Sensações recorrentes

Sensações recorrentes

Artigo publicado hoje n’O Popular.

Bozo

Volta e meia, exasperado com o andamento das coisas, digo para os conhecidos: “Este país já era”. Às vezes, mais exasperado do que o normal (e qual seria o “normal” a essa baixeza das coisas?), digo que o Brasil nunca existiu, que ele não passa de uma ficção muito mal elaborada, de uma colcha de retalhos costurada de forma canhestra por mãos inábeis, de um amontoado de ideários míopes e culturas abastardadas que só vieram aqui para matar e, sobretudo, para morrer. Talvez eu não devesse me referir dessa forma ao nosso Não País, tendo em vista o avanço de certo patriotismo adoecido, verificável na massa de zumbis que traja camisas amarelas da CBF, marcha diante de réplicas toscas de Estátua da Liberdade, aplaude atos racistas perpetrados por autoridades e alimenta o neointegralismo bolsolavista que nos devora e apodrece por dentro — este país já era.

Ou melhor: talvez seja exatamente esse o momento de me referir a esse estado de canibalização da (in)consciência nacional, em que a mera ação de ligar a televisão para assistir ao noticiário se tornou um ato de bravura ou burrice, a depender do que agredirá os olhos dos que ainda conservam um mínimo de humanidade no coração. Quando era criança, ali por 1989, lembro de ouvir especialistas se referindo à década de 1980, marcada pela crise econômica e pela hiperinflação, como a “década perdida”. Olhando para o Brasil atual e para o que nos espera a curto e a médio prazos, só consigo pensar que nos tornamos o país perdido. Não somos o único, muitos outros têm se dedicado ao esporte de incinerar a própria alma, mas é onde eu vivo e provavelmente morrerei, é o que tenho para hoje e, quem sabe, amanhã. Que a terra nos seja leve.

Então, ligo a televisão não para me aventurar nas notícias, mas para me distrair. Vendo uma série passada em um presente alternativo e obscuro, Watchmen, eu me pego rindo sozinho porque não é possível que mesmo aquele mundo calcado na paranoia e no medo pareça, apesar de tudo, menos distópico do que o nosso. A que ponto chegamos, não é mesmo? Não cairei na besteira de usar o clichê segundo o qual “a realidade ganha fácil da ficção”, porque isso é algo evidente desde que o mundo é mundo e a ficção é ficção. O “trabalho” da ficção nunca foi o de “ganhar” da realidade, mas de representa-la até onde e como for possível e, quando necessário, perverter ou subverter determinados aspectos dela. Ademais, a ideia de que seja possível acessar diretamente o “real” é uma impossibilidade epistemológica: há sempre mediações, por assim dizer, a começar pela própria linguagem de que dispomos ou que usamos para dispor (d)o mundo.

Watchmen é uma série televisiva que parte (é uma espécie de sequência) da graphic novel homônima criada por Alan Moore e Dave Gibbons nos anos 1980, uma obra-prima. Uma sensação recorrente nos quadrinhos e na série é: este mundo já era. Claro, já estivemos aqui antes. Inúmeras vezes. Na primeira metade do século passado, por exemplo, quando milhões e milhões morreram nas trincheiras e nos campos de extermínio. Não há nada de novo nessa sensação, assim como nada há de novo na estupidez assassina (genocida?) que volta a dominar o sombrio espírito do tempo.

 

Na terceira margem

Texto publicado hoje n’O Popular.

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Em se tratando das extravagâncias literárias que, dada a preguiça de pensar em um termo melhor, entendidos e desentendidos costumam classificar como “pós-modernistas”, a prosa de Donald Barthelme (1931-1989) está entre as melhores. Há outros autores, a maioria deles bem diferente entre si — só a preguiça explica essa mania de enfiar William Gaddis, Thomas Pynchon, John Barth e William H. Gass, por exemplo, em um mesmo cubículo conceitual, mas exigências acadêmicas são exigências acadêmicas, e a imaginação (qualquer idiota sabe) costuma viver noutros lugares. E, por falar em extravagâncias, precisamos agradecer à Editora Rocco e ao escritor e tradutor Daniel Pellizzari pela graça alcançada que é ter ao alcance dos olhos e da língua portuguesa duas obras-primas de Barthelme: o romance O Pai Morto, lançado por aqui em 2015, e a coletânea Grandes Dias e Outras Histórias, recém-chegada às livrarias e sobre a qual discorrerei a seguir.

Barthelme é um dos autores mais inclassificáveis da prosa norte-americana do século passado. Cheio de humor, inventivo e plurissolerte (sic) feito um Odisseu chapado na corte de um Alcínoo mais chapado ainda, ele envolve, sacaneia, experimenta, ri e nos devolve a alegria de compartilhar histórias. Em Grandes Dias, explorando uma infinidade de registros e estilos, ele compõe desde narrativas dominadas por diálogos (como a que dá título ao volume) até falsas entrevistas (“Janeiro”), passando por pastiches hagiográficos (“A tentação de Santo Antônio”) e de histórias de piratas (“Capitão Blood”), viagens algo lisérgicas (“No museu de Tolstói”), supostos diários (“Conversas com Goethe”) e até um “thriller” de espionagem que ri de si mesmo, abrindo uma brecha para que possamos respirar  (“O soldado sapador Paul Klee extravia uma aeronave entre Milbertshofen e Cambrai, março de 1916″).

“Ó arte”, lemos a certa altura do soberbo “Visitas”, “não a machuco se você não me machucar.” O problema é que a “experiência educacional de si” (da qual ninguém sai vivo, frise-se) não apresenta tantas saídas quanto gostaríamos, e o engenho do autor só parece dar conta desse trauma por meio de um estilhaçamento que é, ao mesmo tempo, estrutural e desestruturante. O estilhaçamento estrutural é visível na forma como Barthelme extrapola quaisquer camisas-de-força estilísticas; e o caráter desestruturante, por sua vez, diz respeito ao humor particularíssimo e à extrema imprevisibilidade de suas histórias.

É importante frisar o quanto Barthelme parece não se levar a sério, e isso talvez seja uma estratégia genial para fazer com que o leitor fique sempre com a guarda baixa. Suas histórias nem sempre são “fáceis”, raras contam algo de forma “linear” (segundo Dave Eggers, isso só ocorre quando Barthelme está distraído), muitas delas parecem colagens surrealistas ou oníricas, as informações são elusivas e até contraditórias, mas o senso de humor e o calor humano estão sempre lá, à nossa espera, em uma curva qualquer, no meio de um parágrafo ou mesmo no intervalo entre um conto e outro, quando paramos para respirar e algo se torna claro para nós, tão claro que mal conseguimos verbalizá-lo.

E é por isso que não conseguimos largar o livro, é por isso que, apesar de eventuais dificuldades, ele é sempre afetuoso, jamais afasta ou aliena o leitor, mas sempre conforta os nossos olhos e nos leva para uma espécie de terceira margem: o lugar das possibilidades ficcionais, jamais infenso à realidade imediata, “objetiva”, mas ciente de seus absurdos e conhecedor de suas fraturas. Há um compartilhamento efetivo aqui, experiencial, existencial, profundo. Afinal, como se poderia pensar, Barthelme não compõe meros “exercícios de estilo”, mas exercita a cada página uma enorme e insuspeita generosidade. Posso estar enganado, mas creio que essa seja uma das marcas dos grandes autores.

Sobre “Daniel está viajando”

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Daniel está viajando (ed. Quase Oito), meu primeiro livro infantojuvenil, é uma história sobre perda e solidão, contada do ponto de vista de uma criança. De certo modo, perda e solidão são aliviadas pela amizade de Daniel com uma nova colega de escola e, sobretudo, pela própria imaginação do menino.

Escrevi Daniel está viajando em meados de 2012, quando terminava Terra de casas vazias. Há uma parte de Terra de casas vazias protagonizada por uma criança. É o bloco central do romance (cuja estrutura remete ao desenho da Velha Jerusalém e seus “quarteirões”), e o único narrado no tempo presente. Na época, apreciei o esforço de ver o mundo pelos olhos de uma criança e senti vontade de desenvolver outra narrativa a partir desse “lugar”.

Alguns anos antes disso, surgiu a ideia dos corpos encobrindo o sol: as pessoas morreriam e seus corpos ascenderiam fisicamente ao céu, fixando-se lá em cima. Um céu coalhado de corpos. Essa imagem seria uma forma de “presentificar” a morte, tornar a ausência algo físico, visível, e ficou perdida em um dos meus cadernos por um bom tempo. Eu me referi a ela em um texto para o Blog do IMS, publicado em julho de 2012; mais ou menos na mesma época, decidi encontrar uma forma de aproveitá-la em Daniel está viajando. Assim, entre uma revisão e outra de Terra de casas vazias, escrevi a história desse menino sensível e imaginativo que precisa lidar com a perda da avó.

No decorrer dos seis anos seguintes, enquanto trabalhava em outros dois romances (Abaixo do ParaísoEufrates), procurei por uma editora que topasse publicar Daniel está viajando. Foi uma peregrinação exaustiva, com vários “nãos” pelo caminho, tantos que pensei em desistir. Talvez a literatura infantojuvenil não fosse a minha praia, afinal. Então, quando cogitava engavetar o livro de vez, a editora Tatiana Kelly, da Quase Oito, assumiu o projeto.

A colaboração com a ilustradora Lina Nestorova foi, por certo, a parte mais gratificante de todo o processo. Ela encontrou a maneira perfeita de transmitir os ruídos entre o protagonista e a realidade, sua psique fraturada pela perda, por assim dizer. Sem as soluções encontradas pela Lina, é muito provável que o tom do narrador resultasse por demais alquebrado, árido. Creio que, sem ela, a história não funcionaria. Lina calçou Daniel para a viagem.

Daniel está viajando será lançado na semana que vem. Estarei em boa companhia, como vocês podem ver pelos convites abaixo. Todos estão convidados. Quem não puder ir e quiser comprar o livro, basta clicar AQUI.

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Lançamento – “Daniel está viajando”

Daniel está viajando (ed. Quase Oito, ilustrações de Lina Nestorova), meu primeiro infantojuvenil, será lançado na terça-feira, 05/11, às 19hs, na Livraria Blooks (Shopping Frei Caneca). Vai rolar um bate-papo comigo, Paula Fábrio e Geruza Zelnys, mediado por Emily Anne Stephano. Conversaremos sobre sobre o processo de criação de livros para crianças e o diálogo entre essas obras e a produção literária para adultos. Paula Fábrio é autora de No corredor dos cobogós; Geruza Zelnys, de Pássaro azul. Haverá sessão de autógrafos após o bate-papo. Vamos?

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Dos finais felizes

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Em uma carta1 para a filha, William Gaddis conta que um editor inglês se recusou a publicar Carpenter’s Gothic porque o livro seria “doloroso demais”. Lançado em 1985, o terceiro romance do autor é, de fato, o mais doloroso — e o menos engraçado — de seus livros, além de ser o mais o curto dentre os que publicou em vida  (o quinto e último, a novela Agapē Agape, só veio à luz em 2002, quatro anos após sua morte).

O título alude a um estilo arquitetônico muito popular na Nova Inglaterra desde os 1800 até meados do século XX, quando se procurava emular as linhas e formas vitorianas, mas usando madeira e outros materiais mais baratos em vez de pedra e ferro forjado. Uma falsificação, portanto, ou uma “colcha de retalhos de conceitos, empréstimos, fraudes, o interior uma miscelânea de boas intenções como um último e ridículo esforço para que algo aqui valesse a pena”2 (p. 227-8). De falsificações o autor de The Recognitions entende, e Carpenter’s Gothic também é sobre isso, desenrolando-se em um mundo corrompido no qual quase todos os personagens procuram levar adiante alguma espécie de esquema, vendem gato por lebre, reagem a fraudes com fraudes ainda mais elaboradas. Essa teia de golpistas inclui agentes do governo, líderes religiosos, advogados, políticos, executivos etc.

Tendo nascido como uma peça de teatro que Gaddis nunca terminou de escrever, Once at Antietam(“não leia, é terrível”, diz para a filha naquela mesma carta), o romance se passa inteirinho num único cenário — uma casa no melhor estilo “gótico carpinteiro”, no interior do estado de Nova York. A história gira em torno de três personagens: Elisabeth (Liz) Booth, cujo pai (suicida) era dono de uma enorme companhia mineradora; o marido dela, Paul, suposto WASP e sulista, veterano da Guerra do Vietnã e, agora, dentre outras coisas, espécie de “relações públicas” de um pastor picareta; e um sujeito misterioso chamado McCandless, geólogo, autor de um romance obscuro e de inúmeros artigos científicos, e com ligações nada prosaicas com a CIA.

O romance é composto majoritariamente por diálogos, em uma estruturação que Gaddis levou ao extremo em seu livro anterior. Mas, à diferença do que ocorre em J R, não temos aqui um único & enorme bloco narrativo, com dezenas de personagens e uma divertidíssima cacofonia de vozes, em que as transições de uma “cena” a outra passam quase despercebidas (uma das coisas mais geniais daquele calhamaço, a propósito, e um dos “detalhes” responsáveis por sua fluidez e vivacidade). Em Carpenter’s, há sete capítulos bem divididos, que dão conta de alguns meses nas vidas de um número pequeno de indivíduos. Poucos são os personagens que aparecem em carne e osso no decorrer da narrativa, e a maioria é apenas referida ou abordada marginalmente em, por exemplo, conversas telefônicas. Em outras palavras, muito embora várias informações importantes para a compreensão da trama jamais sejam mastigadas para o leitor — mas está tudo lá, nas linhas e entrelinhas das conversas —, Carpenter’s é menos radical do que seu predecessor. Claro que sua aparente “facilidade” é uma armadilha, e torna o soco final ainda mais devastador.

Liz e Paul estão no meio de uma batalha jurídica pelo espólio do pai dela, o tal magnata da mineração. Logo no começo, somos informados de que há vinte e três processos de acionistas contra a companhia deixada pelo velho. Um batalhão de advogados lida com a situação, mas, nas palavras atropeladas de Billy, irmão de Liz (a pontuação em Gaddis é tão idiossincrática quanto imprescindível para efeitos de ritmo e humor), “você acha que eles dão a mínima pra perder ou ganhar eles só querem manter o negócio funcionando, recessos adiamentos apelações eles cobram do espólio toda vez que pegam o telefone eles ficam falando entre si, assim eles estão todos sentados nos colos uns dos outros pegando nos narizes uns dos outros duzentos dólares a hora cada um deles, Bibb, eles combinaram tudo entre si” (p. 5)4.

Por conta dessa confusão, e por outras razões, Liz e Paul deixaram Nova York e se embrenharam no interior, alugando a casa de McCandless. O dinheiro está curto, pois o que resta da herança de Liz está atrelado a um fundo administrado de maneira espartana por um sujeito chamado Adolph. Paul trabalha para o tal reverendo, Ude5, que teria acidentalmente afogado uma criança durante uma cerimônia de batismo, e a barafunda decorrente disso é uma das várias pontas de icebergs espalhadas pelo romance. O fato é que Paul precisa transformar a “péssima publicidade” trazida pela ocorrência em algo positivo para o patrão (grosso modo: transformar um homicídio em um “milagre”), tudo isso em meio a outros imbróglios, como a disputa por um terreno supostamente rico em minérios no continente africano, no qual o reverendo instalou uma de suas missões (“vamos só pegar um continente de cada vez aqui”). Por essas e outras, Paul está sempre de passagem, o telefone toca sem parar e os mal-entendidos abundam.

Em meio ao interminável entra-e-sai — inclusive do próprio McCandless, que atulhou todos os seus documentos e publicações em um cômodo da casa e, conforme o acordo de aluguel, tem trânsito livre na residência para lidar com essas tralhas — e aos esquemas, acidentes, traições e mortes, vicejam a solidão e a fantasmagoria de Liz, sempre procurando “respirar melhor” ou apenas respirar. Ela perde (ou tem roubadas) as chaves da casa, mas isso serve apenas para sublinhar o fato de que aquilo não é o seu lar. Ela pressente a corrupção que devora o pouco que lhe resta, seu marido, o irmão, McCandless (com quem se envolve) e Edie (uma amiga de infância). Pressente, mas não compreende de todo ou, pior ainda, não tem condições para reagir: “O problema, Liz, é que você não tem noção do quão séria é toda essa confusão desgraçada…”, diz Paul (p. 205).

Mais para o final, em seu derradeiro diálogo com McCandless, ela pontua: “aquele Clausnitz (sic) estava errado, a guerra não é a continuação da política por outros meios é a continuação da família por outros meios”. E completa (p. 242):

“(…) não é terrível que a gente esteja deixando para essas crianças um mundo destroçado com todas essas grandes ideias de progresso e civilização e você sabia disso o tempo inteiro? Isso de pelo menos não deixar as coisas piores se não puder deixá-las melhores, que você é o único que ainda tem essas grandes ideias e fica aí parado, nessa casa nessa cozinha parado aí fumando e tossindo e falando e deixando todo mundo ir e se matar por uma coisa que nem está lá de verdade?”

A resposta de McCandless não é menos aguda: “Bom, pelo amor de Deus! Eles estão fazendo isso há dois mil anos não estão? E você acha que eu, você viu o jornal, esse jornal de hoje? e você acha que eu poderia impedir isso?”. A desgraça é que, de fato, McCandless não conseguiria impedir nada, inclusive por razões que depois serão esclarecidas (ou obscurecidas) por um amigo, Lester, e por sua ex-esposa. São informações que ajudam a explicar por que ele é alguém não só desprovido de esperança, como (nas palavras de Liz) parece desprezar todos os que ainda têm alguma esperança dentro de si (p. 244). No lugar dele, creio que a maioria de nós não faria muito melhor.

Ademais, sublinhe-se que McCandless, a exemplo do Thomas Eigen de JR, é inspirado no próprio Gaddis. Em sua longa conversa com Lester, um velho amigo tornado “amigo” pelas circunstâncias, e o papo diz respeito sobretudo ao valor a ser pago pelo que resta de sua alma, muitas referências são feitas ao “romance podre” que McCandless publicou anos antes, semelhante a Recognitions: “a mesma bravata, desvario” (p. 137), um livro que não “termina”, mas “cai aos pedaços” — imagem que me remeteu à igreja que desaba no final de Recognitions, matando Stanley, o compositor que executa a obra que compôs para a mãe.

McCandless não chega a tanto, e enxerga a própria obra como uma “nota de rodapé”, um “pós-escrito”, “busco finais felizes e acabo metido com gente feito você” (p. 139). Depois, respondendo a uma pergunta de Liz — “você acha que é por isso que as pessoas escrevem? quero dizer, ficção?” —, ele não titubeia: “Por ultraje…” (p. 158).6

Em Carpenter’s Gothic, nas rebarbas dos jogos que abastardam e alienam, das chicanas jurídicas e do eterno acotovelamento por mais e mais dinheiro, as tragédias de Liz e McCandless convergem na mesma medida em que, passado o interlúdio sexual, os dois se afastam. É como se suas personas quebradiças não fossem mais encaixáveis; ambos são criaturas acidentadas, literal e figurativamente. Peças mastigadas de um quebra-cabeças grotesco, eles se veem condenados a esse desencaixe.

Por mais doloroso que seja, o desfecho “feliz” diz respeito ao silêncio da casa finalmente vazia, deixada para trás: entre mortos e fugidos, gosto de pensar que Liz encontra alguma paz ao ser arrancada (repentinamente, é verdade) da “confusão desgraçada” que jamais compreendeu ou, o que parece ser o caso, compreendeu mais profundamente do que todos os demais. Pois, uma vez revelada a traição final, eu me vi obrigado a voltar algumas páginas e reler seu desabafo para McCandless (p. 244): “vou te dizer uma coisa, tudo isso é só medo, você disse, uma ficção qualquer pra suportar a noite enquanto você pensa em todas as pessoas que morreram? É ser prisioneiro das esperanças de outra pessoa, mas era, mas não era ser prisioneiro do desespero de outra pessoa!”. E mais (p. 245): “Acho que te amei quando soube que nunca mais voltaria a te ver”.

Liz sabe que está sozinha, que não tem um lar e, a exemplo de todos nós, que jamais estará segura. Mas também sabe que, de uma forma ou de outra, tudo se encaminha para o fim. As cores dessa tragédia familiar, descritas com um lirismo abrasivo no último parágrafo do romance, são apocalípticas: entrevista pela derradeira vez, a figura “parada lá fora” presentifica o oblívio. E é pelo “negro fluir da estrada” que seguirão os sobreviventes, cegos e serelepes em sua comediazinha ardilosa, ignorando que o tempo se esgotou. Liz e Gaddis descansam em paz.

São Paulo, outubro de 2019.

P.S. (14.03.2024): Em uma carta para a ex-esposa, Judith, datada de 24 de janeiro de 1987, Gaddis fala sobre alguns mal-entendidos que cercam o romance. O maior deles talvez diga respeito à morte de Liz: “Achei [que estava] claro o bastante que Liz, saúde ruim, fala de pressão alta, obviamente sozinha na casa quando cai, que o roubo foi cometido mais cedo, sua cabeça acerta a mesa (‘instrumento contundente’), a cozinha em ordem mas quando ela é encontrada na manhã seguinte (disseram a Mme Socrate que fosse bem cedo) o chão está repleto de jogos americanos (Mme Socrate vira onde ela guardava o $ para as despesas domésticas) & por fim o cheque descontado no Haiti, obviamente (eu pensei) ela voltou correndo escuridão adentro e teve um ataque cardíaco fatal, mas gente demais leu como se Paul a tivesse matado! Pobre sujeito, outra vez resenhistas achando-o perverso mal brutal & onde eu o acho desesperado confuso desolado tanto quanto ou até mais do que qualquer outro & sua dependência dela (não só por $) dolorosamente evidente (…)”.

…………

1 A carta é de 14 de março de 1985 e foi escrita à mão, na primeira página das provas revisadas de Carpenter’s Gothic. A correspondência do autor foi organizada por Steven Moore e reunida em The Letters of William Gaddis (Dalkey Archive Press: Champaign, Londres, Dublin, 2013. Edição revista e ampliada: The New York Review of Books: Nova York, 2023).

2 Os trechos citados foram traduzidos por mim. Usei a edição da Penguin (1999). Há uma edição brasileira do livro, Alguém Parado Lá Fora (tradução de Muriel Alves Brazil, ed. Best Seller), lançada há mais de vinte anos, em que o estilo de Gaddis é simplesmente destroçado.

Antietam (1862) foi uma batalha crucial na Guerra Civil Americana, e a peça de Gaddis se passava naquele período. Ele abortou a escrita da peça, mas um personagem de A Frolic of His Own (1994), Oscar Crease, toma a tarefa para si, por assim dizer.

Lembrando que esse universo jurídico é devassado e satirizado no romance seguinte de Gaddis, A Frolic of His Own.

5 Aliás, há um juiz chamado Ude em JR, mas o desgraçado morre por lá mesmo.

Assim como os personagens escritores de Recognitions JR e o próprio Gaddis, McCandless é acusado de descaradamente “roubar” pessoas reais, usando-as como modelos para sua ficção. Ora, todo escritor faz isso, mas o “problema” é quando tal procedimento se dá em um livro (como Recognitions, ou como os livros dos personagens) execrado, tido como “uma bravata”, um “desvario”. A grandeza de Recognitions foi eventualmente reconhecida, mas, por meio desses pobres diabos e seus “romances podres”, Gaddis parece especular sobre a solidão e o desespero que se abatem sobre aqueles que são mantidos nas sombras, sozinhos em sua busca, ou até mesmo corrompidos por ela.

6.1 Vários personagens de Recognitions, por exemplo, são inspirados em pessoas com quem Gaddis conviveu no Greenwich Village dos anos 1940. Conta-se que Helen Parker ficou possessa ao se reconhecer em Esther (p. 139 de Letters), e o próprio Gaddis aparece “ficcionalizado” em pelo menos duas obras: Who Walk in Darkness (1952), de Charles Brossard, e Os Subterrâneos (1958), de Jack Kerouac.

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É perfeitamente possível ler ‘O Matador’, de Patrícia Melo, ou ‘Pssica’, de Edyr Augusto, ou ‘Um Céu de Estrelas’, de Fernando Bonassi, e enxergar ali ‘comentários’ relativos à nossa erosão social, mas é inaceitável reduzi-los a isso ou, pior, rejeitar obras que não se enquadrem nesse modelo de leitura escusatório. A força de cada um desses livros remete àquele algo primevo, intrínseco à nossa malfadada natureza. Afinal, como lemos em ‘Madona dos Páramos’ (…), na longa noite em que se dá a ‘aventura’ humana, ‘nada mudou, nem o coração dos homens, nem a vaidade dos homens. E a constância dos homens é uma coisa oca e miserável’.

Trecho de minha pequena reflexão acerca das representações da violência em nossa literatura. Leia na íntegra na edição de outubro do Jornal Cândido, clicando AQUI.

[Ilustração: Guazzelli.]

Por que você não está rindo?

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Antes de ver Coringa, de Todd Phillips, fiquei pensando nas primeiras vezes em que o personagem-título quebrou as minhas pernas, por assim dizer. Ali pelos meus nove, dez anos, ver Jason Todd (o segundo Robin, para quem não sabe) espancado com um pé-de-cabra antes de ser mandado pelos ares e me deparar com uma piada infame, cujo punchline é coroado com um tiro na cabeça de um guarda de hospício, foram momentos que ajudaram a formar o meu caráter como leitor. Não me entenda mal: fiquei chocado em ambas as ocasiões, mas esse choque adveio sobretudo de algo que eu, então, era incapaz de formular, mas que tinha (e tem) a ver com a capacidade de uma obra de arte traduzir as extremas instabilidade e brutalidade do mundo. Traduzir, representar, aludir, não “criticar”, “denunciar” ou “panfletar”.

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Na mesma época, certa noite, liguei a TV e me deparei com Taxi Driver, de Martin Scorsese. Lá estava Travis Bickle falando sobre uma chuva que varreria toda aquela sujeira (Nova York, anos 1970), frequentando cinemas pornôs, ouvindo o que uma Magnum 44 pode fazer com a cara de uma pessoa e, eventualmente, encontrando um propósito e depois outro, quando faz uma visitinha explosiva a uns proxenetas e pedófilos. Impossível não pensar em Taxi Driver ao ver Coringa, impossível não ver Taxi Driver em Coringa — e isso não é um problema.

Phillips recorre ao clássico de Scorsese para calçar a jornada sombria de seu personagem principal: cores, andamento, ambientação, arco e até mesmo citações diretas — dedos apontados contra a própria cabeça, feito o cano de uma arma, e adeus. Mas há uma diferença essencial: o humor. Humor trevoso, do tipo que é recebido por risinhos nervosos espalhados pela sala de projeção ou pela rejeição imediata de alguns, o que, para mim, é também engraçado.

Dois momentos cômicos envolvem uma arma: no hospital, no meio de uma apresentação do palhaço para crianças com câncer, um revólver cai no chão; em casa, noutra citação de Taxi Driver, a mesma arma dispara acidentalmente. Talvez sejam os únicos “acidentes” envolvendo aquele revólver, mas não há um alívio cômico real. Estamos presos em circunstâncias nas quais a derrisão cobra um preço alto demais. Esse outro que enlouquece, invisível e maltratado, tem a risada vazia que não é bem uma risada, mas um sintoma. Logo, do que é que você está rindo?

No entanto, também ri com a visita dos amigos, quando as condolências morrem bem rápido, a estocadas, e o horror se instala de vez. E ri com a descida dançante das escadarias, inclusive pela escolha da música, o tipo de cusparada que só acerta os olhos de quem já foi armado ao cinema. No mesmo espírito, o lance envolvendo o suposto pai do protagonista é uma piada muito bem elaborada, que funciona dentro — a visita à mansão, a “sorridente” interação com o menino, a malfadada confrontação no banheiro — e fora do filme, pois eu ri (eu gosto de rir) só de pensar em alguns fãs dos quadrinhos inconformados com aquela possibilidade.

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Phillips também referencia e reverencia outro grande trabalho de Scorsese, O Rei da Comédia, um fracasso de bilheteria à época de seu lançamento porque o público intuiu que, bem, ele (público) era a maior piada do filme. O Rei da Comédia não ri da loucura do protagonista, um comediante fracassado que sequestra um colega, astro de um programa de TV, para ter os seus “quinze minutos”, mas ri o tempo inteiro da loucura da própria audiência, e com razão. Não diria que a maior piada de Coringa seja extrínseca a ele, essa parcela do público que esperneia contra coisas que, em grande parte, não estão lá, “incel”, “gatilhos” etc., mas é engraçado pensar que boa parte dessa gente urra de prazer com Bacurau porque ali a violência estaria a serviço da “resistência” e de um discurso “aceitável”, “urgente”, “necessário”. Parafraseando Frank Costello, quando você encara uma arma carregada, que diferença isso faz?

Toda representação da violência é gratuita, embora incautos de todas as colorações digam o contrário enquanto procuram “justificativas” para o que veem na tela ou leem em um livro (quando não encontram, rejeitam a obra em questão) — é uma “crítica”, é um “soco no estômago”, é uma “denúncia”, é uma “citação de x”, é uma “homenagem a y”, é o “capitalismo”, é o “imperialismo”. Quando a mão de um proxeneta explode em Taxi Driver, as imagens só querem “dizer” aquilo mesmo, elas são o que são: a mão de um proxeneta explodindo diante dos nossos olhos. Quando Peckinpah, ao decupar o tiroteio que abre seu majestoso Meu Ódio Será Sua Herançaalterna imagens em velocidade normal e em câmera-lenta de forma quase contra-intuitiva, levando ao extremo seu estilo ímpar de montagem, estilhaçando planos, fragmentando quadros sanguinolentos e instituindo um espaço de perturbação na própria ossatura do filme, ele não quer “dizer” nada, mas “apenas” surfar naquela sucessão de gestos violentos. Em Coringa, a disfunção narrativa ecoa a disfunção do personagem.

E não há recorte clássico que dê conta de um personagem desses. O filme opera noutra frequência, pegando códigos e estruturas reconhecíveis, típicos das “histórias de origem”, para subvertê-los conforme o olhar de/sobre um louco. Sendo uma paródia, isto é, a inversão irônica de um determinado modelo narrativo, Coringa gargalha do próprio universo no qual está inserido e das expectativas de um público idiotizado por anos de adaptações esteticamente canhestras, como as do próprio Batman. Não espanta que a outra “história de origem” que passa pela tela não seja mais do que uma nota de rodapé, espécie de efeito colateral do caos reinante, quando a cidade arde e a loucura institui seu “alegre” intervalo. Por que é que você não está rindo?

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A propósito, um dos poucos deslizes do filme de Phillips é o discurso do protagonista diante das câmeras de TV, pouco antes de soltar sua derradeira “piada”. A sequência sofre justamente daquela necessidade de se “posicionar”, de verbalizar uma “motivação” qualquer, de “situar” o espectador em algo que, pela própria natureza do personagem em questão, deveria prescindir disso. Ora, a “beleza” do Coringa de Heath Ledger, não obstante a extrema ruindade do filme de Christopher Nolan, está no modo como ele desliza pela narrativa feito um agente do caos (ali, o tropeço está no didatismo como que ele “explica” isso reiteradamente, “sou igual um cachorro perseguindo carros”, “introduza um pouco de anarquia”, “eu pareço mesmo um cara com um plano?” etc.; não me canso de dizer, um dos inúmeros problemas de Nolan é que ele não consegue calar a boca).

O caos é agenciável, mas não controlável, e o filme se recupera quando leva o espectador à rua e desvela o que o Coringa inspirou. Ele é, então, criador e criatura da devastação. Nesse contexto, talvez seja o momento em que o personagem apaga a linha que faltava (cruzar, ele cruzou bem antes) e se torna indistinguível da fúria subterrânea que, uma vez trazida à superfície, sem quaisquer anteparos, consome o que vê pela frente. O epílogo parece confirmar isso. Aquela fome jamais será saciada. É a fome que, na história que citei no começo, leva-o a manejar aquele pé-de-cabra com tanta alegria.

Quanto aos “gatilhos”, bem, eles estão em toda parte, não é mesmo? Vide a reação de Travis Bickle a um programa de auditório, ou o Filho de Sam recebendo ordens do cachorro do vizinho. A ideia de censura, seja por parte de um governo boçal, em nome dos “valores cristãos”, seja de uma parcela pretensamente “arejada” do público, em nome do que entende por “bom senso” ou “boa política”, a ideia de censura sempre parte de uma mesma e inequívoca burrice, de uma negação da “finalidade sem fim” da arte, da pretensão de aparelhar os objetos estéticos com esse ou aquele ideário às custas ou à revelia dos próprios objetos estéticos. A estupidez, também não me canso de dizer, é ambidestra.

Sim, grosso modo, toda obra de arte é política, inclusive por omissão (outra piada que reluz em Coringa, a propósito), mas os olhos devem atentar para o que é inapreensível, para o que escapa ao próprio ordenamento narrativo, para os desvios que explicitam o eterno desarranjo do mundo. Muitas vezes, o melhor cinema é como a navalha de Buñuel, e o “sentido” da coisa é ainda se enxergar e enxergar algo ao redor mesmo depois do corte. A questão é manter os olhos abertos.

Cão