N'O Popular

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A partir de hoje, integro o time de colaboradores de O Popular, jornal de maior circulação na minha terra natal. Meus artigos sairão quinzenalmente, às terças-feiras, na coluna Crônicas & Outras Histórias. Clique AQUI e leia o primeiro deles.

Ah, sigo colaborando com O Estado de São Paulo. Há duas resenhas por sair. Assim que publicarem, linko aqui, como sempre fiz.

No "Correio"

Na edição de hoje do Correio Braziliense, há uma bela matéria assinada por Nahima Maciel sobre como a literatura contemporânea tem refletido acerca da crise política brasileira. Estou por lá discorrendo um pouco sobre meu romance Abaixo do paraíso e o momento pelo qual passamos. Leia na íntegra AQUI.

Abaixo, publico minhas respostas às questões propostas por Nahima Maciel, algumas das quais ela utilizou para escrever a matéria.

1. Até que ponto Cristiano encontra correspondência no mundo real e contemporâneo? Não dá para acompanhar a história dele sem pensar no cenário político e social atual…
Acho que Cristiano encontra total correspondência no mundo real. Vejo esse tipo de tarefeiro voejando ao redor dos políticos desde que me entendo por gente. Eles são um sintoma de como a política brasileira opera mais nas sombras e no submundo do que às claras, de como ela é viciada e violenta.

2. As atualidades da política brasileira te motivaram, de alguma forma, a escrever?
Quando concebi “Abaixo do paraíso”, os escândalos ainda não tinham atingido a magnitude atual. Mas, agora que o livro saiu e, coincidentemente, as coisas chegaram a esse ponto na política nacional, torço para que os leitores encontrem na ficção material para refletir sobre os acontecimentos e, sobretudo, desacontecimentos da nossa vida republicana.

3. Estou com pelo menos três romances que tratam dessa temática da política atual brasileira. Acho que é a resposta literária mais rápida que já vi a um fenômeno ocorrido na sociedade brasileira. Por que, na tua opinião, isso está acontecendo?
Não creio que seja uma resposta rápida. Pelo contrário. Convivemos há mais de uma década não só com escândalos como o do mensalão, mas também com uma crescente radicalização das posições políticas e ideológicas (vide as eleições de 2010 e, sobretudo, 2014). Creio que os autores tiveram bastante tempo para perceber esses fenômenos e refletir sobre eles, cada qual a seu modo.

4. Com que olhos você enxerga a política brasileira dos últimos tempos? Tem esperança? Está assustado?
Nunca tive qualquer esperança. Os acontecimentos da última década só corroboraram o meu desencanto. Não sinto medo. Apenas raiva e impotência.

5. Acha que o diálogo político no Brasil amadureceu? Ou está afundando? Como tem encarado as polarizações? O que acha delas?
Nunca houve diálogo no Brasil. Este é um país incapaz de vivência política. Somos o lugar da violência, expressa nas e pelas polarizações, por exemplo. Não haverá pacto ou entendimento, mas apenas a carnificina de sempre.

Na planície desértica

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Há quase três anos, escrevi um texto emocionado sobre O Homem de Aço, de Zack Snyder, e a forma como as histórias em quadrinhos foram imprescindíveis para me viabilizar em um momento delicado da minha vida. Desde então, a minha admiração por aquele filme (que devo ter revisto umas seis ou sete vezes) não diminuiu. Hoje, fui ao cinema assistir à sua sequência, Batman vs. Superman – A Origem da Justiça, e saí tão impressionado quanto da outra vez.

A primeira coisa que me agrada nesses filmes é a maneira como Snyder assume determinados riscos. Ele não tenta reinventar a roda, mas transpõe para a tela e intensifica detalhes e sensações que os leitores das melhores histórias desses personagens identificam de imediato como, digamos, desestabilizadores. Por exemplo: a extrema inadequação sofrida por Superman dados a sua própria natureza alienígena e o status de semideus perante os cada vez mais assustados seres humanos. Ou ainda: o preço que a violência cotidiana cobra de alguém como Batman, cuja vocação nasce de um crime hediondo e cujos métodos, ele mesmo admite, são também criminosos.

Noutras palavras, Snyder trabalha muito bem com as sombras que envolvem os personagens, bem como as ruínas (literais e figurativas) que vão se amontoando ao seu redor. Parafraseando algo que Michael Corleone diz à mãe no segundo Godfather, os heróis correm o risco de perder o mundo na medida em que tentam salvá-lo. Assim, a amargura que movia o primeiro filme é intensificada nessa sequência; o custo das escolhas de Kal-El e Bruce Wayne ribomba na tela desde o começo e não os deixará em paz mesmo depois que tudo terminar, se e quando.

Snyder não apenas retoma a história, mas reconta parte dela a partir dos olhos de Wayne, ressaltando o insuportável custo humano de alguns eventos que tiveram lugar no clímax de O Homem de Aço. Ao mesmo tempo, quando se detém no modus operandi de Batman, deixa de lado quaisquer sutilezas e entrega a representação mais sombria e desarvorada desse personagem que eu já vi no cinema. A cena em que ele estoura um traficante de mulheres, quase que inteiramente montada a partir dos olhos apavorados dos outros (vítimas, policiais, criminoso), é um primor de composição. Antes, o prólogo (por meio do qual revisitamos a origem do homem-morcego) consegue ser melhor do que toda a horrenda trilogia dirigida por Christopher Nolan — o que, convenhamos, não é difícil.

Nolan sequer consegue alinhavar uma sequência de ação (e é incrível como a tediosa cena de perseguição em The Dark Knight é, de certo modo, revisitada e tornada impactante por Snyder), quanto mais construir uma real atmosfera de perigo, inadequação, fantasmagoria ou perda — elementos que perpassam Batman vs. Superman do começo ao fim. As sequências de sonho, por exemplo, são tão inteligentemente costuradas quanto os flashbacks no filme anterior; elas estabelecem não só os estados psicológicos dos personagens, mas ressaltam tudo aquilo que lhes falta (a presença paterna) ou ameaça (o futuro à Mad Max que Wayne visita num pesadelo).

Num certo sentido, gosto de pensar na realidade imaginada por esses dois novos filmes como um desvio sombrio, alimentado por apocalipses diversos que já me apavoraram nos quadrinhos (O Cavaleiro das Trevas, A Morte do Superman). É o filme de super-heróis possível num mundo (tanto o nosso quanto o deles) que já parece ter assumido um status pós-apocalíptico, magnificamente ilustrado pela tela de ecos miltonianos que Lex Luthor faz questão de inverter. E pouco importa se a perdição ou a salvação (e aqui as duas coisas se confundem) chega das profundezas ou das alturas, pois nos atinge no mesmo lugar: a planície desértica em que somos imolados.

"Abaixo do paraíso" – release

Por Álvaro Costa e Silva

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O desespero e a incerteza acompanham Cristiano, protagonista de Abaixo do paraíso, mais recente romance de André de Leones. Espécie de “hard novel” à brasileira, o livro, narrado em uma linguagem à flor da pele, acompanha as fugas e as tentativas do personagem de situar-se no mundo e, sobretudo, de encontrar-se consigo mesmo.
Cristiano é um foragido. Dá a impressão que nem ele mesmo sabe de quem ou do quê. Quando a ação se inicia, está de volta a Goiânia, mochila a tiracolo, de ressaca, depois de passar cinco meses viajando meio que sem rumo certo, “alguém criteriosamente mastigado pela entrada”. Procura o melhor amigo e, sem outra opção, volta a trabalhar no que fazia antes.
É um trabalho escuso e, quase sempre, ilícito. Cristiano é um faz-tudo do esquema político local. Durante as campanhas eleitorais, visita o interior de Goiás e fornece combustível de graça aos aliados, para que possam encher os tanques de seus carros e engrossar as carreatas. Também é responsável por levar, sem que ninguém veja, a amante do assessor de imprensa do governador ao dentista.
Mais uma entre tantas peças da engrenagem: “Fora da folha de pagamento, mas indispensável ao bom funcionamento da máquina. Levar e trazer. Comprar e vender. Trocar. Papéis. Documentos. Folhas manchadas de tinta. Fotografias, certa vez. (…) Que se enfurna num quartinho de hotel para se encontrar sabe-se lá com quem e comprar ou vender sabe-se lá o quê”.
No retorno à rotina, é encarregado de uma operação comum: um grosso envelope “amarrado feito uma pamonha”, contendo dinheiro, iria para as mãos de um funcionário da câmara de vereadores de Anápolis, que em troca entregaria um dossiê sobre um adversário político. No lugar marcado para o encontro, o que parecia simples se complica, e um crime violento acontece.
Cristiano agora tem mais uma razão para fugir. E se esconder. Apela à família, da qual andava distante: o pai, a madrasta, a tia, a meia-irmã, que moram em Silvânia, que o protagonista classifica de “purgatório” – mais uma pequena cidade do Centro-Oeste que compõe o cenário desolado do romance. No caminho da fuga, ainda dá tempo de relacionar-se com uma dona de hotel de beira de estrada.
Abaixo do paraíso lembra o título do primeiro romance de Scott Fitzgerald, Este lado do paraíso, mas sua temática está mais próxima da de outro escritor americano, William Faulkner, no que carrega de fúria, sexo brutal, ódio incontido e denúncia de uma sociedade que aniquila os indivíduos.
Autor de Terra de casas vazias e Dentes negros, ambos publicados pela Rocco, André de Leones chega ao quinto e seu mais maduro romance. O escritor mostra um forte sentido da História recente do Brasil, mas principalmente da história imaginada a partir da experiência vital do artista. Tudo parece ser regido pelo demônio do acaso que provoca encontros inesperados e apaixonados, não fossem os trechos da Bíblia que pontuam a narrativa e lhe conferem um caráter de destino inescapável.
Em sua trajetória de filho pródigo, Cristiano só encontra terra devastada. E deve se esforçar, para buscar o que está procurando – um outro que pode ser ele mesmo. Como na citação que o personagem evoca do versículo de João: “Por pouco tempo, a luz está entre vós. Caminhai enquanto tendes luz, para que as trevas não vos apreendam”.

…………

Abaixo do paraíso já está à venda no site da Rocco e chega às livrarias nos próximos dias. Leia um trecho do romance AQUI e saiba mais sobre o livro AQUI.

Pólio

Para E.M.,
que sobreviveu para me dar esta história.

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INCIPIT O som de um corpo atirado n’água, o seu próprio corpo – o primeiro som guardado na memória.

MERGULHO O pai foi apanhá-lo na cama, o hálito quente de cigarro, quente e áspero ao estreitá-lo junto ao corpo, a caminho do banheiro. Viu abaixo a bacia de alumínio com água fria até a borda e, acima, o rosto espinhento, mal barbeado, e os cabelos desgrenhados do pai, e o teto amarelo-enegrecido de ripas encaixadas, fodendo umas às outras como machos e fêmeas e machos e machos e fêmeas e fêmeas. O pai o largou dentro da bacia. Meio segundo de um mergulho que se prolonga até hoje.

PALIATIVO Antes de ter com a água, entreviu a cabeça da mãe enquadrada pela porta do banheiro, às costas do homem que se preparava para mergulhá-lo, seguindo à risca as ordens médicas de que assim, talvez, conseguissem aliviar as dores, um pouco que fosse.

PÓLIO A mãe aflita às costas do pai, pelo mergulho e pelo que o antecedera, o diagnóstico, a febre alta, o horror diante das piores perspectivas: pulmões, cérebro, morte. Restaria vivo afinal, exceto por noventa por cento da musculatura da perna esquerda, setenta por cento da musculatura da perna direita e alguns músculos do lado esquerdo do peito. Vivo, a não ser por isso; restou assim.

NÃO-LADOS A mãe aflita fitando as costas do pai para não ver o que mais houvesse, o peso em seu próprio lado esquerdo do peito. Mergulhara o filho no mundo para vê-lo agora mergulhado na febre pela doença e na água fria pelo pai, quente e áspero ao descê-lo assim. Os lados quente-adoecidos da cama trocados repentinamente pelos não-lados da água em sua fluidez de entropia e desespero.

BRANCO Os pais se casaram virgens. A família dele era de holandeses e alemães e, claro, se pudesse escolher, teria preferido uma boa moça com a mesma ascendência, em vez de uma – daquela – brasileira. Eles se casaram virgens, foram de branco pela igreja escura, caminhando pelos intestinos da discórdia familiar. Aos tropeços, mas não cabisbaixos.

NOMES Ela abdicou do sobrenome marrano a fim de abraçar o sobrenome alemão do marido. Mas o que há num nome?, talvez pensasse e dissesse a si mesma. O nome dele, o meu. Famílias, histórias. A ideia quimérica de forçar a união, anular-se (em parte) para receber o outro. Um primeiro passo no sentido de contornar o mal-estar. Inútil, logo veria.

OVOS Maria terminou o curso ginasial e foi ganhar a vida, trabalhar como auxiliar de escritório. Seu irmão mais velho era jornaleiro. O outro, engraxate. A mãe, Vicentina, enviuvara aos vinte e cinco anos. Cuidava do pai. Fazendo uso dos filhos, mendigava alguns trocados do velho. Depois de muita insistência, ele liberou o galinheiro para a neta, Maria. Ela separava cinco ovos para si, a mãe e os irmãos. Vendia o resto.

GALINHA Na vida cotidiana, transformada numa sucessão de pequenas violências, os outros (a família dele) falavam em alemão para excluir e provocar a recém-chegada. Falavam mal dela e de sua família. Trabalhando fora desde cedo, Maria nunca aprendera direito as tarefas domésticas. Por exemplo: era incapaz de depenar uma galinha. Ou, depenado por outrem, ela calhou de atirar o animal inteiro na panela, sem mais. Inaceitável. Onde é que você foi arranjar essazinha? O que você foi fazer, Junior? O que você foi inventar?

ESTADO NOVO O pai de Maria fora o primeiro dentista formado em Santo Amaro. Claro, isso não impressionava a família do marido. Ela pensava no finado pai. Ele cuidava dela e dos irmãos para que a mãe fosse ao cinema com as amigas, no domingo. Lia e estudava bastante, conversava prazerosamente, cuidava bem dos pacientes. Preso como subversivo, a maldita simpatia pelos comunistas, solto unicamente para morrer. O coração não aguentou. Metido numa cela, maltratado por gostar de ler e conversar. As leituras erradas, as conversas erradas. Na contramão. Um tal rolo compressor. O que é que sobra quando assim?

BRASIL O país assolado pela epidemia. Como se a doença a princípio externa refletisse a doença interna, intramuros, entre as paredes daquela casa. A família cindida. O desarranjo, a discórdia: a doença lá fora vê isso e resolve entrar. Uma espécie de punição. A doença é D’us ou, melhor dizendo, é uma exteriorização d’Ele. D’us a movimenta com os olhos. Adoece o que . Sequer é preciso tocar. Ele vê. Pisca vez por outra. O que não vê, escapa. Mas D’us vê tudo. Breve desconcentração, talvez, ou um qualquer desinteresse momentâneo. Adoecer tudo e todos não parece interessante. O projeto é gratuito, mas jamais indiscriminado. D’us move a praga com os olhos. Tiro ao alvo. Acerta uns. Muitos. Vê o menino. Acerta-o. Maria, ademais, é o Brasil. Representativa dele. Brasileira. País mal ajambrado, desorganizado, corrupto, sem higiene, errado. Jogam isso na cara dela. A família dele. Maria como o Brasil: um erro.

RIO A mudança para o Rio de Janeiro não ajudou muito. O sogro transportava mercadorias de São Paulo para a capital federal e vice-versa. Junior assumira a filial em Barra Mansa. No entanto, a fúria familiar os perseguia e Junior, em vez de defendê-la, preferia se calar. O homem recém-egresso do trabalho sentado a um canto, ensimesmado. Fazendo palavras cruzadas. Calado. Como se habitasse o silêncio da cisão. Perdido entre lá e cá. Incomunicável.

BENÇÃO É quando a praga se instala no menino. O resultado de ser visto assim, pelo Alto. Uma benção. Diferente dos outros. A lembrança de D’us, de sua onipotência. A existência como um lugar e um tempo assolados por D’us. O seu próprio corpo, o lugar d’Ele. O corpo assim preenchido, tomado. Os músculos retorcidos pelo Espírito. Moídos pelo Criador. A dor altissonante, ensurdecendo a criança e seus pais. Abençoados sejam. Malditos.

MULETAS O menino terá de percorrer a existência assim, com tal dificuldade. Com a ajuda de muletas. Cada passo um riso metálico engendrado na infância. Cada passo remetendo à dor altissonante-ensurdecedora e ao mergulho interminável. Cada passo é para trás.

SILÊNCIO Acusavam o pai e a mãe. Se você nos tivesse ouvido, Junior. Se você nos tivesse ouvido em vez de se casar com essa aí. Ela é o que é, menos que nada. Atrapalhando o seu caminho. Um tropeço. Ela e os dela, e a doença é responsabilidade deles. Brasileiros sujos. Maria não aceitava, não compreendia o silêncio do marido. Passivo, atônito, paralisado. Qual é o seu problema? Por não me defende? Por que não se defende? Por que não diz nada? Diz alguma coisa. Qualquer coisa. Por que não fala? Os irmãos dela distantes, em São Paulo, que podiam fazer? Consolavam à distância, na medida do possível, e Maria restava só. O silêncio do marido como uma expressão d’Ele, também. Como se Junior soubesse. Não há o que dizer. O mutismo como sintoma da presença de D’us no filho. O pai viu aquilo e se calou, horrorizado. Surdo para o ruído familiar. Surdo para as discussões incessantes, para os apelos dela. Defender-nos? Defender-nos do quê? Olha o que já fizeram com o nosso filho. Não há o que defender. Seguir em frente, se e como for possível. No prolongamento daquela benção. Junior também restava só.

CHISTE O filho, um resto de existência. A família cindida ao meio. O menino cindido ao meio. Isto como um reflexo daquilo. Um chiste divino.

DESERTO Eles fizeram as malas e voltaram para São Paulo, mas guardando distância. Maria ainda debatia e se debatia no inferno da cisão familiar. Junior, não. Talvez tivesse alcançado uma compreensão maior de tudo, para além da balbúrdia de ressentimentos. No silêncio, de dentro dele (silêncio), talvez enxergasse melhor o deserto inteiro.

PÁRIAS Em vez de discutir, Junior optou por se afastar da família. Assumir de vez a condição de pária. De certa forma, alinhava-se com o filho e a esposa. Pai, mãe e filho palmilhando no deserto da doença. As muletas afundam na areia, mas o menino prossegue. Pai e mãe desencontrados, errando. O filho, não. O filho adivinha um norte. Segue, incerto. Mas segue, um passo, depois outro, e mais outro, e.

FINIS O que há para se ver num deserto? O próprio silêncio.

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Paton

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“É precisamente aí que sua importância deve ser encontrada para os dias atuais. Ele (Kant) acredita que um empirismo não mitigado destina-se a acabar num completo ceticismo, e que a única forma de evitar isso é considerar a atividade que pertence à razão em seu próprio direito. Em um tempo como o presente, quando o suposto conhecimento é reduzido à apreensão de tautologias e à recepção de dados dos sentidos, é difícil ver como o mundo pode ser feito inteligível — mesmo tão inteligível quanto parece ao homem comum. É ainda mais difícil ver como podemos ter quaisquer princípios de conduta; e de fato o problema da ação moral tende a ser tratado como uma questão de explicar — ou não explicar — crenças morais nos termos de uma teoria do conhecimento que tem sido adotada sobre outras bases bem distintas, e puramente teóricas. O resultado é que inevitavelmente as nossas vontades, em vez de serem guiadas por princípios inteligíveis, são entregues aos meros caprichos ou à autoindulgência ou à tradição ou mesmo ao fanatismo, sendo que os últimos três não passam de formas particulares de capricho. E a doutrina inteira deve levar, como já o fez no caso de Hume, ao ceticismo no que concerne à própria existência de algo como a mente humana.”

H. J. Paton em The Categorical Imperative – A Study in Kant’s Moral Philosophy  (University of Pennsylvania Press: Philadelphia, 1971). A citação está na página 30.
A tradução é caseira em todos os sentidos, mas acho que está legível.

Correspondência

Respondi a ESTE texto do Flávio Izhaki sobre Abaixo do paraíso, meu novo romance (nas livrarias em março), na forma de uma carta.

São Paulo, 25 de fevereiro de 2016.

Prezado Flávio,

Desde que combinamos trocar correspondências publicamente como forma de divulgar Abaixo do paraíso, venho pensando sobre o que conversaríamos. “Sobre o livro, idiota!”, você poderia responder, mas o livro está aí, pronto e editado, e não há muito mais que podemos fazer por ele, certo? Exceto, talvez, passear pelo terreno acidentado no qual ele repousa, os pés mais ou menos firmes no chão.
Vivemos num país de batedores de carteiras, e talvez a minha intenção, ao começar a escrever esse romance, três anos atrás, fosse me aproximar de um desses espécimes que voejam ao redor dos políticos mais ou menos como fazem os besouros junto aos montes de estrume nos pastos infinitos do meu estado natal.
Sim, talvez fosse isso. Mas nunca tenho certeza.
A verdade é que não tenho muita coisa boa a dizer sobre o lugar de onde vim. Viajei um bocado e pretendo viajar muito mais, pois considero importante ter uma boa perspectiva da nossa desolação. As paisagens se sucedem externa e internamente, e o que fazemos com elas? Eu sinto necessidade não de ordená-las, até porque o ordenamento é não raro uma empresa tediosa em sua arbitrariedade, mas de revisitá-las, descrevê-las e, acima de tudo, povoá-las. Parafraseando James Joyce, essa raça e esse país e essa vida me fizeram, e não tenho escolha a não ser me expressar tal como sou.
Óbvio que não sou Cristiano, o protagonista de Abaixo do paraíso, mas não posso deixar de compreender algumas das atitudes que ele toma e conclusões a que chega, ainda que de forma tortuosa. No Brasil, tudo exsuda uma promiscuidade doentia. Mundo e submundo são uma coisa só, está dito no romance. É um país incapaz de vivência política porque jamais estabeleceu quaisquer parâmetros civilizacionais e/ou culturais que permitissem a elaboração de uma ética propriamente dita. Aqui, não se procura estabelecer conceitos sobre ações concretas porque o próprio esforço de conceituação gira em falso, perdido entre a demagogia e a burrice.
Quando a palavra é maltratada, o mundo que ela põe (e do qual dispomos) é espúrio.
E Cristiano é tão espúrio quanto o lugar em que se coloca. Talvez surja daí o sentimento de inadequação, típico dos bastardos e ao qual ele reage com tanta violência. Não sei se você concorda, Flávio, mas, a meu ver, diferentemente de seus pares, ele não está à procura de uma sombra, mas, sim, de um lugar ao sol que não lhe custe a própria pele. O problema é que não há atalhos para isso, não como ele esperava ao se imiscuir naquela vida – ou talvez (como muitas vezes é o caso) ele não tenha se dado ao trabalho de pensar a respeito até que fosse tarde demais.
Antes de terminar, acho bom dizer que nunca pensei em Abaixo do paraíso como um “romance filosófico” (ou seu afilhado, o “romance de ideias”), graças a D’us. E sei que você não o leu dessa maneira ao editá-lo. Está mais para o que escrevi acima: apenas procurei revisitar, descrever e povoar ficcionalmente uma parte ínfima do espaço depauperado em que somos pilhados e asfixiados todos os dias.
Sou um escritor asmático. Estou sempre à procura de oxigênio.

Um grande abraço, Flávio, e obrigado por tudo.
André.

Pais e filhos

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::: Demorei muito para ler O Iluminado, de Stephen King, porque (diferentemente do autor) gosto bastante da adaptação cinematográfica de Stanley Kubrick. Eu sempre soube (porque me disseram) que o livro tinha outra pegada, mais aterrorizante, por um lado, e melhor resolvida (em termos estruturais), por outro. Quis conviver com o filme de Kubrick (visto algumas dezenas de vezes no decorrer dos anos) por mais tempo antes de me entregar às linhas de King. Foi uma boa escolha, e não sei explicar direito por quê. Talvez isso soe estranho, mas demorei a ter maturidade para encarar o romance.

::: Não pretendo comparar filme e livro, exceto para reiterar que são peças muito distintas, cujo único ponto em comum reside justamente no que têm de mais superficial: a capacidade de assustar. Kubrick, um cético, esconde bem as muitas falhas de sua adaptação por meio de elipses que alimentam um terror puramente cinemático; King, um crente, trabalha a sua carpintaria narrativa com calma e parcimônia, construindo uma tríade de personagens (Jack, Wendy e Danny) cujas lembranças ajudam, e muito, na construção do horror. Na verdade, e pretendo desenvolver isso melhor abaixo, o grande barato do livro está no modo como algumas das sequências mais aterrorizantes não dizem respeito, apenas, ao que acontece nos corredores do famigerado Overlook Hotel, mas, também, a eventos familiares brutalmente corriqueiros, revisitados em flashbacks muito bem localizados no desenvolvimento do romance.

::: Confesso não ter lido muitos romances de King (creio que sete, contando com O Iluminado), mas a forma é muitíssimo bem trabalhada aqui. Ele recorre, por exemplo, aos discursos indireto e indireto-livre com propriedade, utilizando-os para explicitar o avanço do desequilíbrio deste ou daquele personagem (notem como a voz do barman fantasmagórico é primeiro “ouvida” em discurso indireto, quando Jack ainda não se entregou totalmente ao hotel, e só depois em discurso direto). Até coisas simples como quebras de parágrafos e interferências das vozes dos personagens, “poluindo” faulkneriamente o texto (embora não chegue à radicalidade da primeira parte de O Som e a Fúria), funcionam no estabelecimento do desequilíbrio, como se o livro se debatesse, exsudando o horror que aumenta a cada página.

::: E é uma estrutura tal que se inicia com um equilíbrio tênue, instável como o(s) humor(es) do pobre Jack, alcoólatra e quase falido, agarrando-se a um emprego de zelador enquanto sonha terminar uma peça que, no fundo, sabe não ser grande coisa. Tal equilíbrio é rompido aos poucos por uma força extrínseca e sobrenatural, impregnada nas paredes e cômodos do próprio hotel e dependente da anuência de seu veículo (Jack) para atingir seus objetivos — eternizar a violência que alicerça e mantém o lugar e absorver o poderoso Danny, um “iluminado”.

::: Ressalte-se: o Mal é extrínseco e ecoa uma infinidade de tragédias e atos perversos que ocorreram no hotel ao longo de sete décadas (muitos deles esmiuçados em detalhes por King), mas Ele não teria lugar sem a óbvia consonância interna do veículo; para se fazer real e palpável, logo ameaçador, o Mal precisa conversar com alguém, precisa dos ouvidos, dos braços, pernas e mãos do outro.

::: O horror mora nos detalhes e na maneira como estes são articulados para dar estofo à sua expressão mais óbvia (fantasmas, alucinações, violência, fogo). Se não houvesse tal articulação, ou se ela fosse malsucedida, teríamos apenas uma sucessão tediosa de sustos e brutalidades. Mas King é um exímio articulador. Por exemplo: ele nos conta sobre o que levou à demissão de Jack de seu (bom) emprego anterior; sobre quando ele agrediu o filho num acesso de fúria; volta anos e anos e traça um retrato apavorante do pai de Jack, da mesma forma como, analogamente, discorre acerca da relação tormentosa de Wendy com a mãe. Tais coisas preenchem o quebra-cabeças familiar para melhor desmontá-lo; se não tivéssemos a visão do todo, não nos importaríamos. Se não nos importássemos, tudo (história familiar, história de terror) cairia por terra.

::: Assim, o foco maior está na relação familiar, destrinchada em seus melhores e piores momentos e conforme o ponto de vista de cada personagem, paralelamente ao cerco que se forma à medida que avança o inverno e aumenta o isolamento. A violência maior nasce e se expressa por meio dela, família, e o clímax fantasmagórico é também uma caricatura grotesca dos horrores cotidianos. A fonte do horror é o núcleo disfuncional. Qualquer pessoa que tenha sofrido violência física de alguém que não deveria estar infligindo aquilo reconhecerá tal desamparo. Quando o Mal se movimenta, é a voz do pai que ouvimos. É a voz do pai abusivo de Jack que primeiro lhe ordena matar a mulher e o filho. E é a voz transtornada do pai que Danny ouve desde o começo em suas visões, quando tudo parece lhe dizer (gritar) para não ir ao hotel.

::: A realidade se estilhaça à medida que o tênue equilíbrio familiar se desfaz. O amor entre eles é verdadeiro (e é particularmente tocante a proximidade entre Jack e Danny, apesar de tudo), o que só torna os desdobramentos ainda piores e mais aterrorizantes. Nas entranhas do hotel, o Mal mastiga o pai para cuspi-lo sobre a mãe e o filho. King não alivia. As chamas virão. E a tranquilidade aparente do epílogo não esconde (ou sublima) o horror pretérito, presente ou futuro.

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