No matadouro

Resenha publicada n’O Estado de São Paulo em 07.12.2013.

AnaPaula

No romance De Gados e Homens, quinto e talvez o melhor dentre os que escreveu, Ana Paula Maia realiza algumas proezas. A maior delas é, de certa forma, reduzir o mundo a um matadouro. Ali é que reencontramos Edgar Wilson, velho conhecido dos leitores de Maia, trabalhando como atordoador. Alguns acontecimentos insólitos, que felizmente não são redondamente explicados, conduzirão a narrativa para uma atmosfera de pesadelo.
Pelo menos desde Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos, a autora demonstra um interesse muito grande pelos trabalhos dos homens, ou, mais especificamente, pelas funções desempenhadas por indivíduos rústicos, sem rosto ou voz. Açougueiros, lixeiros e carvoeiros são trazidos ao proscênio, de tal maneira que deles sintamos os cheiros e percebamos as cores de suas vozes. Diz um personagem: “Alguém precisa fazer o trabalho sujo. O trabalho sujo dos outros. Ninguém quer fazer esse tipo de coisa. Pra isso Deus coloca no mundo tipos que nem eu e você”.
Uma investida dessa natureza teria tudo para resvalar em um naturalismo torpe, que se limitasse a observar à distância, com luvas cirúrgicas e binóculos, esses personagens. No entanto, desde os primeiros romances, Maia demonstrou um estilo de abordagem único, contaminado por uma certa brutalidade pulp e, por que não dizer, punk, que jamais se mostra disposto a incorrer naquele enfoque distanciado, piegas e sociologicamente engajado. Em vez de abrir uma butique de carnes, ela optou por investir seu capital narrativo em um belo e aprazível matadouro.
E, conforme dissemos, é circulando por esse mundo-matadouro que reencontramos o gente duríssima Edgar Wilson. Logo no começo do livro, incomodado com o sadismo de outro atordoador, que prefere golpear os bois de forma desleixada, para que eles sofram mais, Wilson lança mão da marreta para acertar “precisamente a fronte do rapaz, que cai no chão em espasmos violentos e geme baixinho”. É o tipo de atitude coerente em se tratando de uma figura que carrega em si a certeza de que “ninguém está impune”, pois somos “todos homens de sangue, os que matam e os que comem”.
As ocorrências insólitas a que nos referimos têm a ver com atitudes, digamos, nada esportivas do gado. A essa altura, Maia sugere uma reverberação bíblica que, felizmente, jamais é negada ou confirmada por inteiro. Os moradores da região do matadouro, miseráveis e esfomeados, têm suas preces atendidas e, por um momento, “a morte que dá vida” parece obedecer a um direcionamento superior. Pouco importa se o que temos é milagre ou maldição — e, dependendo do ponto de vista, pode ser uma coisa ou outra. No inferno “debaixo do sol e cheio de fome e poeira”, tudo é extremamente difuso.
Mas seja como e de onde for, uma travessia parece completar-se ao final de De Gados e Homens. Então, vemos Edgar Wilson pegar a estrada e seguir em frente, rumo ao próximo trabalho. O mundo-matadouro é um lugar repleto de possibilidades.