada, enregeladora:
— Seu pai ligou. Ele te deixou um abraço. Disse que estava com saudades. Ele sente a nossa falta.
Junior quis gritar, você já me falou, eu já sei do abraço e das saudades, sei de tudo, de toda essa porcaria, mas não disse nada, levou a mão esquerda ao pescoço que doía e baixou a cabeça.
Mesmo cabisbaixo, viu Conceição se levantar com enorme dificuldade, cambalear até a mesa, puxar uma cadeira e se sentar.
A festa transcorreu até o anoitecer.

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Uma versão anterior deste conto foi publicada na antologia O Livro Branco (Record), organizada por Henrique Rodrigues.

Notas sobre o beisebol

Beisebol

Enquanto avançavam, belissimamente exaustivas, as catorze entradas do jogo desta madrugada pareciam se desligar da realidade imediata. O estádio flutuava noite adentro, carregando a massa expectante de torcedores que prendiam a respiração e aguardavam não o desfecho elusivo, mas sua forma, o modo como se desenharia lá embaixo, no campo.

Foi um jogo de avanços paulatinos e placar apertado, intranquilo, em que os roubos de bases serviam não para alvejar o adversário (parecia evidente, depois de um tempo, que tal coisa não aconteceria), e, sim, para tentar estrangulá-lo, pouco a pouco. As entradas extras dão bem a medida dessas sucessivas e não raro frustradas tentativas de estrangulamento. Não é fácil dar cabo de alguém dessa maneira.

O beisebol tem essa característica fantasmagórica, e não o digo pelo que a coisa toda tem de vintage (e tampouco por aquele filmezinho insuportavelmente agridoce com Kevin Costner). É um esporte onde os tempos mortos não são descartáveis, não são pura e simplesmente mortos, pelo contrário. São os tempos mortos que, para mim, conferem graça ao beisebol, mais até do que o home run, e isso porque eles estão sempre carregados de uma espera gloriosamente otimista, graças à qual mesmo uma rebatida simples ou um walk irrompem com a exuberância de um acontecimento inaudito.

Adoro quando o rebatedor, depois de vencer o duelo com o arremessador (quatro erros deste e o adversário ganha seu passe livre), atira com displicência o bastão para o lado, despe-se dos apetrechos de proteção e dá a corridinha até a primeira base, conquistada muitas vezes com contenção (ao controlar a ansiedade e evitar os swings no vazio) e inteligência (ao perceber o momento ruim do arremessador e simplesmente permitir que ele se enrole).

Adoro as entradas intermináveis, pesadelo de qualquer arremessador, em que as bases vão sendo ocupadas e a possibilidade de um grand slam se instaura com sua carga apocalíptica. Mesmo que nada aconteça, mesmo que o arremessador e os defensores evitem o pior, mesmo que nem uma mísera corrida seja anotada, ou exatamente porque isso também é possível, que nada aconteça, o beisebol se desenrola com a beleza e a verdade intrínsecas à própria vida: tudo pode acontecer, algo pode acontecer, nada pode acontecer. Noutras palavras, dados seu tempo, seus acontecimentos e/ou desacontecimentos, suas esperanças e frustrações, o beisebol se confunde com a vida por inteiro, no que ela tem de bela ou insuportável, gloriosa ou patética, fatalista ou gratuita.

O beisebol é um esporte que exige outra relação com o tempo. Ele exige que nos abandonemos, sem a promessa de um desfecho, sem promessa alguma, aliás. Pode acabar agora, ou não. Pode continuar indefinidamente. Pode não oferecer qualquer consolo, ou pode (como aconteceu nesta temporada com os torcedores do Chicago Cubs, time que não vence o campeonato desde 1908) acenar com a possibilidade de uma catarse, possibilidade a ser confirmada ou negada, dolorosamente, e, neste caso, não resta alternativa além da resignação. Mais um ano, menos um ano; mais uma vida, menos uma vida; outubro que vem, quem sabe.

“Décima-segunda entrada e rumo à eternidade”, dizia o narrador, ontem. Eis o espírito. Diante do impasse, da incerteza, da insegurança e da imprevisibilidade, a eternidade torna-se quase mensurável. Um homem gira o bastão. Outro respira fundo, sentindo a bola com a palma da mão e os dedos, os olhos fixos na zona de strike. É um momento que se prolonga, como se o próprio tempo respirasse fundo e aguardasse. O beisebol é esse intervalo entre um silêncio e outro. É a espera. Ou, melhor dizendo, é aquilo que confere significado à espera. Viajamos junto com a bola, afinal, independentemente do que aconteça com ela. Abandonados no vazio. Soltos. Plenos de expectativa e beleza. Vivos.

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Carpintaria narrativa

Resenha publicada em 23.10.2015 no Estadão.

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O escritor chinês Mo Yan (em português, “Não fale”; pseudônimo de Guan Moye) recebeu muitas críticas quando, em 2012, recebeu o Nobel de Literatura. O poeta Ye Du comparou seu conterrâneo a uma meretriz. Salman Rushdie chamou-o de fantoche do governo chinês, pois não assinara uma petição pela soltura do crítico literário Liu Xiaobo, condenado à prisão como signatário da Carta 08 (manifesto pela democratização da China) e agraciado com o Nobel da Paz em 2010 (que não foi receber por estar na cadeia). Assim, é ótimo que seja lançado no Brasil um romance como As Rãs, cuja estupenda carpintaria narrativa justifica a premiação do autor e mostra que ele não é uma mera marionete do Partidão.

No primeiro capítulo, já nos deparamos com o narrador, Wan Perna (que também atende por Corre Corre e Girino), e alguns colegas de escola se deliciando, em meados dos anos 1960, com uma iguaria: carvão. “Mas é gostoso mesmo, tio”, diz alguém. A política do “grande timoneiro” Mao causava fome generalizada, e Mo Yan aborda o passado traumático em tom coloquial e bem-humorado, sem, contudo, aliviar o choque. É procedimento-padrão em todo o romance.

As Rãs devassa sete décadas da história chinesa e é estruturado em cinco partes. As quatro primeiras são cartas escritas por Girino, ex-militar e agora aspirante a dramaturgo, e endereçadas a um escritor japonês, o qual considera um mentor. A quinta parte é uma peça escrita por Girino, que reelabora, em chave onírica e delirante, algumas das histórias contadas nas quatrocentas páginas anteriores. No centro, estão uma tia do narrador, Wan Coração, e a política de controle de natalidade levada a cabo pela ditadura maoista.

A ambiguidade da tia é muito bem explorada por Mo Yan. Médica de boa ascendência e comunista de carteirinha, teria um brilhante futuro nos altos escalões não fosse pelo noivo, piloto da aeronáutica, virar um desertor. Trabalhando em sua remota terra natal, no nordeste do país, moderniza as técnicas de parto e salva muitas vidas. Mas, quando o controle de natalidade é instituído, em 1965, ela incorpora sem hesitar as novas diretrizes. Cada casal só pode ter uma criança; caso seja menina, uma nova tentativa é permitida após oito anos. A tia se ocupa, então, de abortar crianças “ilegais” e fazer vasectomia nos homens que já cumpriram a cota.

A inflexibilidade da tia se choca com a vida de Girino quando a mulher dele, Wang Renmei, tendo já uma menina, ignora a lei e engravida de novo. Os desdobramentos são trágicos. “Será que alguém que leva o senso de responsabilidade a esse ponto pode ser considerado gente? Aí já virou um deus ou um demônio”, diz o pai de Girino.

Aqui e ali, o romance adquire um tom sombrio, seja ao descrever uma “assembleia de denúncia” da Revolução Cultural, cuja insânia irrompe sem aviso, seja ao narrar as consequências não raro desastrosas do controle de natalidade. Em meio a isso, os personagens centrais tateiam em busca de expiação e redenção. Mas tudo cobra seu preço, o que é explicitado na peça que encerra o livro. “Cada criança é única e insubstituível”, lemos um pouco antes. “O sangue que manchou as mãos jamais será lavado? A alma atormentada pela culpa jamais encontrará alívio?”

Ressalte-se, por fim, o significado do título As Rãs (no original, Wa). Como diz uma personagem: “Por que a palavra ‘wa’ pode significar tanto ‘rã’ como ‘bebê’?”. Por que o choro de um bebê que saiu do ventre da mãe é parecido com o coaxo de uma rã? Por que os bonecos de barro da nossa terra muitas vezes têm uma rã no colo? E por que a deusa criadora da humanidade se chama Nü Wa?”. Ao colocar de pé uma narrativa tão forte, na qual se entrelaçam morte e nascimento, sanidade e loucura, fanatismo e libertação, Mo Yan não leva em consideração as críticas à sua persona e traz ao proscênio uma obra de arte..

Da impossibilidade do vazio

O princípio básico da física cartesiana é o da constância da quantidade de movimento. Descartes entendia por matéria apenas aquilo que é extenso (res extensa). O mundo físico é, assim, inteiramente constituído por corpos. A realidade física é absolutamente homogênea. Não há espaços vazios (estes seriam ocupados por corpos invisíveis aos nossos olhos, ou ignorados pelos nossos sentidos pouco confiáveis). Não há ausência de matéria no mundo físico. Espaço e extensão são sinônimos, e as coisas não extensas são aquelas próprias do mundo abstrato, do pensamento. O mundo material é organizado conforme a movimentação dos corpos que o constituem. No entanto, como é possível que haja movimento uma vez que inexiste o vazio? Noutras palavras, o que legitima o supracitado Princípio da Constância da Quantidade de Movimento? Em que ele se baseia? A economia conceitual cartesiana entende o movimento como algo localizado, uma mudança de lugar, aquilo que faz com que os corpos passem de um lugar a outro. Ele escreve n’O Mundo ou Tratado da Luz (p. 29-31): “Considero que há uma infinidade de diferentes movimentos que duram perpetuamente no mundo. E, após ter observado os maiores, que constituem os dias, os meses e os anos, noto que os vapores da terra não cessam de subir em direção às nuvens e de lá descer, que o ar está sempre agitado pelos ventos, que o mar jamais está em repouso, que as fontes e os rios fluem sem cessar, que os mais firmes edifícios por fim entram em decadência, que as plantas e os animais não fazem mais que crescer ou se corromper, em suma, que não há nada, em lugar algum, que não se altere”. Há uma eterna constância de movimentos. Algo aparentemente para de se mover aqui, mas outra coisa principia a se mover acolá. Há, além da constância, uma concomitância, pois um determinado corpo não se move daqui para algum espaço vazio, mas, não havendo vazio, ao se reposicionar, ele empurra outros corpos para alhures. E, reitere-se, no mundo físico, o movimento é constante e permanente, pois “não há nada, em lugar algum, que não se altere”. E é esse movimento que, em sendo a matéria divisível e mais ou menos concentrada aqui ou ali, explica (por exemplo) as diferentes formas e consistências dos diversos corpos. Descartes repousa sua física na metafísica, como também o faz Leibniz (grosso modo, o divórcio entre uma coisa e outra só ocorrerá com Newton e o advento da física meramente descritiva, conforme percebido por Kant). E ele o faz porque intenta fundamentar a necessidade de algo (o citado Princípio) que, em si, não é logicamente necessário. O tempo, em Descartes, é introduzido por D’us quando Ele dispõe o movimento. O tempo é uma sucessão de instantes assinalada pela constância do movimento numa realidade física em que a própria expressão “espaço vazio” é contraditória, pois, se há espaço, não há vazio. Tudo está preenchido, o tempo todo. Tudo é extensão.

A queda em Mishima

Resenha publicada em 03.10.2015 no Estadão.

mishima

Foi em 25 de novembro de 1970. Acompanhado por alguns membros de sua organização extremista (a Tatenokai, ou “Sociedade do Escudo”), o escritor Yukio Mishima (pseudônimo de Kimitake Hiraoka) invadiu um quartel-general do exército japonês, em Tóquio, e tentou convencer os soldados a dar um golpe de Estado. O objetivo era restituir os poderes ao imperador. Em vista da indiferença alheia, Mishima proferiu um discurso nacionalista e então cometeu seppuku, o ritual suicida dos guerreiros japoneses. Tinha 45 anos e concluíra havia pouco a escrita de A Queda do Anjo, último volume da tetralogia Mar da Fertilidade.

O período compreendido pelos quatro romances (os outros três são Neve de Primavera, Cavalo Selvagem e Templo da Aurora, todos já lançados no Brasil pela Benvirá) vai de 1912 a 1975 e, em seu conjunto, eles evisceram os problemas advindos do avanço da modernidade ocidentalizante no Japão, com a “entropia moral” e das tradições que o autor enxerga nesse processo. O personagem central das narrativas é Shigekuni Honda e nos três últimos volumes nós o encontramos em períodos distintos de sua vida, relacionando-se com pessoas que ele acredita serem reencarnações de seu amigo Kiyoaki Matsugae (personagem de Neve de Primavera).

Em A Queda do Anjo, Honda é um idoso e rico juiz aposentado que enxerga no órfão Toru Yasunaga o espírito de Kiyoaki e, por isso, decide adotá-lo. O conflito maior do romance se dá pela psicopatia de Toru, que “gostava de olhar as pessoas como se fossem animais num zoológico”. Ele parece simbolizar a patologia do apodrecido tecido social japonês, e Mishima é extremamente bem-sucedido na forma como desenvolve não só a relação do jovem com o velho, mas a própria constituição de suas personalidades e o modo como ambas acabam por encaminhá-los ao desfecho em que a cegueira (literal e figurativa) tem um papel importantíssimo.

O personagem de Toru é, talvez, a melhor descrição de uma personalidade psicopata desde o Stavroguin de Os Demônios, romance de Fiódor Dostoiévski. Há, inclusive, a longa transcrição dos trechos de seu diário, quando Toru envolve a noiva, que despreza, numa teia de intrigas cuja finalidade é destruir a moça. “A única questão é que você encontrou uma maneira de passar a vida”, diz Honda a Toru, ao entender o que aconteceu. “E uma maneira sombria, sem doçura nenhuma, pode-se dizer.”

O rapaz parece não ter muita escolha, pois ter “que viver era mais negro do que o negro mais soturno”. Por causa, sobretudo, da perversidade desse personagem, Mishima discorre com eficácia acerca daquela já citada “entropia moral”, percebendo nela um sintoma da doença japonesa que tanto o incomodava, calcificada na morte das tradições e no fim de qualquer possibilidade de restituir a grandeza à nação. Independentemente de concordarmos ou não com a posição política do autor, e ressaltando o fato de que ela não contamina a sua escrita, importa encarar A Queda do Anjo e os demais volumes da tetralogia como obras extraordinárias e que carregam, em si, todo o espírito de uma época.

"Dientes negros"

Fragmento de la novela Dientes negros.
Traducción de Julia Tomasini.

Están sentados a la mesa del bar, otra vez en silencio. Ella es muy joven y él no sabe lo que ella hace, no recuerda quién los presentó, no sabe con quién ella llegó a aquella mesa, él llegó después y ella ya estaba allí. Dos huérfanos, ella bahiana, él de Goiás, sus tierras natales devastadas, sus familias, y él piensa sobre lo que ella le dijo antes, eso de estar envenenados, algo así, y pregunta:
¿Qué quisiste decir con eso?
¿Eso qué?
Tú dijiste algo de estar envenenados hasta los huesos. O a partir de ellos. Algo así.
Sí, lo dije.
¿Qué quisiste decir?
Tú lo sabes.
No estamos enfermos. La vacuna funciona. Estamos todos vacunados aquí. Nuestros huesos están a salvo.
No, no lo están. Tú lo sabes, la vacuna no elimina la enfermedad. Solo impide que los síntomas aparezcan, eso sí. Construye un montón de pequeñas jaulas para los antígenos y transforma nuestro cuerpo en un inmenso calabozo. Somos todos bastillas ambulantes. Estamos todos enfermos, y enfermos hasta los huesos. La enfermedad está dentro de nosotros y nunca va a salir.
Está dentro de nosotros y nunca va a salir, repite él.
Hugo sabe de, siempre lo supo. Leyó sobre, vio y oyó en la televisión. Pero nunca pensó al respecto. Nunca lo dijo en voz alta.
Las filas, las personas tomando la vacuna cuando todo parecía perdido, cuando parecía que la desgracia llegaría hasta ellos, inclemente, cuando parecía inevitable. Antes, los sobrevivientes migraban hacia el sur y el sudeste y eran aislados y estudiados, cuando no asesinados por algún militar osado o por civiles descontrolados, que parecían decir, y a veces decían, gritaban:
¿Por qué no se quedaron allá y murieron?
La cosa dentro de ellos, paralizada, pero dentro de ellos para siempre, y después dentro de él, de Hugo, y de todos los otros, todos debidamente vacunados.
Calabozos ambulantes.
Hugo piensa en un tío al que cierta vez, hace mucho tiempo, le dieron un tiro y la bala nunca salió de su cuerpo. Ni se la quisieron sacar. Los médicos dijeron que causaría más daño abrirlo y sacar la bala que dejarla adentro. Las radiografías, el proyectil visible. ¿La enfermedad en nosotros es así, visible como una bala?
¿Qué es lo que tú haces?, él pregunta.
Estudio artes escénicas. Pero no sé actuar. Quiero escribir.
¿Escribir obras de teatro?
Escribir obras de teatro.
Yo tenía una amiga que había estudiado artes escénicas. Ella actuaba.
¿Aquí?
En Goiânia. Casada con un amigo mío que era escritor.
¿Escritor?
Sí, escritor. Novelas, cuentos. Su nombre era Daniel.
¿Ellos…?
Sí, claro. Ellos, todo el mundo. Todo el mundo.
Las filas eran enormes y había personas tomando la vacuna varias y varias veces y creyentes orando y vendedores ambulantes en las puertas de los puestos de vacunación y periodistas y la vacuna siempre se terminaba y las personas esperaban días en las filas y las filas nunca disminuían y las personas se desesperaban y había tumultos y peleas y muertes, incluso con el gobierno que decía que la cosa había sido controlada, que no se preocuparan, y la cosa no quedó del todo clara realmente, cómo el avance de la epidemia fue tan avasallante y, después, cómo fue contenida con tanta rapidez. Las personas no quisieron pensar al respecto. Él, Hugo, no quiso pensar al respecto. Todo el mundo quería simplemente olvidar.
¿Te gusta el teatro?
Es todo teatro, él responde sin reflexionar mientras piensa en los días de la vacunación, en las filas, en los tumultos, en todas aquellas personas en el bar, en la calle, por la ciudad, fuera de ella, fuera de todo, y también piensa en las personas en las áreas devastadas, los que no murieron y no se fueron, los que insistieron en quedarse, en las ruinas, en el medio de la nada, en los lugares ahora sin nombre.
Es todo teatro, ella repite y ríe e inmediatamente él se está riendo también.
Beben más y no pasa mucho tiempo para que él le pregunte si está con alguien. Hugo no miente:
Vivo con un tipo.
¿Cómo se conocieron? ¿Cómo sucedió todo?
De la forma en que siempre sucede.
Renata prende otro cigarrillo, aspira y dice que será el último, que después de ese se va. Ellos no tienen mucho más que hacer por allí.
Vivo aquí cerca, en la Frei Caneca.
¿Por qué te vas tan temprano?
Si yo no estuviera aquí, conversando contigo, ¿te habrías quedado aquí hasta ahora?
No.
Si tú no estuvieras aquí, conversando conmigo, yo me habría ido después del segundo cigarrillo.
Toman una última dosis de arak, ella termina el cigarrillo y dice:
¿Vamos?
Hugo paga las bebidas, se despiden de los demás y cruzan la calle completamente congestionada, filas y filas de automóviles parados desde antes de la Av. Paulista hasta vaya a saber dónde, del infinito al infinito.
Se besan en el ascensor porque todavía en la acera ella le dijo que nunca, en toda su vida, había besado a nadie dentro de un ascensor.
Mi cuarto está hecho un desastre.
Ella guarda los discos en el estante de la sala, los discos debidamente catalogados, y tiene una vitrola comprada algunos años antes en la Benedito Calixto.
Regalo de mi padre. Mi último cumpleaños con él.
Su voz tiembla un poco al decir esto.
La vitrola, pequeña, está conectada a dos cajas de sonido enormes. Ella pone un disco y deja el volumen bajo. La música se esparce por el piso de la sala como agua liberada de un acuario cuyas paredes se rompieron.
Es uno de los primeros de Tom Waits. ¿Te gusta Tom Waits?
Sí, me gusta. Tú eres tan joven.
Tú no tienes treinta años.
Tú no tienes veinticinco.
Se sientan en el sofá.
Quizás haya sido realmente un borracho. O quizás solo estuviera actuando, solo cantara como borracho.
Hay formas de descubrirlo.
Las informaciones disponibles no son confiables.
Él trata de recordar el nombre de la canción, pero no lo logra. Como si adivinara, ella dice:
You’re Innocent When You Dream.
Él sonríe: Sí.
Ella le da un beso en la boca, como si quisiera apropiarse de su sonrisa. Cuando se aleja un poco, ambos están sonriendo.
¿Quién era japonés?, él pregunta. ¿Tu madre o tu padre?
Mi madre. Murió cuando nací.
Lo siento.
Siéntelo.
¿Y tu padre?
Hace tres años. ¿Me das un beso?
La besa y ellos van hasta el piso en el momento en que la música, a punto de ahogarlos, termina de inundar todo el apartamento.

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Chalámov

Resenha publicada em 29.08.2015 no Estadão.

varlam

Em um pequeno “epílogo” à edição espanhola dos Contos de Kolimá, o tradutor Ricardo San Vicente traça uma diferença importante entre as literaturas de Varlam Chalámov e Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Lembremos que o autor de Crime e Castigo também amargou um período como prisioneiro na Sibéria, condenado sob a acusação de conspirar contra o czar Nicolau I, e que essa experiência nos foi contada em uma de suas obras-primas, Recordações da Casa dos Mortos. No entanto, San Vicente chama a nossa atenção para o fato de que, em Dostoiévski, os sofrimentos são encarados como “um caminho de purificação”, ao passo que Chalámov “observa em cada passo, em cada minuto, em cada sopro de ar do campo de trabalho, um degrau a mais no caminho da desumanização do homem”.

Em vida, Chalámov era mais conhecido como poeta. Não é difícil perceber em seus contos uma carga lírica acentuada, que, no entanto, não camufla a crueza extrema do que é narrado. A pesquisadora Irina P. Sirontiskaia (que conviveu com o escritor em seus derradeiros anos de vida e assina o prefácio do primeiro volume) cita o próprio Chalámov: “É necessário e possível escrever um conto que seja indistinguível de um documento. (…) A nova prosa contemporânea só pode ser criada por pessoas que conheçam perfeitamente o próprio material”.

Os “documentos” são, assim, indistinguíveis do homem que os produziu e do que ele vivenciou na “escola negativa” que eram os campos de trabalhos forçados. Adentramos com ele a tarimba do oficial Naúmov para acompanhar um jogo de cartas que termina mal (em Na Fé), seguimos a trilha de um penhasco com dois detentos que procuram um cadáver a fim de lhe furtarem a camisa e as ceroulas (em De Noite), somos informados sobre como os prisioneiros mensuravam o frio em Os Carpinteiros (o pior é abaixo de 53 graus negativos, quando “o cuspe congela no ar”), vemos como o narrador assume a missão de contar a história que deveria ser de responsabilidade de outro escritor, morto nos campos, como que para honrá-lo (em O Encantador de Serpentes), lemos uma belíssima descrição da morte do poeta Óssip Mandelstam, outra vítima dos campos (em Xerez), e nos perdemos com o narrador nos labirintos da burocracia stalinista (em A Trama dos Juristas).

São, ao todo, 33 narrativas, e em todas vislumbramos “esse embotamento da alma, esse frio espiritual”, o “frio cortante, aquele mesmo que transformava o cuspe em gelo no ar”, atingindo “a alma humana”. E, com isso, até para que pudessem sobreviver, os homens se viam obrigados a prescindir de qualquer esperança e a viver “como vivem a pedra, a árvore, o pássaro, o cachorro”, e, no entanto, mais apegados à vida e mais resistentes às intempéries do que eles.

Depois de sobreviver ao “chamado do Norte” e a fim de dar o seu testemunho, uma vez que, lá, tudo “o que lhe era caro se transforma em cinzas, a civilização e a cultura o abandonam no mais curto período de tempo”, Chalámov recobre com a verdade de suas palavras a vida nua daqueles desgraçados e a sua própria.

Não há, em suma, nada que se assemelhe a uma purificação nos Contos de Kolimá. Há, sim, o recrudescimento de tudo o que é espúrio e inumano, alimentado pela selvageria tanto da natureza, quanto dos indivíduos nela abandonados. O homem é gradativamente reduzido à animalidade mais básica, até se tornar um mero feixe de nervos, reagindo quase instintivamente ao que acontece ao redor. Para dar conta de tamanha obscuridade, só mesmo a clareza brutal, para não dizer brutalista, desse gênio literário.

Exílio irredimível

Resenha publicada no Estadão em 25.08.2015.

bazar

A temática do desterro se faz presente em boa parte da melhor literatura produzida (vide autores tão díspares quanto Sebald e Appelfeld), e é possível ler o novo romance de Luis S. Krausz como um autêntico representante dessa vertente. De fato, o ótimo Bazar Paraná talvez possa ser descrito como um mapeamento afetivo-familiar do desterro. Muito embora, em uma nota preliminar, o horrendo termo “autoficção” seja utilizado para se referir ao livro, o melhor é que o encaremos como uma “obra da imaginação” ou uma “heteroficção”, pois, ficcionalizando os outros e suas deambulações, o autor nos possibilita vivenciar a experiência do exílio que os constitui.

O mote do romance é uma viagem. Acompanhado pela avó e pela irmã, o narrador vai ao interior do Paraná, em meados dos anos setenta, visitar uma colônia agrícola mantida há décadas por refugiados alemães. Vários deles são sobreviventes da perseguição nazista, bem-sucedidos no modo como refizeram suas vidas nas entranhas inóspitas do Brasil, e alguns procuram manter “um pedaço vivo do passado”, cultivando a língua e a cultura da nação que, pouco antes, assassinara vários de seus parentes e amigos, e quase eles próprios.

Um exemplo dessa disposição pode ser verificado num dos personagens descritos por Krausz com sua clareza de estilo e elegância peculiares: “No recolhimento de seu exílio paranaense, o Dr. Max Hermann Maier tornava-se o guardião de relíquias que, como se congeladas no tempo, tinham ali nos trópicos uma sobrevida espantosa, enquanto os modelos originais, dos quais eram derivadas, tinham, muito antes, sido arrasados em solo europeu”.

A viagem e a narrativa se prolongam por três dias, mas são décadas e décadas cobertas por rememorações feitas às mesas e em salas de estar. O narrador passeia pelas casas e pelas vidas daqueles que o recebem, dando ao romance uma estrutura episódica, em que cada visita oferece uma nova perspectiva dessa grande “metáfora do destino de um grupo fadado ao desaparecimento”. A inadequação talvez seja o elemento mais forte, pois são pessoas “que se sentiam europeus em Israel, judeus na Europa, brasileiros nos EUA e passavam a vida em meio a dúvidas sobre qual seria, afinal, o lugar que lhes cabia no mundo”.

Dentre os relatos mais pungentes, estão o do casal Hinrichsen (em cuja fazenda o narrador e seus familiares se hospedam), com suas coleções de cartões-postais e de selos sublinhando a distância e a sensação de exílio; do Dr. Maier, condecorado na 1.ª Guerra e que jamais vira sua sensação de “germanidade” desaparecer, ainda que seus familiares que permaneceram na Alemanha tenham sido “deportados, em vagões de gado, para um destino desconhecido no Leste”; e de Lisbeth Neu, que optou por viver num kibutz, “pois via como única resposta digna, depois de acontecido o que aconteceu”, estabelecer-se em Israel.

Krausz dá forma a essas e outras histórias com extremo cuidado; o romance tem um andamento melancólico e parcimonioso. Os relatos se imbricam e se iluminam, alargando o horizonte narrativo, sem, contudo, recorrer às facilidades do sentimentalismo e da nostalgia fácil. Ao fim, Bazar Paraná oferece a seus personagens a possibilidade de um lar – o próprio romance, lugar em que suas vozes são reconstituídas e entregues à nossa fruição.

Na serenidade e na pompa

PriebkeHochzeit

“(…) Como fizera com grupos de judeus alemães convertidos ao catolicismo às vésperas do início do genocídio, no pós-guerra o Vaticano colocou sob sua proteção antigos oficiais (nazistas), altos burocratas do partido (nazista), ex-dirigentes de grandes empresas, cujas burras tinham sido abarrotadas pelo esforço de contingentes aparentemente inesgotáveis de trabalhadores escravos, encaminhando-os para postos de trabalho respeitáveis em cidades como Buenos Aires e Mendoza, Assunção, La Paz ou (…) Santa Cruz de la Sierra, onde os esperavam cargos em empreendimentos impecavelmente organizados, não obstante o ambiente caótico e imprevisível das cidades latino-americanas (…). Para essas localidades dirigiram-se, na serenidade e na pompa dos transatlânticos que desafiam todos os mares e todas as tempestades, e de lá para o conforto de aposentadorias bem fornidas, beneficiados, na dignidade de sua idade avançada, por temporadas em balneários, termas e estações de águas, as quais, tinham certeza, haveriam de fazer parte, um dia, outra vez, do Reich, como Karlsbad, na Tchecoslováquia, ou Dorna Vatra, na Romênia. Graças a nomes falsos e passaportes estrangeiros, concedidos de boa vontade pelos países hospitaleiros cujas juntas militares os acolhiam, visitavam, também, suas cidades natais, na Alemanha desnazificada, onde encontravam antigos camaradas de fileiras em comemorações que se estendiam noite adentro, onde visitavam parentes convenientemente esquecidos de antigos sonhos alemães, apaziguados pelo Wirtschaftswunder, pelo milagre econômico. (…)”

Trecho (p. 66-7) de Bazar Paraná (Benvirá),
romance de Luis S. Krausz.