Por que você não está rindo?

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Antes de ver Coringa, de Todd Phillips, fiquei pensando nas primeiras vezes em que o personagem-título quebrou as minhas pernas, por assim dizer. Ali pelos meus nove, dez anos, ver Jason Todd (o segundo Robin, para quem não sabe) espancado com um pé-de-cabra antes de ser mandado pelos ares e me deparar com uma piada infame, cujo punchline é coroado com um tiro na cabeça de um guarda de hospício, foram momentos que ajudaram a formar o meu caráter como leitor. Não me entenda mal: fiquei chocado em ambas as ocasiões, mas esse choque adveio sobretudo de algo que eu, então, era incapaz de formular, mas que tinha (e tem) a ver com a capacidade de uma obra de arte traduzir as extremas instabilidade e brutalidade do mundo. Traduzir, representar, aludir, não “criticar”, “denunciar” ou “panfletar”.

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Na mesma época, certa noite, liguei a TV e me deparei com Taxi Driver, de Martin Scorsese. Lá estava Travis Bickle falando sobre uma chuva que varreria toda aquela sujeira (Nova York, anos 1970), frequentando cinemas pornôs, ouvindo o que uma Magnum 44 pode fazer com a cara de uma pessoa e, eventualmente, encontrando um propósito e depois outro, quando faz uma visitinha explosiva a uns proxenetas e pedófilos. Impossível não pensar em Taxi Driver ao ver Coringa, impossível não ver Taxi Driver em Coringa — e isso não é um problema.

Phillips recorre ao clássico de Scorsese para calçar a jornada sombria de seu personagem principal: cores, andamento, ambientação, arco e até mesmo citações diretas — dedos apontados contra a própria cabeça, feito o cano de uma arma, e adeus. Mas há uma diferença essencial: o humor. Humor trevoso, do tipo que é recebido por risinhos nervosos espalhados pela sala de projeção ou pela rejeição imediata de alguns, o que, para mim, é também engraçado.

Dois momentos cômicos envolvem uma arma: no hospital, no meio de uma apresentação do palhaço para crianças com câncer, um revólver cai no chão; em casa, noutra citação de Taxi Driver, a mesma arma dispara acidentalmente. Talvez sejam os únicos “acidentes” envolvendo aquele revólver, mas não há um alívio cômico real. Estamos presos em circunstâncias nas quais a derrisão cobra um preço alto demais. Esse outro que enlouquece, invisível e maltratado, tem a risada vazia que não é bem uma risada, mas um sintoma. Logo, do que é que você está rindo?

No entanto, também ri com a visita dos amigos, quando as condolências morrem bem rápido, a estocadas, e o horror se instala de vez. E ri com a descida dançante das escadarias, inclusive pela escolha da música, o tipo de cusparada que só acerta os olhos de quem já foi armado ao cinema. No mesmo espírito, o lance envolvendo o suposto pai do protagonista é uma piada muito bem elaborada, que funciona dentro — a visita à mansão, a “sorridente” interação com o menino, a malfadada confrontação no banheiro — e fora do filme, pois eu ri (eu gosto de rir) só de pensar em alguns fãs dos quadrinhos inconformados com aquela possibilidade.

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Phillips também referencia e reverencia outro grande trabalho de Scorsese, O Rei da Comédia, um fracasso de bilheteria à época de seu lançamento porque o público intuiu que, bem, ele (público) era a maior piada do filme. O Rei da Comédia não ri da loucura do protagonista, um comediante fracassado que sequestra um colega, astro de um programa de TV, para ter os seus “quinze minutos”, mas ri o tempo inteiro da loucura da própria audiência, e com razão. Não diria que a maior piada de Coringa seja extrínseca a ele, essa parcela do público que esperneia contra coisas que, em grande parte, não estão lá, “incel”, “gatilhos” etc., mas é engraçado pensar que boa parte dessa gente urra de prazer com Bacurau porque ali a violência estaria a serviço da “resistência” e de um discurso “aceitável”, “urgente”, “necessário”. Parafraseando Frank Costello, quando você encara uma arma carregada, que diferença isso faz?

Toda representação da violência é gratuita, embora incautos de todas as colorações digam o contrário enquanto procuram “justificativas” para o que veem na tela ou leem em um livro (quando não encontram, rejeitam a obra em questão) — é uma “crítica”, é um “soco no estômago”, é uma “denúncia”, é uma “citação de x”, é uma “homenagem a y”, é o “capitalismo”, é o “imperialismo”. Quando a mão de um proxeneta explode em Taxi Driver, as imagens só querem “dizer” aquilo mesmo, elas são o que são: a mão de um proxeneta explodindo diante dos nossos olhos. Quando Peckinpah, ao decupar o tiroteio que abre seu majestoso Meu Ódio Será Sua Herançaalterna imagens em velocidade normal e em câmera-lenta de forma quase contra-intuitiva, levando ao extremo seu estilo ímpar de montagem, estilhaçando planos, fragmentando quadros sanguinolentos e instituindo um espaço de perturbação na própria ossatura do filme, ele não quer “dizer” nada, mas “apenas” surfar naquela sucessão de gestos violentos. Em Coringa, a disfunção narrativa ecoa a disfunção do personagem.

E não há recorte clássico que dê conta de um personagem desses. O filme opera noutra frequência, pegando códigos e estruturas reconhecíveis, típicos das “histórias de origem”, para subvertê-los conforme o olhar de/sobre um louco. Sendo uma paródia, isto é, a inversão irônica de um determinado modelo narrativo, Coringa gargalha do próprio universo no qual está inserido e das expectativas de um público idiotizado por anos de adaptações esteticamente canhestras, como as do próprio Batman. Não espanta que a outra “história de origem” que passa pela tela não seja mais do que uma nota de rodapé, espécie de efeito colateral do caos reinante, quando a cidade arde e a loucura institui seu “alegre” intervalo. Por que é que você não está rindo?

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A propósito, um dos poucos deslizes do filme de Phillips é o discurso do protagonista diante das câmeras de TV, pouco antes de soltar sua derradeira “piada”. A sequência sofre justamente daquela necessidade de se “posicionar”, de verbalizar uma “motivação” qualquer, de “situar” o espectador em algo que, pela própria natureza do personagem em questão, deveria prescindir disso. Ora, a “beleza” do Coringa de Heath Ledger, não obstante a extrema ruindade do filme de Christopher Nolan, está no modo como ele desliza pela narrativa feito um agente do caos (ali, o tropeço está no didatismo como que ele “explica” isso reiteradamente, “sou igual um cachorro perseguindo carros”, “introduza um pouco de anarquia”, “eu pareço mesmo um cara com um plano?” etc.; não me canso de dizer, um dos inúmeros problemas de Nolan é que ele não consegue calar a boca).

O caos é agenciável, mas não controlável, e o filme se recupera quando leva o espectador à rua e desvela o que o Coringa inspirou. Ele é, então, criador e criatura da devastação. Nesse contexto, talvez seja o momento em que o personagem apaga a linha que faltava (cruzar, ele cruzou bem antes) e se torna indistinguível da fúria subterrânea que, uma vez trazida à superfície, sem quaisquer anteparos, consome o que vê pela frente. O epílogo parece confirmar isso. Aquela fome jamais será saciada. É a fome que, na história que citei no começo, leva-o a manejar aquele pé-de-cabra com tanta alegria.

Quanto aos “gatilhos”, bem, eles estão em toda parte, não é mesmo? Vide a reação de Travis Bickle a um programa de auditório, ou o Filho de Sam recebendo ordens do cachorro do vizinho. A ideia de censura, seja por parte de um governo boçal, em nome dos “valores cristãos”, seja de uma parcela pretensamente “arejada” do público, em nome do que entende por “bom senso” ou “boa política”, a ideia de censura sempre parte de uma mesma e inequívoca burrice, de uma negação da “finalidade sem fim” da arte, da pretensão de aparelhar os objetos estéticos com esse ou aquele ideário às custas ou à revelia dos próprios objetos estéticos. A estupidez, também não me canso de dizer, é ambidestra.

Sim, grosso modo, toda obra de arte é política, inclusive por omissão (outra piada que reluz em Coringa, a propósito), mas os olhos devem atentar para o que é inapreensível, para o que escapa ao próprio ordenamento narrativo, para os desvios que explicitam o eterno desarranjo do mundo. Muitas vezes, o melhor cinema é como a navalha de Buñuel, e o “sentido” da coisa é ainda se enxergar e enxergar algo ao redor mesmo depois do corte. A questão é manter os olhos abertos.

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