"… to miss New Orleans?"

"… to miss New Orleans?"

treme

Treme chegou ao fim junto com 2013. O quinto e último episódio da derradeira temporada (a quarta) foi ao ar no dia 29 de dezembro. A série de David Simon e Eric Overmyer foi um desdobramento natural do tipo de coisa que eles fizeram em Baltimore com The Wire (esta, para o meu gosto, a melhor coisa já feita em televisão).

A cidade, dessa vez, foi New Orleans, e Treme acompanhou os anos imediatamente posteriores à passagem do furacão Katrina por meio de um bom número de personagens (músicos, jornalistas, advogados, professores, especuladores imobiliários, bons e maus policiais, políticos etc.).

Para se ter uma ideia do quanto eu me senti próximo da série, posso dizer que jamais teria escrito Terra de casas vazias da forma como escrevi se não a tivesse visto. A ideia de acompanhar aqueles personagens sem, contudo, rasgar a narrativa com um clímax, mas simplesmente seguindo-os por um determinado tempo, como quem recorta um pedaço das vidas dessas pessoas, sem forçações de barra, tornou-se clara para mim a partir do momento em que assisti aos primeiros episódios de Treme.

Há uma sofisticação na maneira como a série se deixa levar que só acho comparável à de The Wire. Ao se recusar a tecer arcos narrativos tradicionais, explorar coincidências obtusas, mergulhar em dramalhões e esboçar reviravoltas estrondosas, Treme atinge uma verdade e uma decência que, embora nos saltem aos olhos em seus melhores momentos (e eles são inúmeros), jamais nos gritam aos ouvidos. Com tranquilidade e parcimônia, ela nos aproxima dos personagens e permite que vivenciemos um pouco de suas vidas, até onde isso é possível.

Dois bons exemplos das extremas sutileza e inteligência com que Treme foi conduzida, ambos pinçados da última temporada: a cidade em polvorosa, comemorando a vitória de Barack Obama em 2008, e alguém sai de um bar, chega ao meio da rua e, por acaso, olha para as esquinas acima e abaixo, observando, em cada uma delas, uma ou mais viaturas de polícia, numa espécie de cerco indicando que, bem, nada vai mudar; a despedida do personagem de David Morse, pegando a estrada  e tendo a exata noção da saudade que sentirá de New Orleans quando o rádio do carro, sintonizado em uma estação da cidade, começa a falhar.

Falham também as palavras, sempre, e no lugar delas entra a música ou, em alguns casos, o silêncio. Ainda na primeira temporada, quando um personagem se mata, não o vemos saltar da barca, mas, sim, o vazio deixado por ele. No gesto e na forma surda como ele é mostrado, está evidente a impossibilidade daquele homem continuar vivendo naquela cidade tal e qual ela se apresenta após o desastre. O espaço é contaminado pela violência gratuita e pela corrupção. De certa forma, ele não salta, mas é lançado. E sabemos de tudo isso não porque a coisa é dita, mas, sim, porque ela é mostrada, e genialmente.

É óbvio que tal estruturação tem muito da música que preenche boa parte da cada episódio (Tremé, aliás, é o bairro de New Orleans onde nasceu o jazz). Mais do que isso, é uma opção que possibilitou construir uma topologia dramatúrgica sem igual, conforme à cidade e respeitando a sua diversidade. O acúmulo de recortes redunda em um mosaico que, embora extenso, jamais se pretende completo ou definitivo. Acima de tudo, Treme celebra a incompletude.

Na terra impassível

Quem há de falar os segredos da terra impassível?
Whitman

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E. M. Forster recorreu a Walt Whitman para intitular o último romance que publicou em vida, Passagem para a Índia. David Lean recorreu a Forster para realizar seu derradeiro filme, homônimo, lançado em 1984. Entregou-se à tarefa com o mesmo desprendimento com que a sra. Moore (Peggy Ashcroft), personagem capital, entrega-se à sua viagem derradeira. Ambos não precisavam provar mais nada.

O cineasta soube perceber a sutileza extrema do romancista, o modo único como ele desenrola o enredo, as passagens (de situações, de tons, de vozes) sucedendo-se sem atropelos. É mesmo o caso de um mestre da narrativa encontrando outro. As soluções encontradas por Lean para traduzir visualmente alguns eventos e, o que é ainda mais difícil, estados de espírito complexíssimos são dignas do grande artista que ele foi.

Começo por um exemplo dos mais simples: quando, assistindo a um jogo de pólo, Adela (Judy Davis) diz a Ronny (Nigel Havers) que seria melhor que eles rompessem o noivado, Lean recorre a um plano de inserção (alguém caindo do cavalo) que traduz algo mais do que os sentimentos dos personagens. Um corpo se estatela no chão, em meio à poeira, e a imagem resume muito bem o que está por vir.

Depois, naquela que é a cena mais complicada, quando Adela sofre o surto histérico numa das grutas de Marabar, para além de toda a encenação (tornada primorosa pela atuação de Davis e, claro, pela mise-en-scène de Lean) da ocorrência em si, temos a ressonância desta quando, após um corte seco, vemos um nada de água suja escorrendo lá fora, sob o sol, de um tanque onde, um pouco antes, banhavam um elefante.

A água, aliás, seja do Ganges, seja do mar, suja ou limpa, sustenta boa parte das inserções e desses planos de passagem. Ela diz respeito tanto à dolorosa transitoriedade de tudo, compreendida até os ossos pela sra. Moore quando se vê enredada pela escuridão das grutas (e tudo o mais é escuridade, pois não?) quanto à caracterização da personalidade liquefeita de Adela, pivô de toda a confusão.

A impassibilidade da Criação é pisada e repisada, para além ou aquém da atribulação humana. Em um matagal, enquanto pedala, Adela se depara com estátuas e restos de estátuas, incluindo a de duas figuras que parecem foder, e é imediatamente “expulsa” dali. Sua psicologia perturbada é incapaz de lidar com as demandas do corpo. Antes, ao chegar à cidade, ela entrevê um cadáver que é carregado em meio à multidão. Depois, nas grutas, horroriza-se com a imagem do dr. Aziz à entrada, gritando por ela, que parece justamente sepultada ali ou, melhor dizendo, em si mesma. 

Filmando décadas após a publicação do romance e a derrocada do Império Britânico, Lean opta por passar ao largo das questões políticas (embora elas ainda se façam muito presentes). Importam a escuridão abrasiva, o calor, a luz empoeirada, as despedidas, o fim. Importam o corpo e até onde ele consegue ir, se até o outro ou não.

Sobre a raiva

Revisado em 1º.12.2019.

::: Muito já se escreveu sobre Touro Indomável, tido como um dos melhores filmes da história. Essa “redenção católica de um homem animalizado” (Vincent Canby disse isso, salvo engano) continua perfeita em sua aspereza quase insuportável. Revendo-o após alguns anos, o que mais uma vez me impressionou foi a extrema raiva que o anima. Eu ainda me reconheço nela, e isso é meio assustador.

::: “Eu me dei conta de que não tinha mais nada a fazer”, disse Martin Scorsese sobre o momento em que, internado em um hospital após sofrer um colapso, viciado em cocaína, esgotado, Robert DeNiro foi visitá-lo com a autobiografia do ex-boxeador Jake LaMotta (1921-2017), querendo saber se aquele poderia ser o próximo filme deles. Se a autodestruição é uma forma de arte, Scorsese e LaMotta foram, cada qual a seu modo e em seus respectivos mundos, grandes artistas.

::: Touro Indomável é o registro brutalista de alguém devorando os outros e a si mesmo. Ao final, quando esse alguém se vê sozinho, ocorre uma iluminação. Não chega a ser uma epifania, mas a crua constatação de que nada mais restou. “Eu não sou um animal”, ele diz várias e várias vezes, e chora depois de estourar as mãos socando a parede da cela em que o jogaram. É o primeiro momento em que ele, de fato, pode dizer isso. E é o primeiro momento em que nós, espectadores, podemos dizer: “Bom, talvez não”.

::: Philip Roth escreveu certa vez (em A Marca Humana) que a raiva pode ser vivificante. Talvez. Mas, em geral, ela não permite que se veja as coisas com clareza. E há uma névoa que se espessa em Touro Indomável. Um mundo cada vez mais retorcido, incompreensível, absurdo. Não é possível confiar em ninguém. O homem está sozinho. Todos querem tirar alguma coisa dele. Todos mentem. Todos merecem apanhar.

::: E, ao mesmo tempo, há um dolorosíssimo abastardamento. LaMotta não se sente parte de nada, seja do bairro, seja da família. Quando visita o pai, depara-se com uma casa vazia. A fotografia dele com o irmão não significa muito. Ninguém se isola tanto impunemente. A culpa alimenta a raiva. “Fiz algumas coisas ruins na minha vida”, ele diz após uma luta que entregou ridiculamente para, no futuro, com a mãozinha da máfia, ter uma chance de lutar pelo cinturão. O problema (um dentre tantos) é que ele não sabe como responder a isso, à culpa e à raiva que o mordem, exceto mordendo de volta. Chega uma hora em que os dentes não aguentam mais. Chega uma hora em que não resta mais ninguém para morder. E, acima de tudo, chega uma hora em que o sujeito percebe que passou todo aquele tempo mordendo (sobretudo) a si mesmo.

::: Em tal contexto, as conquistas são esvaziadas. Quando LaMotta conquista o título, a música de Mascagni desaparece e Scorsese nos deixa com os sons mecânicos dos flashes. É um triunfo oco. Antes da luta, ele estapeou a esposa e berrou com o irmão no quarto do hotel. O mundo inteiro é um ringue. A raiva não é direcionada, mas extravasada o tempo todo, e das piores maneiras. Quando o mundo inteiro é um ringue, não há perspectiva que possibilite saborear, do lado de fora, o que é conquistado lá dentro. A luta é interminável.

::: Duvido que, ao final, LaMotta seja um homem “melhor”. É, talvez, alguém mais consciente do material extremamente inflamável de que é constituído. A raiva ainda está ali, mas também a noção (evito pensar em “consciência”) de como ela pode ser arrasadora, sobretudo quando acesa sob os próprios pés. A vida como esse eterno caminhar sobre brasas. Sugar Ray Robinson nunca conseguiu derrubá-lo. Não foi preciso.

::: Tanto que LaMotta, um gordo patético, dublê de comediante, falido, caminhando atrás do irmão que espancara anos antes, implorando por perdão, é qualquer coisa, menos um “novo homem”. Ele sempre permanecerá nas trevas, mas talvez haja algum consolo em saber disso. Scorsese é honesto demais para oferecer qualquer outra coisa. Ele conhece LaMotta e a si próprio. Ele conhece a raiva.

::: No filme, o catolicismo escorre por toda parte. Está no homem que se deixa massacrar como forma (quimérica, veja só) de expiação. Ocorre que a expiação nunca vem quando queremos, e na forma como queremos. É algo um pouco mais complicado. A dor, por si só, não significa muito. LaMotta ainda precisou percorrer um longo e tortuoso caminho até aquela cela para perceber isso. Precisou estar verdadeiramente só. A dor, ali, não é infligida por outrem, mas por ele mesmo. A raiva adquire seu contorno real, e ele pode enxergá-la. Não há mais ninguém ali. Está nele. Ele teve de afastar todo mundo para se enxergar.

::: E é uma espécie de redenção, claro. Está lá. O irmão não o recebe de braços abertos, nem poderia. Ele próprio não se recebe de braços abertos. Mas, de certa forma, ensaia-se uma convivência possível, o esboço de uma viabilidade. O trecho bíblico (João 9: 24-25: “Chamaram, então, a segunda vez, o homem que fora cego e lhe disseram: ‘Dá glória a D’us. Sabemos que esse homem é pecador’. Respondeu ele: ‘Se é pecador, não sei. Uma coisa eu sei: é que eu era cego e agora vejo’.”) nos fala disso. O mundo trevoso continua ali, mas agora ele pode enxergá-lo.

A guerra interminável

Textos publicados no Estadão, aqui & aqui, em 18.01.2014.

Salinger

Salinger, biografia do célebre autor norte-americano assinada por David Shields e Shane Salerno, oferece uma visão profunda daquilo que um dos biógrafos chama, a certa altura, de “um coração em queda livre”. Famoso pela reclusão a que se entregou por mais de meio século, justamente quando alcançava a fama com a publicação de O Apanhador no Campo de Centeio, Jerome David Salinger (1919-2010) teria encontrado primeiro na literatura e depois na religião vedanta, ou na compaginação dessas duas coisas, uma forma de tornar minimamente suportáveis os traumas sofridos durante a Segunda Guerra Mundial. A história de sua vida, refletida na ficção que produziu, ecoa uma guerra interminável e é, também, a narrativa de seu próprio e autoimposto desaparecimento.

Shields e Salerno montam o livro, em sua maior parte, como uma sucessão de depoimentos entrecortados por trechos de escritos do biografado (incluindo algumas preciosidades do começo da carreira) e de outros autores, além de fotos e cartas que se alternam dinamicamente. Com isso, tornam possível ao leitor vislumbrar o personagem em toda a sua complexidade e com todas as contradições que lhe eram inerentes, até pelas reações paradoxais que provocava, e ainda provoca, em amigos, leitores, editores, jornalistas, vizinhos, filhos e ex-companheiras.

Embora seja impossível evitar certas indiscrições, o foco quase sempre permanece nos modos como o escritor nasceu e foi se desenvolvendo, sobretudo à sombra do que testemunhou em alguns dos piores eventos da guerra: além de desembarcar na Normandia em pleno Dia D, ele esteve presente nas batalhas de Hürtgen (novembro –dezembro de 1944) e das Ardenas (dezembro de 1944 – janeiro de 1945), e foi literalmente um dos primeiros a chegar ao campo de extermínio Kaufering IV, na primavera de 1945.

Tamanho acúmulo de horrores seria demais para Salinger, nascido e criado no seio de uma família rica da Park Avenue, em Nova York, e é quase um consenso entre os entrevistados que tanto o que de melhor ele escreveu quanto as suas não poucas esquisitices seriam fruto de um transtorno de estresse pós-traumático que não fora devidamente tratado. A guerra, assim, alimenta explícita ou implicitamente obras-primas incontestáveis, desde o romance Apanhador (descrito por Salerno como “a guerra inacabável traduzida em palavras”) até contos como Um dia ideal para os peixes-banana, Tio Wiggily em Connecticut e Para Esmé, com Amor e Sordidez.

A biografia é estruturada segundo as fases do caminho do vedanta: aprendizado, deveres do lar, retirada da vida social e, por fim, renúncia ao mundo (“Estou neste mundo, mas não pertenço a ele”, Salinger afirmou certa vez). Baseados nisso e em suas inúmeras fontes, os autores apontam determinadas coisas como cruciais nessa caminhada rumo ao oblívio: um defeito anatômico congênito que o incomodava barbaramente; o fato de perder sua namorada da juventude, Oona O’Neil (filha do dramaturgo nobelizado Eugene O’Neil), para ninguém menos que Charles Chaplin; e, claro, as carnificinas vivenciadas na guerra. Segundo Shields e Salerno, esses golpes “não só definiram sua arte como também o transformaram em um artista que exigia de si mesmo nada menos que a perfeição”. No entanto, sempre que procurava interagir com as pessoas ao redor, ele fracassava. Assim, “reviver e revisitar interminavelmente suas feridas tornou-se muito mais importante para ele do que o mundo que lhe causara as feridas”.

Com toda essa carga, não é de se admirar que Salinger tenha se refugiado numa espécie de bunker: “Sua vida foi um suicídio em câmera lenta. Seu objetivo era desaparecer”. Constatações dessa natureza e a lenta descrição, por meio de uma miríade de vozes não raro desencontradas, de alguém que se esmerou em transformar sua existência em uma não-existência, tornam a leitura extremamente dolorosa, sobretudo para quem é familiarizado com seus escritos e aprendeu a admirar a beleza incomparável que eles encerram. Ao mesmo tempo, à medida que aspectos obscuros dessa não-existência são paulatinamente iluminados, aqueles mesmos escritos adquirem uma reverberação ainda maior, como parte integrante de um esforço descomunal para, segundo Shields, ressacralizar uma vida totalmente dessacralizada pela guerra e pela violência. O que poderia ser maior do que isso?

Lamentamos apenas os grotescos erros de revisão. Por exemplo, na pág. 469: “Em 31 de outubro de 1938, a revista People publicou um artigo sobre o filho de Salinger, Matthew Salinger”. Ocorre que Matthew nasceu em 1960 e a People só foi fundada em 1974. Antes, na pág. 102: “Ela ainda era um (sic) adolescente quando se casou com ele”. Portanto, aos que dominam a língua inglesa, sugerimos que esqueçam a edição brasileira e adquiram a original.

…………

CARNE QUEIMADA

Algumas das passagens mais impressionantes de Salinger, de David Shields e Shane Salerno, dizem respeito ao que o biografado vivenciou na Segunda Guerra Mundial.

J. D. Salinger desembarcou na praia Utah, no Dia D (06 de junho de 1944), com o 12º Regimento de Infantaria, que contava então com cerca de 3100 soldados. Destes, 2500 morreriam até o final daquele mesmo mês.

Trabalhando no Corpo de Contrainformação, ele ainda atravessaria o inferno da batalha na floresta de Hürtgen, na fronteira da Bélgica com a Alemanha, e suportaria, a um passo da exaustão completa e da loucura, a sanguinária contraofensiva alemã na região montanhosa das Ardenas, entre a Bélgica, Luxemburgo e a França, num evento também conhecido como a Batalha do Bulge.

Segundo Alex Kershaw, citado na biografia, nas Ardenas ocorreu “a culminação brutal da experiência de combate de J. D. Salinger no teatro europeu”, quando ele “se viu cercado por um imenso volume de sofrimento e aniquilação humana. É impossível acreditar que ele não tenha sido modificado fundamentalmente e de formas irreconhecíveis”.

A culminação, contudo, parece ter sido um pouco depois, quando Salinger e seu regimento entraram no campo de extermínio Kaufering IV, na Alemanha: “Em muitos sentidos, Salinger nunca saiu dali”. Para Robert Abzug, chegar ao lager e se deparar com pilhas de cadáveres em combustão foi algo “como destapar um cemitério e cair dentro dele”. Nas palavras do próprio Salinger: “Por mais que você viva, realmente não consegue tirar o cheiro de carne queimada do nariz”.

Muito em função do que vira em Kaufering, Salinger sofreria um colapso nervoso e seria hospitalizado em Nuremberg. Kershaw afirma que “no maior triunfo de Salinger (a libertação do campo) está a maior tragédia”, pois é justamente o “capítulo final, de purificação da alma”, que se revela “o mais destruidor das almas”. De fato, segundo Eberhard Alsen, “o que destruiu Salinger foi o Kaufering Lager IV”.

Nos anos subsequentes, a ironia devastadora será que “apenas voltando em termos emocionais e imaginativos” à guerra é que Salinger conseguiria “avançar artisticamente”. É verdade, portanto, que ele jamais se libertou daquele cheiro de carne queimada.

Novo mundo

Resenha publicada no Estadão em 13.01.2014.

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Com as graças de São Sepé Tiaraju, dispomos agora do romance Quatro Soldados, de Samir Machado de Machado. Também autor da novela O Professor de Botânica, lançada em 2008, ele investe dessa vez numa viagem de ecos pynchonianos (e logo tal palavrão será explicado) à região sul do nosso continente, em meados do século 18, mais precisamente nos anos posteriores à assinatura do Tratado de Madri (1750) por Portugal e Espanha.

Não cabe explicar, aqui, todo o contexto histórico relativo ao tratado, pois carecemos de espaço e sempre há o Google para os preguiçosos e as bibliotecas para os destemidos. Basta dizer que as querelas envolviam as nações citadas, questões fronteiriças, jesuítas e índios, e que uma das decorrências imediatas da assinatura foi a Guerra Guaranítica (1750-1756). Em seu romance, aliás, Machado alude a um episódio particularmente sangrento dessa guerra, a Batalha de Caiboaté, na qual cerca de mil e quinhentos índios guaranis foram massacrados, incluindo o líder Sepé Tiaraju, por espanhóis e portugueses. Como se vê, embora o livro adote um tom muitas vezes trocista, é impossível contornar a barbárie e o genocídio, sobre os quais foi erguida a nossa bela e aprazível nação.

Quatro Soldados é dividido em quatro partes e escrito em um brilhante pastiche do português arcaico. Os personagens-título circulam por uma região compreendida entre Laguna, hoje município de Santa Catarina, e a Colônia do Sacramento, que integra o Uruguai. Eles são um jovem alferes chamado Licurgo, um oficial de origem nobre que, com certa dificuldade , atende por Antônio Coluna, um desertor, contrabandista de livros e segurança de bordel apelidado de Andaluz e uma figura misteriosa, empenhada em missões escusas e sobre a qual não convém discorrer muito. Eles se cruzam em narrativas de caráter aventureiro, às vezes fantasioso e, na última parte, policialesco, interligadas pelos desatinos do acaso ou, talvez fosse melhor dizer, por um narrador fanfarrão, nada confiável, cuja identidade não é difícil apontar tão logo ele irrompe história(s) adentro.

Quanto ao palavrão utilizado no início da resenha, é bom explicar que uma das inúmeras inspirações do autor é Thomas Pynchon, romancista americano que, em 1997, lançou Mason & Dixon, aventura setecentista, baseada em personagens reais, repleta de lances fantasiosos e escrita em inglês castiço. Várias das elucubrações pynchonianas, sobretudo sobre os “perigos” que a ficção representa para a ordem vigente (conforme diz a certa altura o narrador de Quatro Soldados, não é por acaso que se queimam mais livros do que pessoas), ecoam no livro de Machado. E, sobre isso, sugerimos uma leitura ou releitura do 35º capítulo de Mason & Dixon.

É bom que se diga, contudo, que Machado vai além da mera citação e faz de seu romance uma criatura capaz de se sustentar sobre as quatro patas. Ele concebe um mundo dos mais instigantes, cheio de labirintos, cavernas, abismos e bestas mitológicas e humanas. Mais importante é seu apego resoluto ao próprio ato de narrar, pois o “mundo muda quando mudamos o modo como lo vemos”. E, a nos fiarmos nas fronteiras maravilhosamente movediças da literatura, sempre “há um Novo Mundo nascendo”.

Como vender canetas

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A maior parte dos diálogos de O Lobo de Wall Street é conversa fiada. São quase três horas de duração e os caras falam sobre depilação feminina, estabelecem regras para o uso de anões em confraternizações no escritório (ver imagem acima) e discorrem sobre os benefícios da masturbação e da cocaína (nessa ordem, creio) na profissão que escolheram. O filme é sobre gente fazendo dinheiro, muito dinheiro, a partir do nada e às custas da idiotice alheia. Eles fazem isso retorcendo, contornando ou apenas ignorando as leis do mercado financeiro e usando de muito papo furado. São vendedores, e povoam um mundo que, a rigor, corre velozmente à margem desse em que vivemos e é fundamentalmente constituído por conversa fiada. São marginais. Martin Scorsese está em seu elemento.

O longa é uma adaptação da autobiografia de Jordan Belfort. Scorsese e o roteirista Terence Winter compreendem que Belfort (que faz uma ponta na cena final, apresentando a si mesmo) está nos vendendo, e não meramente contando, a própria história. Assim, Leonardo DiCaprio fala diretamente para a câmera, a cronologia dos acontecimentos e a própria noção dos mesmos são de uma instabilidade tormentosa e tudo é encarado como sintoma de uma só doença, um mesmo vício que se ramifica e se expressa, por assim dizer, de diversos modos.

Como já fizera em Os Bons Companheiros e Cassino, Scorsese devassa o ambiente no qual seus personagens se movimentam como se não houvesse mais nada fora dele. Como Belfort passa algo como noventa por cento do tempo drogado, o próprio filme é contaminado por esse, digamos, estado de espírito. Tudo nele serve para caracterizar e amplificar aquelas sensações. Pegue a ensandecida sequência de Os Bons Companheiros que acompanha um “dia útil” na vida de Henry Hill, trincado e perseguido por helicópteros reais e imaginários, e multiplique por cem.

Belfort, claro, não é paranoico como Hill, mas a questão, aqui, é perceber o enorme talento de Scorsese para compaginar sua arte ao objeto que enfoca. É cinema da imanência, que se serve de todas as técnicas disponíveis para se colocar e ao espectador na pele daquele sujeito. Você vivencia aquilo tudo, desde a euforia até a desolação (a derradeira briga conjugal é particularmente dolorosa, a exemplo das que acontecem em Companheiros Cassino).

E, terrivelmente engraçado como é, O Lobo de Wall Street oferece algumas das mais insanas e repentinas mudanças de registro de que se tem notícia. Cenas patéticas adquirem ares trágicos na velocidade de um corte seco. A morte de alguém é antecipada, em off, enquanto vemos o sujeito ser carregado por strippers. Um homem completamente drogado literalmente se arrasta até o carro, pois tem de ir para casa e tirar alguém do telefone. A farsa, aqui, está sempre a um passo da desgraça, e o incômodo que isso gera explica as dezenas de defecções que notei na sessão em que estive.

De fato, o incomparável conhecimento técnico de Scorsese possibilita o desenvolvimento amoral e violentamente irônico da narrativa. Estamos com o protagonista, é a voz dele a nos falar quase que o tempo todo, mas, ao mesmo tempo, há um distanciamento mordaz pela escolha do que é mostrado e como. É o tipo de inteligência fílmica que falta, por exemplo, aos paupérrimos Tropa de Elite, onde narrador-personagem e filmes coincidem, burramente, em todos os níveis.

Em Scorsese, e isso desde Caminhos Perigosos (pensem no que Harvey Keitel diz ao adentrar a igreja e, depois, o bar), ocorre não raro uma cisão entre a voz que narra e o que é mostrado, um divórcio que alimenta o filme com ironia, que é a própria gênese da ironia, e exige um posicionamento do espectador para depois problematizar esse mesmo posicionamento. Nem todo mundo consegue arcar com isso, pois é algo que pressupõe um mínimo de distanciamento da pessoa para consigo mesma.

Ironia, autoironia: o filme olha para si e para fora, simultaneamente. O filme olha para você, em vez de apenas se deixar ali, passivo, para ser visto. Ele pede uma postura ativa, de co-construção. Apresenta um mundo ao mesmo tempo em que desconfia dele. Exige que o espectador faça e refaça a pergunta: o que estou vendo? Os frutos materiais da conduta de Belfort são evidentes. Os danos, materiais e não, também, e cada vez mais. O estrago está nas rachaduras. E, de repente, o filme escorre por elas, e nós com ele. Não é agradável, e nos leva a questionar: como estou vendo?

Por essas e outras, O Lobo de Wall Street é mais um exercício de cinema total de um diretor que se mantém alguns passos à frente de seus pares. Ninguém mais (e)leva a gramática cinematográfica a tais extremos, com tamanha fúria, e, ao mesmo tempo, utiliza a palavra com tanta propriedade. Diante de um Scorsese desse tamanho, todo o resto empalidece, ganha a consistência de um vídeo caseiro. E ele disse que está pensando em parar. Tomara que não, e tomara que adote a dieta de Manoel de Oliveira.

Liverpool

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Escrevi o pequeno conto Liverpool há exatos três anos, em janeiro de 2011, aqui nas Perdizes. É sobre um reencontro possível, ou impossível. Jerusalém ainda se faz muito presente nele. O boteco no qual as personagens se encontram existe. Foi onde um bom amigo me contou, por aqueles dias, que seria pai. Clique AQUI para ler ou baixar o conto.

Setembro eterno

Anotações esparsas sobre Bleeding Edge, romance de Thomas Pynchon.

Luis Martinez/LuisMMolina//Getty Images

1. LITERATURA KUGELBLITZ

Logo no primeiro capítulo de Bleeding Edge, romance de Thomas Pynchon, a protagonista Maxine Tarnow leva os filhos à Escola Otto Kugelblitz, localizada entre as ruas Amsterdam e Columbus, em Nova York, em uma travessa da cidade ainda não utilizada como locação para Law and Order (informa o narrador). A escola leva o nome de um psicanalista pioneiro (e fictício) que teria sido expulso do círculo mais próximo de Freud em função de suas teorias. Para Kugelblitz, a vida humana transcorreria em meio a uma sucessão de desordens mentais, conforme a idade do indivíduo: solipsismo (infância), histerias sexuais (adolescência e juventude), paranoia (meia-idade), demência (velhice) e, por fim, a morte, que seria algo como a “sanidade” possível. Fui à PynchonWiki e descobri que Kugelblitz é também o nome de um tanque de guerra usado na Segunda Guerra Mundial. O que eles (ainda) não informam por lá é que, além disso, trata-se de um termo da Física (kugelblitz significa, no caso, literalmente, “raio globular”) que designa uma concentração de luz tão forte que termina por constituir um horizonte de eventos, aprisionando a si própria. Uma concentração dessa natureza pode muito bem consumir o espaço-tempo até constituir um buraco negro. A diferença é que, enquanto buracos negros “convencionais” são formados por massa-energia originalmente material, o kugelblitz é constituído por radiação. Depois, ocorreu-me que a imagem de uma concentração de luz tão intensa ao ponto de formar um horizonte de eventos e aprisionar a si mesma traduz lindamente o que são algumas passagens dos romances de Pynchon. Há o paradoxo de uma impenetrabilidade da qual é impossível escapar, pois somos engolfados por ela. No seio dessa anomalia, o espaço-tempo deixa de ser relevante ou sequer aplicável.

2. A ESCURIDÃO PULSANTE

O sétimo capítulo é um belo exemplo dos procedimentos narrativos de Thomas Pynchon.
Temos, ali, Melanie’s Mall (“It’s cool at the mall!”), Dragonball Z, Akira e outros animes, uma realidade virtual alimentada por programadores de todo o mundo (e “the rest of the screen is claimed by the abyss — far from absence, it is a darkness pulsing with whatever light was before light was invented”), onde cada um pode adicionar seu “véu de ilusão” e restar “construtivamente perdido”.
Pynchon, é claro, adiciona o véu que lhe apetece e sai (p. 76) com o que parece ser uma citação direta da abertura de O Arco-Íris da Gravidade:

“(…) On she is crossfaded, up and down stairways, through dark pedestrian tunnels, emerging into soaring meta-Victorian glass- and iron modulated light, through turnstiles whose guardians morph as she approaches from looming humorless robots into curvaceous smiling hula girls with orchid leis, up to a train whose kindly engineer leans beaming from the cab and calls out, “Take your time, young lady, we’re holding her for you…”

É claro que a atmosfera de pesadelo que contamina O Arco-Íris da Gravidade empresta outro tom àquele trecho, de tal forma que a ironia de uma constatação (“É tudo teatro”) só reitera o horror dos escombros da Segunda Guerra Mundial. Em Bleeding Edge, no trecho acima, estamos no começo do século XXI, espremidos entre o estouro da bolha ponto-com e os atentados de 11/09, os quais devolveriam ao mundo a palpabilidade aterradora dos escombros e da guerra.
Depois que a protagonista passeia pelo DeepArcher, um de seus criadores fala sobre o modo como ele é protegido dentro da rede, por meio de um processo similar a uma cadeia de Markov. As cadeias de Markov são um processo estocástico, isto é, constituído por famílias de variáveis aleatórias que têm lugar em um intervalo de tempo determinado, e apresentam uma propriedade conhecida como “memória markoviana”. Nesta, os estados anteriores são irrelevantes para a predição dos estados subsequentes, desde que conheçamos o estado presente. Eis uma bela maneira de pensarmos a narrativa pynchoniana.
Não é raro, lendo seus romances, que nos sintamos perdidos em situações obscuras, enevoadas, povoadas por personagens tão desorientados quanto nós, face a circunstâncias cujo solo teima em escapar. A levada escorregadia alimenta a paranoia, e a paranoia é, por assim dizer, o elemento maior a constituir a “realidade” na qual, em tese e/ou precariamente, nós nos situamos.
Em um contexto desses, talvez seja imprescindível encararmos cada passagem desses livros de um ponto de vista assim markoviano: temos alguma noção de onde estamos, embora não saibamos ao certo de onde viemos (e isso é irrelevante) e não possamos predizer para onde iremos (e isso é maravilhoso). É a “escuridão pulsando com o que quer que a luz fosse antes que a luz fosse inventada”.

3. SETEMBRO ETERNO

Na página 174 de Bleeding Edge, fala-se de passagem do Setembro Eterno, o qual teria começado naquele mês em 1993, quando a American Online passou a oferecer acesso à Usenet aos seus clientes. Antes disso, todos os anos, desde 1980, em setembro, calouros universitários acessavam a Usenet pela primeira vez e demoravam um pouco a se acostumar com o ambiente, criando certa confusão. Mas, depois do Setembro Eterno, na medida em que mais e mais pessoas passaram a acessar o sistema mês após mês após mês, todos os meses, a calmaria pós-setembro deixou de existir.
O “outro” Setembro Eterno, aquele de 2001, irrompe no livro páginas depois, no capítulo 29.
Antes, no capítulo imediatamente anterior, a protagonista, Maxine, vai a uma festa por meio da qual Pynchon revive toda a fantasmagoria autoirônica do finalzinho dos anos de 1990, sobretudo no que diz respeito à bolha ponto-com e conforme ela seria revisitada, farsescamente, no comecinho dos anos 2000. É uma pseudoautoironia, portanto, encarnada nos “nerdocratas” que conseguiram se safar do estouro da bolha e ostentam, por ali, uma certa nostalgia esvaziada (bolha, estouro).
O tom dessas páginas é um tanto ressacado, e a sombra da ocorrência futura já se faz presente (p. 312):

“(…) Former and future nerdistocracy slowly, and to look at them you’d think reluctantly, filtering back out into the street, into the long September wich has been with them in a virtual way since srping before last, continuing only to deepen. Putting their street faces back on for it. Faces already under silent assault, as if by something ahead, some Y2K of the workweek that no one is quite imagining, the crowds drifting slowly out into the little legendary streets, the highs beginning to dissipate, out into the casting-off of veils before the luminosities of dawn, a sea of T-shirts nobody’s reading, a clamor of messages nobody’s getting, as if it’s the true text story of nights in the Alley, outcries to be attended to and not be lost, the 3:00 kozmo deliveries to code sessions and all-night shredding parties, the bedfellows who came and went, the bands in the clubs, the songs whose hooks still wait to ambush an idle hour, the day jobs with meetings about meetings and bosses without clue, the unreal strings of zeros (…).”

Pynchon escreve sobre um tempo que acabou num tom quase elegíaco, semiapocalíptico. Aquilo tudo já era. Virou poeira. E o pouco que restou também desabará dali a alguns dias e será substituído por outras coisas, sombras distintas ou, dependendo do ponto de vista, horrendamente indistintas.
Embora exausta desde o começo, Maxine permanece na festa até o final. Depois, volta para casa em um táxi dirigido por um árabe, o rádio ligado, uma ladainha onde a única palavra que ela reconhece é Inshallah. É árabe para whatever, diz o marido. Não: é “se Deus quiser”, corrige o motorista, virando-se para trás. Maxine o encara. Não conseguirá dormir, ou pelo menos é assim que, depois de tudo, pelo setembro eterno afora, ela se lembrará do ocorrido.
Assim diz o narrador.

4. MARGINAIS

Bleeding Edge começa e termina com uma cena doméstica, a mãe primeiro levando as crianças à escola e, depois, ao final, percebendo (sendo levada a perceber) que isso não é mais necessário, apesar dos acontecimentos recentes e da paranoia galopante. Também nas últimas páginas do livro, temos a reaproximação de outra mãe e sua filha. Estas são ameaçadas pelo ex-marido da filha, justamente o todo-poderoso magnata ponto-com, um nome (ele só aparece três vezes em todo o romance, sendo que, numa delas, é apenas uma voz ao telefone) ancorado em todo tipo de negócio escuso, governamental e não, coisas que, em parte, restarão inexplicadas ou meramente sugeridas.
Todos tateiam por um mundo perigoso demais, tornado ainda mais perigoso e movediço após os eventos daquele setembro. O inferno não está necessariamente abaixo, diz alguém a certa altura, mas pode muito bem estar no céu (p. 446). Logo, não é por acaso que o romance começa e termina à altura do chão, dentro do cercadinho, digamos. Assim como não é por acaso que, no momento em que o inferno se abre no céu, o foco narrativo também se volte para o que acontece dentro de casa: o quase ex-marido da protagonista trabalha no World Trade Center; onde ele está?
W. Bush parece ter estrangulado o cercadinho ao se lançar em uma longa e malfadada perseguição às sombras. A partir dos atentados, as paredes do romance parecem se mover. É uma reconstituição muito acurada da primeira década americana do século XXI ou, mais precisamente, dos meses imediatamente posteriores ao 11/09. As coisas ainda piorariam muito, claro, mas Pynchon está interessado naquele “ponto morto da História” (Montale?), quando os USA acusaram o golpe e se voltaram, primeiro, para as próprias vísceras.
Quando a protagonista busca algum respiro, acessando o mundo virtual (ou um mundo virtual específico, o DeepArcher), tudo o que encontra são as vozes e os avatares de quem já morreu. A fantasmagoria é uma constante em Bleeding Edge. E, para dar conta dela, mais do que nunca é imprescindível a atuação daqueles que, em Mason & Dixon (p. 382 da edição brasileira), o narrador chama de “fabulistas e falsários, Cantadores de Baladas e Excêntricos dos mais variados Raios”, cujo “cuidado amoroso e honrado” para com a História não permite que ela caia nas mãos daqueles que, arrogando a Verdade, abandonam-na.
Similarmente, em Bleeding Edge, alguém diz (p. 322):

“‘No matter how the official narrative os this turns out’, it seemed to Heidi, ‘these are the places we should be looking, not in newspapers or television but at the margins, graffiti, uncontrolled utterances, bad dreamers who sleep in public and scream in their sleep.'”

Pynchon mantém a sua fé nos fabulistas e falsários que, contra o dia, trafegam livres pela noite da História. “Na Escuridão, nunca se sabe” (M&D, p. 706). Por aterradoras que, em Bleeding Edge, pareçam tanto a realidade quanto a virtualidade (e, D’us, como elas se confundem), a narrativa construída à margem, “fora do alcance dos Desejos, e mesmo da Curiosidade, dos Governos” (M&D, p. 382), ainda está ao nosso alcance. E, de fato, nos dias que correm, não há nada mais marginal do que a Literatura.

No matadouro

Resenha publicada n’O Estado de São Paulo em 07.12.2013.

AnaPaula

No romance De Gados e Homens, quinto e talvez o melhor dentre os que escreveu, Ana Paula Maia realiza algumas proezas. A maior delas é, de certa forma, reduzir o mundo a um matadouro. Ali é que reencontramos Edgar Wilson, velho conhecido dos leitores de Maia, trabalhando como atordoador. Alguns acontecimentos insólitos, que felizmente não são redondamente explicados, conduzirão a narrativa para uma atmosfera de pesadelo.
Pelo menos desde Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos, a autora demonstra um interesse muito grande pelos trabalhos dos homens, ou, mais especificamente, pelas funções desempenhadas por indivíduos rústicos, sem rosto ou voz. Açougueiros, lixeiros e carvoeiros são trazidos ao proscênio, de tal maneira que deles sintamos os cheiros e percebamos as cores de suas vozes. Diz um personagem: “Alguém precisa fazer o trabalho sujo. O trabalho sujo dos outros. Ninguém quer fazer esse tipo de coisa. Pra isso Deus coloca no mundo tipos que nem eu e você”.
Uma investida dessa natureza teria tudo para resvalar em um naturalismo torpe, que se limitasse a observar à distância, com luvas cirúrgicas e binóculos, esses personagens. No entanto, desde os primeiros romances, Maia demonstrou um estilo de abordagem único, contaminado por uma certa brutalidade pulp e, por que não dizer, punk, que jamais se mostra disposto a incorrer naquele enfoque distanciado, piegas e sociologicamente engajado. Em vez de abrir uma butique de carnes, ela optou por investir seu capital narrativo em um belo e aprazível matadouro.
E, conforme dissemos, é circulando por esse mundo-matadouro que reencontramos o gente duríssima Edgar Wilson. Logo no começo do livro, incomodado com o sadismo de outro atordoador, que prefere golpear os bois de forma desleixada, para que eles sofram mais, Wilson lança mão da marreta para acertar “precisamente a fronte do rapaz, que cai no chão em espasmos violentos e geme baixinho”. É o tipo de atitude coerente em se tratando de uma figura que carrega em si a certeza de que “ninguém está impune”, pois somos “todos homens de sangue, os que matam e os que comem”.
As ocorrências insólitas a que nos referimos têm a ver com atitudes, digamos, nada esportivas do gado. A essa altura, Maia sugere uma reverberação bíblica que, felizmente, jamais é negada ou confirmada por inteiro. Os moradores da região do matadouro, miseráveis e esfomeados, têm suas preces atendidas e, por um momento, “a morte que dá vida” parece obedecer a um direcionamento superior. Pouco importa se o que temos é milagre ou maldição — e, dependendo do ponto de vista, pode ser uma coisa ou outra. No inferno “debaixo do sol e cheio de fome e poeira”, tudo é extremamente difuso.
Mas seja como e de onde for, uma travessia parece completar-se ao final de De Gados e Homens. Então, vemos Edgar Wilson pegar a estrada e seguir em frente, rumo ao próximo trabalho. O mundo-matadouro é um lugar repleto de possibilidades.