De volta ao deserto de Oz

De volta ao deserto de Oz

madmax

Ozploitation é o nome que se dá ao cinema de gênero (horror, comédia ou ação) feito com baixo orçamento, num lugar (Austrália) e num período tão ricos quanto específicos (décadas de 1970 e 80, sobretudo). Lindezas como Walkabout, Wake in Fright, Long Weekend e os primeiros Mad Max são frutos dessa onda. Em anos recentes, volta e meia algum cineasta mergulha no outback e sai com um The Rover, por exemplo. Ou com o estupendo Mad Max: Fury Road (ainda que este não seja low budget). Melhor ainda que o diretor seja o mesmo dos três filmes anteriores, George Miller. Assim, por mais que seja um produto também direcionado ao público hiperglicêmico, desatento e pouco inteligente que em geral frequenta os multiplexes, o novo Mad Max é belissimamente furioso no modo como nos devolve àquele mundo pós-apocalíptico que, filme após filme, piora um pouquinho, se vocês se lembram bem. Tom Hardy substitui Mel Gibson, mas o anti-herói é o mesmo em sua solidão irredimível, para não dizer insanidade galopante. Não estou com paciência para resumir o enredo, mas gostaria de assinalar o seguinte: se os três filmes anteriores dizem respeito a uma fuga, um aspecto que muito me agrada neste aqui é o fato de que a fuga acaba se tornando um retorno dos mais tresloucados, como se, do outro lado do Mar Vermelho, Moisés se deparasse com a porra do Egito. O ritmo do longa é insano, e Miller está aí para mostrar o quanto a maioria dos “jovens” diretores (e alguns velhos, como Michael Bay) entende bem pouco de montagem e edição de som, e de como trazer à luz um filme (DE AÇÃO) cuja ossatura é o que se vê, sem a necessidade de poluir a estrutura com pelos, banha e “alma”. Lembremos do que ele fez com míseros quatrocentos mil dólares no primeiro (e ainda melhor, para o meu gosto) filme da série e vislumbrarmos agora o que esse autêntico contrabandista (na acepção scorseseana do termo) faz com cem milhões — em vez de ser engolido pela asséptica engrenagem hollywoodiana, ele joga sangue e areia nos olhos de todos nós. Aliás, coisa rara, o uso do 3D é não só justificável, mas imprescindível para a completa imersão num road movie que, a certa altura, oblitera a road para alcançar uma espécie de Valhalla cinemático. Quando o mundo já foi para o saco, volta a nos dizer Miller, não faz muita diferença para que lado você corre. Importa, assim, conceber algo que se sustenta quase que única e exclusivamente pelo movimento e pelo som, pela ação; de certo modo, é como se afinal subíssemos a bordo do trem dos Lumière. Veja e reveja, antes que o mundo acabe.

Londres, LIVERPOOL, Amsterdam

Texto publicado na São Paulo Review em 05.2015.

Liverpool Fans

Abril, 28
Ele não tem dormido bem, e uma gripe se instalou há alguns dias, meia gripe, que não o arrebenta de vez e tampouco o deixa em paz. Sentado em uma sala de embarque em Cumbica, estica as pernas e respira fundo, o tema de Era uma vez na Américavoejando na cabeça, o que é estranho (pensa), pois não revê o filme há tempos. Quando foi a última vez? Há um ano, talvez. Ou dois. Não se lembra. Quando anunciam o voo, ele respira fundo outra vez, mas não se levanta de imediato. Ele não tem dormido bem, o corpo e a cabeça tão enevoadamente distantes que parecem ser de outra pessoa. A caminho do aeroporto, tão logo entrou no táxi, pediu ao motorista que encostasse alguns quarteirões à frente, precisava sacar algum dinheiro, não tenho com o que pagar pela corrida. Entrou e saiu do banco o mais rápido que pôde, feito um assaltante calejado, John Dillinger à solta na Mooca, e se deparou com o taxista esfregando o rosto com as duas mãos. Teria fechado o porta-malas na própria cara. Ele se perguntou como é possível, mas não disse nada. Quer ir ao médico? Pego outro táxi. Não, respondeu o sujeito, um inchaço na testa, algum sangue, os dois olhos bem vermelhos, vam’bora. Tentava sorrir, mas a dor parecia intensa. O voo é tranquilo. Filmes, vinho. O corpo se ressente da meia gripe e das longas horas sentado. Vê um documentário sobre Robbie Fowler e se arrepia com o Koprugindo, e se lembra por que está aqui. E, alta noite, dentro da enorme caixa de metal com asas, meio doente e cansado, apesar de, ele sente o corpo e a cabeça menos distantes, ele se sente ele mesmo pela primeira vez em um bom tempo.

Abril, 29

A oficial da imigração não faz muitas perguntas. Sorri quando ele explica a razão maior de estar ali, depois começa a rir, seu time perdeu ontem, querido. Ele não sabia. Estava no avião. Ela se diz torcedora dos Spurs. No metrô, a caminho do hotel, na longa viagem Londres adentro, ele vê num jornal aberto à sua frente: Hull City 1×0 Liverpool. Ele suspira, e então pensa: Foda-se. Eu estou aqui. Está frio e chuvoso e venta muito na Russell Square. Ele caminha. Eu caminho apressado até o hotel. É bem cedo. O quarto é maior do que esperava. Tomo um banho, ligo a televisão. Cedo, muito cedo. Cochilo por algumas horas. Meio-dia quando afinal deixo o quarto. No meio do interminável corredor que atravesso, rumo aos elevadores, uma pequena porta leva ao que parece ser o refeitório dos funcionários. O lugar está lotado. Orientais sentados às mesas, almoçando. Falam sem parar. Riem. Não ouço a língua inglesa, até que um deles se dirige a mim: Are you lost? Eu sorrio para ele, e então volto ao corredor. Contorno a Russell Square e desço pela Montague até o British Museum. Viro à direita na Great Russell. Pequenas multidões compactas à frente do edifício. Adentro o museu. Alemães, franceses. Parecem apressados, mas quem não consegue ficar muito sou eu. Volto à rua. Sigo pela Great Russell até a Tottenham Court, e dali até Giles Circus. Então, é a Charing Cross. Compro um guarda-chuva e uma boina ridícula. O vendedor ri da minha cara. Peço um desconto. Ele nega. Digo que estou resfriado. Ele fala de uma farmácia acolá. E depois ri mais um pouco. A chuva não para. Lá embaixo, na Trafalgar Square, a Coluna de Nelson me dá as costas. Adentro a National Gallery e saio três horas e meia depois para um dia ensolarado, a praça tomada por artistas de rua, estátuas humanas, orientais histéricos e paus de selfie. Corro e me escondo numa livraria. São quase cinco da tarde e não comi nada o dia todo. Vejo o cartaz de uma peça de David Mamet, American Buffalo, com Damian Lewis (torcedor do Liverpool,a scouser born and bred) e John Goodman. Entro num pub chamado Round Table, numa ruela cujo nome esqueci. Peço um pint de London Pride. Quando termino, peço outro e fish&chips. Meus olhos ardem de sono e gripe. A garçonete italiana pergunta o meu nome, de onde venho, o que eu faço. Diz que um brasileiro já trabalhou ali. De onde ele era? Porto Alegre. Digo que Porto Alegre não fica no Brasil, e fico feliz que ela entenda a piada. Uma hora e meia depois, banho tomado, e sem a maldita boina na cabeça, pego o metrô na Russell Square. Desço na estação da Holloway Road. Entrevejo o Emirates Stadium adiante, mas sigo na direção contrária. Caminho bastante até o pub de um camarada turco, amigo de uma amiga, The Bedford Tavern, Seven Sisters Rd. Os dois me esperam a uma mesa. Seis pints de ales diversas e duas doses de Germana (sim) depois, o turco só me cobra por um pint, agradece pela companhia e me expulsa dali com um abraço, como Hemingway teria feito com Montale (embora, na ocasião, apenas Hemingway estivesse bêbado e/ou ressacado). Descubro que a estação mais próxima do pub é a de Finsbury Park. Volto sozinho e cantarolando para o hotel. Penso num poema que terei esquecido pela manhã, felizmente.

Abril, 30

Caminho até a Tate. Dois quilômetros e meio, quase três. Cruzo o Tâmisa pela Waterloo Bridge. Fico por quase uma hora na sala com os Rothko. E mais um bom tempo diante de um Lucian Freud. O dia escorre em meio às telas. Não gostaria de estar em nenhum outro lugar. Janto num restaurante italiano a poucas quadras do hotel, na Southampton Row. A garçonete pergunta o meu nome, de onde venho, o que eu faço. Mexicana. Sou do Brasil. Ela abre um sorriso e me pergunta, em espanhol, por que fugi de lá. Eu rio alto, e essa é a minha resposta.

Maio, 1º

Na British Library, vejo uma Vulgata do século IX, um manuscrito de Locke e uma peça de Marcadé, século XIII. E uma Torá também muito antiga, não me lembro de que século. O Livro não é D’us, claro, mas os meus pulmões se enchem de ar.

Maio, 2

A viagem de trem até Liverpool é confortável. Meu vagão está quase vazio. Durmo um pouco. Chove e faz muito frio na cidade. Deixo as malas no hotel e volto à rua. Tomo um pint de Guinness no pub do Crown Hotel. Ainda faltam umas quatro horas para o jogo. As caixas de som despejam Be my baby no lugar. Uma garçonete canta com as Ronettes e pisca o olho para um freguês que está ao balcão, um velhinho trajando um agasalho igual ao de Shankly. Peço outro pint e o café-da-manhã. Sento a uma mesa para comer. Uma avassaladora sensação de familiaridade toma conta de mim, algo que só senti antes em Jerusalém, seis anos atrás. Anfield. A multidão toma as ruas próximas do estádio. A cor vermelha. Pego meu ingresso e caminho até o portão designado. Lá dentro, sento e olho para o gramado, depois para o Kop. A hora seguinte voa. O lugar se enche bem rápido. Os times entram em campo. Estou, estamos todos em pé. You’ll never walk alone parece brotar da ossatura do lugar, do próprio concreto, e é como se fôssemos apenas os instrumentos, o meio de a música ascender e se fazer ouvir. Depois, preciso de alguns minutos para conseguir me concentrar no jogo. Coutinho mete um golaço, mas o time segue descompensado, com Johnson errando miseravelmente (no que os torcedores do QPR cantam, com ironia: You’re so lovely…). Fer empata o jogo em meados do segundo tempo. Gerrard erra um pênalti, mas nos salva com um cabeceio similar àquele da final da Champions League, há dez anos. Sinto um nó na garganta quando me ocorre que posso ter visto seu último gol em Anfield. As ruas são de novo tomadas pela multidão vermelha. Eu me sinto tão feliz que decido ignorar a chuva e o frio e caminhar de volta para o hotel. Alguns cantam: Steve Gerrard, Gerrard / He passes the ball fourty yards / He’s big and he’s fucking hard / Steve Gerrard, Gerrard. É como se o chão que pisamos estivesse eletrificado e nos reacendesse, pois logo todos cantamos. A sensação é ainda mais forte depois, quando adentro um pub tomado por vermelhos. Lá pelo terceiro pint, alguém pergunta se atravessei a porra do oceano só para ver o jogo. Respondo que atravessaria a nado, se precisasse. Logo, estou fraternalmente cercado por iguais. Um deles berra no meu ouvido que, se sou um torcedor de verdade, devia cantar Fields of Anfield Road. Começo (Outside the Shankly Gates / I heard a Kopite calling…), e logo estão todos cantando (berrando), pulando, cerveja atirada para tudo que é lado. Me empurram, me abraçam, me puxam os cabelos, me beijam as bochechas. Andre, you’re so fucking lovely. Tenho cerveja nos cabelos, nas roupas, no espírito. You’re so lovely / You’re so lovely. Pois é. We had dreams and songs to sing / Of the glory, round the fields of Anfield Road. E eu nunca vou caminhar sozinho (até porque a essa altura talvez não conseguisse).

Maio, 4

Dou um pulo em Amsterdam, e estamos em pleno Dodenherdenking. Passeio, bebo e como por lá. Em geral, os holandeses são sorridentes e simpáticos, mas sem aquele ranço pegajoso dos cariocas. No fundo, estão cagando para você. Acho ótimo. Num boteco da Rozengracht, o garçom espanhol tenta me tirar. Um brasileiro que aprecia Guinness?, ele diz, na língua de Natalia Zeta. Está fazendo graça para umas meninas que estão por ali, cacarejando. Sua mãe quem me doutrinou, respondo. Ele pergunta se já fui ao Red Light District. Retruco que parei de pagar por sexo aos treze anos. Bebo mais um pint, um silêncio tenso tomou o lugar. Saio com um tremendo sorriso VSF na cara, e não deixo gorjeta.

Maio, 5

No voo de volta a Londres, o avião chacoalha desgraçadamente. O sujeito ao lado entra em pânico e grita que é jovem demais para morrer. Pergunto quantos anos ele tem. Quarenta e dois. Eu: Fine! I’m 35. Estou sorrindo sacanamente, não sei o motivo, pois sinto tanto medo quanto ele. O cara olha para mim, aterrorizado: Aren’t you scared? Faço uma careta e respondo: I’m a Liverpool supporter. I’m used to be scared.

Houellebecq como sintoma do presente

Resenha publicada em 25.04.2015 no Estadão.

 

Submissão” é uma tradução literal de ‘islã’, e também o título do romance mais recente do francês Michel Houellebecq, originalmente lançado em meio à tormenta causada pelo atentado terrorista à redação do Charlie Hebdo. No livro, passado em 2022, acompanhamos a ascensão de um muçulmano ao poder na França e, por decorrência, uma islamização do ensino e da vida naquele país. Mas tudo isso parece ter lugar à distância, afastado pelos olhos e pela voz do narrador-protagonista, François, um acadêmico da Sorbonne, especialista na obra de Joris-Karl Huysmans (1848-1907).

A despeito da breve sinopse acima, é bom que se esclareça que Houellebecq é um sintoma do presente, não um profeta. Em seus piores momentos, e o romance em pauta não está entre eles, ele tende a investir em um cinismo de jantarzinho pseudointelectual, esbarrando nos “temas urgentes” que assolam a Europa e o globo. O leitor se sente sardônico e esperto, ‘atualizado’, com suas imaginações. É o esteta maior da literatura-moleque, surfando na rarefação pós-moderna, na misoginia, na violência, na islamofobia, jogando, brincando com o medo que estrangula o Velho Mundo.

No entanto, o foco de Submissão não diz tanto respeito à situação política naquelas circunstâncias, mas, antes, ao alheamento do narrador, e é isso que salva o romance. Houellebecq cria mais um de seus protagonistas entediados, cínicos e irrespondivelmente medíocres (“Muitos homens se interessam pela política e pela guerra, mas eu apreciava pouco essas fontes de diversão, sentia-me tão politizado quanto uma toalha de rosto, o que era uma pena”), coloca-o em um contexto político-social explosivo, o qual é esmiuçado e discutido no decorrer de toda a narrativa, é verdade, mas, ao mesmo tempo, esvazia esse contexto em função do pragmatismo torpe que rege as relações entre as pessoas, independentemente do estado de coisas a que estão submetidas.

François é um acadêmico qualquer, do tipo que se envolve sexualmente com alunas (e é engraçadíssimo como uma delas o deixa para se mudar com a família para Israel, dados os prováveis resultados das eleições), um sujeito amorfo que, não por acaso, bebe Meursault, encara as mortes dos pais com desfaçatez e, eventualmente, ensaia se render à nova ordem. Seus motivos são egoístas, se é que existem motivos (por mais consciente que seja da situação, ele parece reagir ao que acontece, dia após dia). E seu destino, numa sacada brilhante do autor, é devidamente antecipado pela escolha do tempo verbal utilizado no derradeiro capítulo do livro.

Como sempre, Houellebecq desliza feliz pelo intestino grosso europeu. Submissão joga com medos e expectativas, mas o faz por meio de um personagem que simboliza tudo o que putrefaz no velho continente: a contaminação da academia, o ideal de um patriarcalismo insustentável, o intelectualismo inócuo, a depauperação familiar e afetiva, etc. De certo modo, o romance funciona como um elogio do reacionarismo e, ao mesmo tempo, como uma elegia, ou mesmo um réquiem. Se os fascismos são “uma tentativa espectral, uma visão de pesadelo, falsa, para tornar a dar vida a nações mortas”, Houellebecq ao menos se limita a confabular com os fantasmas, desinteressado (ou incapaz) de reviver o que quer que seja. Com ele, viajamos ao futuro – mas não saímos do lugar. Em se tratando desse autor, é um bom sinal.

Conhecimento e reconhecimento em "Eu sou trezentos: Mário de Andrade – vida e obra"

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Por Eduardo Sinkevisque
(PNAP-R/FBN)

Eu sou trezentos: Mário de Andrade — vida e obra, novo livro de Eduardo Jardim, apresentação de Renato Lessa (Edições de Janeiro/Ministério da Cultura/Fundação Biblioteca Nacional, 2015, 255 páginas), move-se em dois sentidos prioritários. Dá a conhecer e a reconhecer Mário de Andrade, persona central da cultura brasileira nos anos 1917-1937. É essa a tese, a da persona central, justamente, defendida por todo livro, conforme detectou com precisão seu apresentador.

Até o momento, dispúnhamos do perfil biográfico Mário de Andrade por ele mesmo (1971), de Paulo Duarte, ou os retratos de Mário confeccionados por vários artistas. Dispúnhamos da “autobiografia”, com curadoria e texto de Telê Ancona Lopez, Eu sou trezentos, trezentos e cinquenta (1992). Dispúnhamos também de inúmeras cartas de (e para) Mário, entretanto estava para ser escrita uma biografia estrito senso de Mário de Andrade.

As cartas da extensa coleção de Mário a inúmeros destinatários e de inúmeros remetentes vêm sendo estudadas, editadas e, algumas, reeditadas dos anos 90 para cá, principalmente por Marcos Antônio Moraes. Os aspectos biográficos desses textos são inegáveis, porém uma biografia estrito senso, enfatizo, não havia.

O esforço de Eduardo Jardim em Eu sou trezentos: Mário de Andrade — vida e obra preenche a falta aludida. Chega-nos em boa hora, uma vez que se comemoram, em 2015, os 70 anos da morte do “pai” do Modernismo Brasileiro.

As cartas de (e para) Mário fazem parte significativa das fontes consultadas por Eduardo Jardim. Ao lado da “autobiografia” de que se valeu Jardim para compor seu novo livro, junto com a leitura das cartas, temos uma biografia sobre uma “autobiografia” em Eu sou trezentos: Mário de Andrade — vida e obra.

Aludi, no início, a dois movimentos básicos com que se move a inédita biografia de Mário de Andrade. Explico. No primeiro movimento, Eduardo Jardim nós apresenta um Mário de Andrade conhecido, principalmente, daqueles leitores familiarizados com o poeta, prosador (contista, romancista), ensaísta, missivista, folclorista, professor, pensador/re-pensador do Modernismo Brasileiro e diretor do Departamento de Cultura de São Paulo (1935-1938).

Ou seja, para o leitor especialista ou familiarizado, a biografia recente de Mário é um reconhecimento. Não obstante, não é um reconhecimento banal, ou é qualquer reconhecimento, pois há certa singularidade na composição do tipo feita por Eduardo Jardim e nas relações/interpretações tecidas entre vida/obra. No segundo movimento, Eduardo Jardim propõe um Mário de Andrade nunca visto donde é possível extrair conhecimento, aprendizado. Isto é, os não leitores de Mário, fundamentalmente, aqueles não especialistas aprenderão com a biografia.

Há, entretanto, em Sou Trezentos: Mário de Andrade — vida e obra, uma virtude que une as duas espécies de leitores contemplados pelo livro, nos dois movimentos que organizam o livro. Virtude com a qual os leitores são brindados. Trata-se do modo como Eduardo Jardim compõe a narrativa. Trata-se do saboroso narrador do livro. Especialistas e não especialistas irão se deliciar com a prosa de Eduardo Jardim que, como destaca Renato Lessa, é uma biografia em “estilo suave de escrita”, “quase uma conversa com o leitor”. Nem por isso, esvaziada de argumentos, de pesquisa, de documentação. Há uma tese nessa conversa macia e escorreita, fluida, que, como disse, detecta Renato Lessa: entre os anos de 1917-1937, Mário de Andrade ocupa lugar central na cultura brasileira como agente pensador e transformador.

O principal argumento de Eduardo Jardim para a tese defendida na biografia é o de que, no Brasil, nenhum outro escritor teve tanta importância quanto Mario de Andrade como artista, formulador de uma ideia de Brasil e animador cultural.

O autor se apóia em documentação, inclusive iconográfica, de acervos como os da Fundação Biblioteca Nacional, Casa de Rui Barbosa e do IEB/USP.  Lê a obra poética, a obra em prosa de ficção e a ensaística de Mário de Andrade. Lê, sobretudo, a coleção de cartas do autor de Macunaíma a diversos destinatários/de diferentes remetentes, como as cartas para (e de) Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Oneyda Alvarenga etc.

A bibliografia teórica é consistente e atualizada. Com ela, Eduardo Jardim solidifica sua narrativa, confere caráter ensaísta à biografia. É exemplo de leituras de fontes secundárias textos como os de Antônio Cândido, Telê Ancona Lopez, Marcos Antônio Moraes etc. Sem mencionar textos críticos sobre Mário assinados pelo próprio Eduardo Jardim, e de críticos como Costa Lima, e textos de filósofos como Hannah Arendt e Walter Benjamin.

O narrador elegante, delicado, cuidadoso do livro é de matriz benjaminiana. Ele dá conta de narrar da infância à morte de Mário, em 8 capítulos, em prólogo e em epílogo, de modo eficaz. De modo a ir além da informação. Eduardo Jardim transmite Mário, propaga Mário às gerações de modo breve, claro e conciso, colocando Mário mais próximo do leitor, no colo, praticamente, do leitor. A organização das matérias em capítulos curtos, com seções curtas, corrobora para a concisão e clareza do estilo.

Eduardo Jardim é em Eu sou trezentos: Mário de Andrade — vida e obra benjaminiano, de O Narrador Observações sobre a obra de Nicolai Leskow, na medida da troca de experiência com o leitor ao narrar. Dá o Mário conhecido, o reconhecido e o “seu Mário” por meio da narrativa artesanal que faz com que o leitor possa se sentir em sua companhia, como se acompanhasse mesmo uma conversa, uma memória, uma lembrança sobre o sujeito biografado. Com a narrativa, Jardim corporifica Mário, a ponto de afirmar, no epílogo, que Mário mais do que mentor do Modernismo foi sua encarnação.

O livro é panorâmico, dá-nos uma visão global, geral de Mário e sua atuação cultural no Brasil desde sua estréia como poeta, seus primeiros contos, até seu (provável) último poema “Meditação sobre o Tietê”.

Jardim aparentemente trabalha com certa tradição da história e crítica literárias brasileiras de explicar a obra por meio da vida do autor estudado. No Brasil, desde o século XVIII, passando pelo século XIX até o século XX, muitos autores foram analisados desse ponto de vista. Lembre-se, por exemplo, da Vida do Excellente Poeta Lírico O Doutor Gregório de Mattos E Guerra, escrita, em meados do século XVIII, por meio de aparelhada pluma de ganso do Licenciado Rabelo. Lembre-se também das inúmeras biografias oitocentistas do IHGB de varões ilustres, incluídos literatos.

Digo que Jardim trabalha aparentemente com a tradição das biografias, porque, em verdade, o autor da inédita biografia de Mário de Andrade não explica a obra do biografado por sua vida, nem a vida por meio da obra. Eduardo Jardim põe em tensão essas duas instâncias, esses dois domínios de experiência e saber. Jardim localiza coincidências entre vida/obra, vê aspectos biográficos nas obras, retira das obras dados biográficos, analisando-os com a singularidade de suas interpretações.

É exemplo disso o início do capítulo 8. Em 1943, de volta a São Paulo, em carta a Paulo Duarte, Mário diz estar “se suicidando aos poucos”. Eduardo Jardim relaciona e interpreta esse estado de espírito da vida de Mário de Andrade com o surgimento do tema do suicídio no poema “Improviso do rapaz morto” datado 1925.

Ponto alto do que afirmo sobre as relações vida/obra talvez seja o final do capítulo 5, ‘“Aceitarás o amor como eu o encaro?”’, em que Jardim lê os poemas de “Grã cão de outubro”, íntimos, com a sensualidade e sexualidade de Mário, seus conflitos, suas tensões, possíveis desconfortos.

Qual é o Mário de Andrade, que “trezentos, trezentos e cinqüenta”, no livro se biografa, unifica-se, é conhecido e reconhecido? Eduardo Jardim defende que é um Mário animado e inquieto tanto nas artes que pratica quanto na vida.

Cabe ainda dizer que Eu sou trezentos: Mário de Andrade — vida e obra é resultado final da bolsa de pesquisa que a Fundação Biblioteca Nacional concedeu a Eduardo Jardim na modalidade pesquisador residente (Programa Nacional de Apoio a Pesquisadores Residentes – PNAP-R).

O autor da inédita biografia de Mario de Andrade não apenas cumpre seu compromisso contratual com a instituição, como brinda os leitores com um saboroso narrador de biografia, em uma edição primorosa, com ilustrações ótimas, oriundas de uma pertinente pesquisa iconográfica.

A praia impossível

É comum se referir a Vício Inerente como o “mais fácil” dos livros de Thomas Pynchon (1937), autor de calhamaços como O Arco-Íris da Gravidade e Mason & Dixon. De fato, o sétimo romance do autor (que lançou o oitavo, Bleeding Edge, em 2013) exige menos do que os citados acima, e forma uma espécie de “ciclo californiano” com O Leilão do Lote 49 (1966) e Vineland (1990). Qualquer um destes três livros é uma excelente opção para os que desconhecem o trabalho do autor e não estejam dispostos a mergulhar, por exemplo, nas (estupendas) mil páginas de Contra o Dia. Suas “facilidades”, contudo, são ilusórias.

Por mais engraçado e tresloucado que seja Vício Inerente, com sua narrativa setentista, repleta de tramas e subtramas, reviravoltas, personagens e mais personagens, todos girando ao redor e muitas vezes à revelia do protagonista, o lisérgico detetive particular Doc Sportello, é bom que não nos desliguemos do que o autor diz acerca dos estertores da era Hippie e sugere sobre os rumos dos EUA desde então.

Situados na ressaca dos anos sessenta, Vineland e Vício Inerente me parecem próximos. É certo que boa parte do primeiro se passa no começo dos anos oitenta (mas com vários flashbacks das décadas anteriores), mas Reagan não seria algo como uma tremenda enxaqueca decorrente da tal ressaca? E talvez seja possível afirmar que O Leilão do Lote 49 (se) liga àqueles dois ao refletir (sobre) as falhas comunicacionais que têm lugar entre as pessoas, falhas que cimentam a nossa alienação dos outros e da própria realidade.

Lançado originalmente em 2009, Vício Inerente é o mais distanciado no tempo em relação àquele período histórico. Gosto de pensar nele como um romance sobre a impossibilidade da praia. Esta asserção tem a ver com a epígrafe do livro, algo que os manifestantes parisienses grafitaram em maio de 1968: “Sob as pedras da calçada, a praia!”. Como se sabe, eles arrancavam os paralelepípedos do chão para atirá-los nos policiais; havia areia embaixo deles. Figurativamente, é uma alusão a uma vida fora da sociedade repressora, para além (ou aquém) do maquinário fascista ou protofascista, a “praia” como metáfora dessa vida ideal ou idealizada.

Óbvio que a “praia” nunca foi alcançada, mas, talvez, não se tratasse de alcançá-la, mas apenas de se referir a ela. Logo, uma vez que é inalcançável, talvez seja lícito pensar nela como um “vício inerente” (isto é, um “defeito” intrínseco) daquele sonho. Tais e tais coisas são sugeridas no decorrer do romance, e também a ideia de que a narrativa, em si, talvez seja um dos poucos abrigos que nos restam em meio à crescente chuva de excremento.

Por outro lado, é um procedimento usual na ficção de Pynchon apropriar-se da História, tirá-la das mãos dos “governos” e trazê-la para o domínio dos “fabuladores”, como é dito a certa altura de Mason & Dixon. Não creio, portanto, que ele estivesse preocupado em sentar-se à mesa e mensurar as perdas e ganhos de uma determinada geração. Afinal, estamos diante de um autor cujo trabalho ancora-se numa investida entrópica face à realidade.

Pynchon vê como tudo se esboroa, contínua e imperturbavelmente. Discussões ideológicas ou posicionamentos dessa natureza servem para pontuar e contextualizar o que é narrado, e não muito mais. A política (mas não a Política, bem entendido) faz parte da paisagem; é o estrume da História, esta que nos cavalga enquanto desaparecemos.

A neblina que envolve Sportello e o leitor ao final de Vício Inerente tem muito a ver com essa sensação de esboroamento e remete à escuridão ambiente que parece recair sobre tudo, mais e mais densa. Transformados em sombras, circulamos por aí, tontos, uns atrás dos outros. O belo parágrafo final é uma prece para que sigamos na caravana, apesar de tudo, ou, pelo menos, ainda seja possível se referir a ela e aos que nela estão, mediante o ato de narrar ou mesmo uma simples conversa, quando reconhecemos o outro e, débeis, tentamos nos dirigir a ele.

Um aceno em meio à neblina

vice

É um bicho angustiado esse Vício Inerente, de Paul Thomas Anderson. Consegue ser, em momentos distintos, mais e menos sombrio do que o romance de Thomas Pynchon no qual se baseia (e sobre o qual escrevi aqui). O ritmo meio lento não é tão “fiel” ao andamento do livro, um pastiche de Chandler contaminado por uma tremenda ressaca dos anos sessenta do século passado. Anderson, por exemplo, abre mão de sequências que arejam o romance (as visitas à tia do protagonista; a viagem a Vegas; os pais de Doc baixando na residência do detetive), ao mesmo tempo em que coloca um tremendo peso (emocional) noutras (a despedida de Shasta, logo no começo; o passeio na chuva ao som de Journey through the past, de Neil Young; Coy voltando para casa; a visita final do Pé Grande). Outro traço de (ótima) “infidelidade” está na trilha-sonora, que raramente segue a “playlist” anotada no decorrer do romance, mas se mantém firme, inclusive pela estranheza (Jonny Greenwood, né?). Se falo tanto dessas diferenças entre livro e filme, é porque talvez esperasse uma adaptação cuja pegada estivesse mais próxima de um exemplar dos irmãos Coen, especialmente dos primeiros Coen, o que não significa (óbvio) que eu rejeite ou desgoste do trabalho de Anderson. Isto aqui sou eu tentando me virar com o que recebi, buscando compreender o que essas escolhas significam. E os sinais são meio confusos, porque o andamento marijuanesco do filme sublinha a sensação de “fim de sonho” (especialmente olhando daqui, da violenta e obscurantista segunda década do século XXI), mas, por outro lado, justo quando tal sensação seria levada ao extremo (o angustiante desfecho do livro, em meio ao fog), o diretor nos vem com Doc e Shasta juntos, no carro, embora haja a preocupação de deixar claro que aquilo não significa que eles voltaram. Eles não voltaram, e estão perdidos? Há um aceno em meio à neblina pesada que cai sobre aquele mundo, e o melhor (ou mais terrível) é que essa neblina diz mais respeito ao não-lugar em que hodiernamente nos encontramos — pois, como é dito ao final do romance, estancamos no meio do nada, como se esperássemos que “a neblina se consumisse, e que alguma outra coisa dessa vez, de alguma maneira, estivesse no lugar dela”. E o que há? A beleza desigual desse filme, com seus altos e baixos, seus tropeços de ritmo, seu olhar sofrido não sobre o que passou, veja só, mas pelo que está se passando, e que parece nos comunicar a exasperante incerteza de um tempo que saiu do próprio eixo, e vaga, bastardo, nas bordas de um abismo que nos olha. Com isso, o único consolo é o de voltar para casa, se possível.

Ladrões e prostitutas

Numa conversa com Philip Roth (publicada em Entre nós), o escritor Isaac Bashevis Singer fala sobre o meio literário na Varsóvia dos anos 1930, antes que a Noite caísse. Havia por lá, além (óbvio) dos poloneses que escreviam em polonês, judeus que escreviam em iídiche (como Singer) e judeus que escreviam em polonês (como Schulz). Por mais assimilados que estivessem, os judeus eram encarados pelos poloneses, especialmente os mais velhos, como “intrusos”, o que os levava (os judeus de expressão polonesa) a estudar com maiores afinco e decisão a língua e a cultura de que dispunham. “Seja como for”, conta Singer, “nos anos 30, esses escritores judeus (de expressão polonesa) se tornaram muito importantes, apesar de seus adversários”. E, claro, acontecia de alguns judeus considerarem antissemitas o que esses autores mais assimilados produziam. Singer não achava que fosse o caso, até porque havia quem dissesse a mesma coisa sobre a literatura dele — ainda que, repito, escrevesse em iídiche. “Por que você escreve sobre ladrões e prostitutas judias?”, perguntavam. Ao que Singer respondia: “Querem que eu escreva sobre ladrões espanhóis e prostitutas espanholas? Eu escrevo sobre os ladrões e as prostitutas que conheço”.

Sobre meus "filmes de papel"

Os filmes de papel de André de Leones: quando literatura e cinema se encontram é o título da dissertação de mestrado defendida por Gustavo Ramos de Souza na Universidade Estadual de Londrina. Ele investiga “como a ficção brasileira contemporânea tem absorvido e reelaborado a contaminação que sofre do cinema”, analisando meus dois primeiros romances: Hoje está um dia morto e Como desaparecer completamente. Os interessados podem clicar AQUI para saber um pouco mais e, se quiserem, baixar a dissertação na íntegra. Também disponibilizei o arquivo AQUI.

Da 'República': as alegorias da linha e da caverna e a vida prática.

O incipit da República de Platão é uma discussão sobre a vida justa do indivíduo, mas o diálogo avança para uma investigação da ordem e da desordem na cidade, pois, nas palavras de Sócrates, “num espaço maior, talvez haja mais justiça e seja mais fácil entendê-la” (368e). O movimento especulativo, assim, parece obedecer a uma espécie de gradação qualitativa: mira-se a cidade para melhor enxergar o indivíduo. A polis ordenada reflete a alma ordenada, na medida em que a justiça é entendida como uma espécie de arranjo harmonioso das partes da alma.
Quando lemos, no decorrer do diálogo, sobre a educação daqueles que administrarão aquela polis fundada em logos, não é difícil observar o quão imprescindível é a formação espiritual para os que servirão na vida prática. A ideia norteadora dessa formação é o Bem. Escreve Paul Natorp (p. 379):

(…) Isto é, somente na contemplação do Bem uma pessoa age reflexivamente (…), tanto na vida privada como pública. Desse modo, a virtude da reflexão é colocada de forma mais enfática (518de) antes de todas as outras ‘assim chamadas’ virtudes da alma. Visto que foi mostrado anteriormente, quando da derivação das virtudes tanto da vida individual como pública, como todas elas se unificam, em última análise, na regra da parte racional da alma, i.e., na virtude da reflexão, a relação se estabelece entre, de um lado, o ponto mais elevado, a saber, a ideia de Bem como a ideia em geral, e, de outro, a tarefa de organizar a vida do indivíduo e da sociedade.

É nesse sentido, prossegue Natorp, e aqui o parafraseamos, que a ideia de Bem serve como um “paradigma” (as aspas são dele) a organizar tanto a vida privada quanto a vida pública.
Antes, na República, não é por acaso que o Bem é identificado com o sol, ou como um símile do sol, por meio de uma analogia. Em 508a, Sócrates pergunta: “De quem é a luz que faz com que vejamos com a maior nitidez possível e sejam vistas as coisas visíveis?”. O Bem seria algo como a “essência” ou a “causa primeira” (embora Platão não se expresse nesses termos). Tudo o que é, é pela ideia do Bem, pois quando a “alma se apoia no que a verdade e o ser iluminam, ela o concebe, conhece e parece ter inteligência”; contrariamente, quando ela “se apoia em algo em que se mistura com a escuridão, aquilo que vem a ser e perece, ela emite opiniões e a visão turva”, pois revela-se instável e incerta, “mudando suas opiniões numa e noutra direção, e então se assemelha a alguém que não tem inteligência” (508d).
Voltando um pouco à analogia entre o sol e a ideia do Bem, recorremos ao comentário de Francisco L. Lisi, constante do livro organizado por Raul Gutiérrez, a fim de melhor esclarecê-la (p. 160): “El sol es considerado aqui como transcendente respecto de los objetos vistos, e. d. tiene uma naturaleza cualitativa y esencialmente diferente de ellos. Lo mismo sucede com el bien. El bien agrega (…) la esencia y el ser”.
O Bem encontra-se numa posição ontologicamente superior relativamente aos objetos conhecidos e, encarado assim como “límite y medida”, constitui a própria “condición de posibilidad de todo conocimiento”. Seguimos com Lisi (p. 161):

La alegoria del sol, introducida para clarificar en qué sentido el bien no es ni placer ni inteligência, sino algo diferente de estos complementa, por la tanto, la idea implícita en el passaje introductorio: el bien no es solo medida, sino también causa eficiente del mundo ideal y hasta del mismo mundo fenomênico, a través del sol, su vástago.

A partir dessa noção do Bem como condição de possibilidade do conhecimento, entendemos a alegoria da linha (509d ss.) em seu caráter epistemológico, na medida em que descreve os modos de ser e conhecer. A gradação é evidente, do visível ao inteligível, das imagens aos seres formais (ideias), passando pelos seres físicos e fabricados (que servem de modelo aos imagéticos) aos seres matemáticos e afins (que, por seu turno, são os modelos para os seres físicos e fabricados). E “quanto mais os objetos participarem da verdade tanto mais clareza terão”, diz Sócrates (511e), e também, um pouco antes (511b-c):

(…) Fica agora sabendo que a seção das coisas inteligíveis é aquela em que é a própria razão que as apreende com a força da dialética, considerando as hipóteses não como princípios, mas realmente como hipóteses, como degraus e pontos de apoio, para chegar ao princípio de tudo, aquele que não admite hipóteses. Num movimento inverso, por sua vez, presa a tudo que depende desse princípio, vai descendo na direção do fim e, sem servir-se de nada que seja sensível, mas apenas das próprias ideias, por meio delas e por causa delas, acaba por chegar às ideias.

Natorp entende (p. 374) “que o ‘início sem pressuposição’, que é o que a ideia do bem significa, deve ser alcançado unicamente através do retorno lógico a partir dos princípios relativos das ciências concretas específicas para os fundamentos supremos e totalmente puros do pensamento”. Reitere-se a gradação epistemológica, representada pela subida, e ressalte-se que é o método dialético que se encontra na parte superior da linha.
A dialética é a única maneira de captar intelectivamente o Bem, “que es definido principio de la realidade y del que dependen las restantes ideas” (Lisi, p. 162). Tal “aspecto demiúrgico” da ideia do Bem, ainda na interpretação de Lisi, é reafirmado pela alegoria da caverna (517b-c):

(…) No mundo cognoscível, vem por último a ideia do bem que se deixa ver com dificuldade, mas, se é vista, impõe-se a conclusão de que para todos é a causa de tudo quanto é reto e belo e que, no mundo visível, é ela quem gera a luz e o senhor da luz e, no mundo inteligível, é ela mesma que, como senhora, propicia verdade e inteligência, devendo tê-la diante dos olhos quem quiser agir com sabedoria na vida privada e pública.

Observe-se, sobretudo pelas palavras derradeiras do trecho citado acima, que não basta ao filósofo ascender ao patamar superior da linha, sendo imprescindível que ele retorne (desça) e se movimente, no âmbito mesmo da vida cotidiana, à luz do que atentou. Além de “princípio lógico absoluto”, o Bem é, também, um “princípio ético absoluto” (Natorp, p. 379).
Para sermos mais precisos, Natorp enxerga um tripé quanto à ideia de Bem, entendendo-a como um princípio organizador dialético, ético e cosmológico. O Bem é aquilo que se mantém constante em meio ao devir, significando, assim, “subsistência” (Bestand). Especificamente em relação à ética, o Bem é “o elemento que subsiste em cada desejo por causa da unidade de propósito” (p. 383).
Guardadas as diferenças entre as leituras do texto de Platão feitas por Natorp e Werner Jaeger, talvez convenha recorrer a este último para sublinhar um certo conteúdo “paideutico”, relativamente à vida prática. Ainda que o neokantiano Natorp rejeite (p. 380) “a assunção de que, além das ideias como causas formais, existe outro princípio existencial funcionando como causa eficiente, isto é, o demiurgo, ou simplesmente o Deus da religião”, assunção que nos parece fundamental na leitura de Jaeger, o modo como este vincula as alegorias platônicas numa só “encarnação simbólica da essência da paideia” (p. 887) é algo que, neste contexto, achamos por bem ressaltar.
Para Jaeger, a caverna seria (p. 887) “uma alegoria da natureza humana e da sua atitude perante a cultura e a incultura, a paideia e a apaideusia”. A essa altura, a paideia não é enfocada “do ponto de vista do absoluto, como na alegoria do Sol”, mas, sim, do ponto de vista do homem enquanto “transformação e purificação da alma para poder contemplar o Ser supremo”, constituindo, assim, o pathos de um “processo interior de cultura” (explícito, por exemplo e segundo Jaeger, no ensino das matemáticas e da dialética, conforme observamos no decorrer do Livro VII).
Seja como for, o ponto que nos parece fulcral no desenvolvimento deste trabalho é que a contemplação do Bem é imprescindível a “quem quiser agir racionalmente tanto na vida privada como na pública” (Jaeger, p. 885), conforme Natorp também ressaltou em trecho citado parágrafos atrás, ambos parafraseando Platão (517c, também transcrito acima). Para tanto, é também imprescindível que (519 c-d), uma vez que os possuidores das “melhores naturezas cheguem ao aprendizado”, isto é, vejam o Bem e empreendam a “caminhada para o alto”, eles desçam “para junto daqueles prisioneiros”, pois (520c), uma vez habituados às sombras, eles verão “mil vezes melhor que os de lá e, quanto a cada uma das imagens”, reconhecerão “o que ela é e de que coisa é sombra”, pois já terão “a visão da verdade a respeito das coisas belas, justas e boas”.
Como se vê, a vida prática está compaginada às atribuições do filósofo na polis concebida na República, tanto que a exigência de sua descida aos encargos na cidade nada mais é do que exigir “de pessoas justas o que é justo” (520 d-e).

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[Também fiz um breve estudo sobre a passagem 473d-e do Livro V da República. Leia AQUI.]

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LISI, Francisco L. Bien, intelecto y demiurgo en Platón. In: GUTIÉRREZ, Raul (editor). Los símiles de la República VI-VII de Platón. Lima: Pontificia Universidad Católica del Peru, 2003.
JAEGER, Werner. Paideia – A Formação do Homem Grego. Tradução: Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2011 (5ª edição, 2ª reimpressão).
NATORP, Paul. Teoria das Ideias de Platão – Uma Introdução ao Idealismo. Tradução: Euclides Calloni e Saulo Krieger. São Paulo: Paulus, 2012.
PLATÃO. A República. Tradução: Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

O mundo perdido

Resenha publicada no Estadão em 28.02.2015.

Stefan Zweig and Josef Roth (right) in Ostende

A Primeira Guerra Mundial assinalou o esgarçamento do império austro-húngaro. Poucas obras descrevem tão bem as enormes mudanças que levaram ao fim daquele mundo quanto a do judeu austríaco Joseph Roth (1894-1939), cujo ápice é justamente Marcha de Radetzky, de 1932, lançado há pouco no Brasil, com tradução e posfácio de Luís S. Krausz.

O romance cobre três gerações de uma família, nas décadas derradeiras do reinado dos Habsburgo. O avô, Joseph Trotta, é um tenente de infantaria, esloveno, que salva a vida do Kaiser Franz Joseph na batalha de Solferino, em 1859 (na qual as forças imperiais foram derrotadas pelos franceses e sardo-piemonteses). Como prêmio, Trotta é promovido a capitão, agraciado com a ordem de Maria Teresa e recebe um título de nobreza. O filho, barão von Trotta und Sipolje, torna-se jurista e é nomeado comissário distrital na Silésia. O neto, Carl Joseph, ingressa na carreira militar.

A sumarização acima não dá conta da forma ímpar como Roth se vale desses três personagens (dentre vários outros) para, geração após geração, ano após ano, traçar o retrato anímico de um mundo que estertorava, prestes a ruir com toda a violência. A maior parte do livro se fixa no filho e no neto, mas desde as páginas iniciais é possível entrever o esfarelamento daquele estado de coisas. Por exemplo, no episódio em que o “herói de Solferino” decide abandonar o exército após se deparar com uma descrição no mínimo fantasiosa, numa cartilha escolar, do que fizera naquela batalha. Os exageros colorem de heroísmo uma batalha perdida, sinalizando a decadência que se espalha.

Esses sinais estão mais evidentes na trajetória do neto, Carl Joseph. É uma vida anódina, ébria e cercada de morte por todos os lados. Em tudo o que ele faz, parece haver a “anunciação prematura” do fim. As malfadadas mulheres com quem se envolve, a decisão de se transferir para os confins do império, seu caráter irrefletidamente perdulário, o tédio: “Era como se já há muito tempo devesse ter anoitecido, mas mesmo assim não anoitecia. Sempre este cinza arranhado e úmido”.

A marcha que dá título ao romance, composta por Johann Strauss I em 1848 (em homenagem a um marechal de campo tido como o mais destacado militar austríaco da primeira metade do século 19), é outro indício do esvaziamento do império: em princípio, por exemplo, é executada com pompa na praça diante da casa do comissário distrital; depois, é “martelada” em um bordel, ao que os oficiais marcham “salão adentro”.

Roth desenvolve a narrativa num tenso e melancólico compasso de espera. Antes que a guerra estoure, conforme vimos, amontoa as pistas do desaparecimento futuro, anunciado pelas situações e pela boca de personagens como Chojnicki, um conde que vaticina: “Este império está fadado a desaparecer. (…) Cada um dos povos vai construir seu estadozinho encardido e até os judeus vão nomear um Rei na Palestina”.

Com a Grande Guerra, os destinos de Chojnicki e Carl Joseph não são lá muito aprazíveis. O romance prossegue até a morte do Kaiser, em 1916, quando os personagens que simbolizavam aquele mundo se provaram incapazes de sobreviver à sua extinção. Depois, como se sabe, aquele “cinza arranhado e úmido” se transformaria na noite mais escura da história europeia.