Pynchon: links

Pynchon: links

No decorrer dos anos, tenho escrito um bocado sobre vários dos livros de Thomas Pynchon. Abaixo, os links.

    1. Resenhei Vício Inerente para O Globo em dezembro de 2010. Leia AQUI. Voltei ao mesmo livro em 2015 e desovei mais alguns parágrafos a respeito dele AQUI.
    2. Também para O Globo, resenhei Contra o Dia em abril de 2012 (embora anterior, foi lançado no Brasil após Vício Inerente). Leia AQUI.
    3. Falei sobre O Arco-Íris da Gravidade para a Rádio Batuta do IMS em meados de 2013. Tente ignorar meus nés e gaguejadas ao ouvir ACOLÁ.
    4. Leia as anotações de leitura que fiz ao embarcar em Bleeding Edge NESTA POSTAGEM.
    5. Escrevi três pequenos ensaios sobre alguns aspectos de O Arco-Íris da Gravidade AQUI, AQUI e AQUI. E AQUI um texto comemorativo dos 50 anos de lançamento do livro.
    6. Bleeding Edge foi lançado no Brasil como O Último Grito, e eu o resenhei para o Estadão em 2017. Confira AQUI.

Fome(s)

1.

J R¹ é o segundo e premiado romance de William Gaddis. Lançado em 1975, vinte anos após sua estreia com o soberbo The Recognitions², é uma sátira selvagemente engraçada da América corporativa (“what America’s all about”, dizem vários personagens no decorrer do livro) e também uma reflexão pungente sobre o (não) lugar do artista no mundo contemporâneo. Esses aspectos aparecem imbricados, sobretudo em personagens que são (ou foram, ou querem ser) artistas e se veem lambuzados de graxa e encaixados nos dentes dessa enorme engrenagem de ecos anarcocapitalistas.

Não custa ressaltar que o próprio Gaddis, após a publicação de Recognitions e a péssima recepção desse livro³, embrenhou-se em toda sorte de empregos, inclusive no tal mundo corporativo, para sobreviver. J R é fruto da cacofonia sistêmica a que seu autor foi exposto por anos e anos. Sem tal vivência, e sem antes sofrer com o silenciamento provocado pela burrice e pelo descuido dos resenhadores do seu romance de estreia, acredito que ele não teria escrito esse segundo livro tal e qual o conhecemos. E há outro aspecto a ser sublinhado desde já: em uma sátira tão violenta do capitalismo sem peias, é incrível como os artistas se sobressaem — todos tentando a todo custo iniciar ou completar suas obras, e nenhum deles sabe dizer por que faz isso; eles simplesmente fazem, apesar de tudo e a despeito de si mesmos.

J R, o personagem-título, é um moleque de onze anos que erige um império financeiro usando o orelhão da escola, no que é inadvertidamente auxiliado por um compositor chamado Edward Bast. Eles não estão sozinhos, é claro. Há um turbilhão de vozes e situações tão absurdas quanto o mote do romance, com uma centena (um pouco mais, na verdade) de outros personagens errando (e falando sem parar) por e entre a cidadezinha de Massapequa e Nova York. Basta dizer que, do ponto de vista financeiro, há um imbróglio envolvendo as ações de uma antiga companhia da família de Bast, a General Roll (que fabricava pianolas), e também a balbúrdia provocada pela gradativa, mas sempre faminta, “verticalização” da J R Family of Companies (sic).

A partir de tudo isso, e levando-se em conta que, desde a primeira palavra, tudo no romance é tocado por/tem a ver com dinheiro, arrisco dizer que aquele diagnóstico de uma personagem de Cosmópolis, de Don DeLillo, de que o dinheiro estaria “perdendo sua qualidade narrativa”, é meio exagerado. Não obstante a abrasiva imaterialidade do sistema financeiro e toda a “especulação no vazio” que grassa em ambos os livros, há em J R uma atenção inequívoca ao “lado de fora”.

De certo modo, em Gaddis, é como se víssemos o mundo através daquele buraco feito a bala na mão de Eric Packer, protagonista de Cosmópolis. (A propósito, não custa lembrar que é o próprio Packer quem aperta o gatilho.) Em J R, diferentemente, a coisa toda é uma questão de palavras, não de silêncios, e o personagem-título — embora seja um garoto e circule pelos mercados uns trinta anos antes de Packer — não demonstra o menor interesse pela “dor (que) era o mundo” simbolizada pelo furo na mão.

Não, nosso garoto J R não atenta para nada disso, pois a única curva de aprendizado que lhe interessa envolve ativos e ações. No entanto, há vários outros personagens que atentam, seja porque não têm escolha, seja porque veem o mundo através da própria mão estraçalhada (por outrem ou por eles próprios) desde sempre.

Assim, J R pode ser encarado como um épico da corrupção, e não me refiro apenas à corrupção intrínseca ao “sistema” (qualquer sistema, sublinhe-se), mas àquela enraizada no espírito humano e cujos galhos se lançam no mundo para abraçar pactos faustianos de toda espécie — ou em espécie. No fim das contas, o dinheiro em si não é a questão, nunca foi, mas, sim, o modo como cada indivíduo se posiciona diante de si, no espelho que é o outro. Não se engane: em meio ao vozerio e ao caos, nesse comércio humano que é a vida, Gaddis está sempre buscando a interlocução, o diálogo verdadeiro, na esperança de que ainda haja alguém do outro lado da linha.

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2.

Estruturalmente, J R se apresenta como um bloco narrativo único, crivado de diálogos do princípio ao fim. Esse bloco, contudo, é subdividido em cenas — se nos orientarmos pelo site Gaddis Annotations, são oitenta e três cenas, mais catorze pequenas “transições” entre algumas delas, ao longo de 726 páginas. Em outras palavras, cenários, personagens e situações mudam de quando em quando e enquanto o enredo avança, mas o autor não nos oferece nenhuma “pausa” ou respiro; não raro, o tempo passa e somos ressituados no corpo de uma mesma frase.

Isso talvez soe meio complicado à primeira vista, mas bastam algumas páginas para que o leitor não só se acostume como passe a se deliciar com essas mudanças de cenas e transições. A passagem abaixo (p. 316) talvez deixe mais claro o que tento explicar (perdoem a tradução caseira e apressada; procurei respeitar o desrespeito do autor pela pontuação, ou melhor, respeitar seu apreço pela pontuação funcional e expressiva):

“(…) e em algum lugar o relógio retomou suas tentativas ocasionais de soar a hora até que a manhã se aproximou hesitante como se estivesse insegura quanto ao que encontraria. — Meu Deus, você não pode se levantar e fazer alguma coisa pra eles comerem? será que eu tenho que fazer tudo nessa casa…? portas bateram, o banheiro suportou uma rodada de descargas, fumaça subindo da torradeira deitou uma manta azul no corredor e a manhã que ainda persistia lá fora e parecia decidida a permanecer declinou até o cinza vespertino. — Agora o quê, Nora, meu Deus, a mamãe não pode descansar um dia sem que todo mundo fique louco? Vai pedir pro papai fazer um sanduíche com manteiga de amendoim se possível sem botar fogo na casa, fecha essa porta e desliga a TV… ! e por fim o cinza engendrou o breu, o relógio tentou mais uma vez soar a hora, errou, esperou, tentou surdamente outra vez, de novo, até que o alarme aguilhoou o silêncio noutro dia sem sol. (…)”

Eu poderia ter escolhido inúmeros outros trechos para exemplificar a forma como se dão essas transições, até porque a passagem acima não é bem uma transição de uma cena para outra, mas apenas denota a passagem do tempo no interior de uma mesma cena (continuamos no mesmo cenário, com os mesmos personagens). O procedimento, contudo, é sempre o mesmo: o tempo escoa, às vezes há falas soltas de um ou outro personagem, e daí somos lançados no momento e no espaço seguintes.

Na maior parte do livro, contudo, não há qualquer transição entre uma cena e outra, mas apenas um corte seco, e pronto. Por exemplo, há um personagem falando ao telefone e, de repente, estamos como que do outro lado da linha, isto é, na companhia daquele que, na cena anterior, era o interlocutor mudo, e que agora assume o proscênio. Essas mudanças, com ou sem transições, conferem uma agilidade estonteante à narrativa, e é importante frisar que nada é irrelevante, isto é, informações vitais para o desenvolvimento da trama são dadas a todo instante, muitas vezes de forma enviesada — um comentário solto, uma ligação entrecortada, uma referência à primeira vista cifrada, alguém lendo uma carta ou relatório etc.

As cenas são constituídas quase que inteiramente por diálogos, com raras (embora reveladoras e muitas vezes hilárias) interferências da narração em terceira pessoa. Assim, mais do que na estruturação sui generis do romance como um todo, é na construção e no desenvolvimento de inúmeros modos de fala que Gaddis se esbalda. Não se trata de um “mero” apelo ao coloquialismo (coisa que tampouco é fácil), mas da individualização de dezenas de personagens por eles mesmos, isto é, pela maneira como cada um deles se expressa, e do uso inteligente da pontuação para sublinhar estados de espírito e características pessoais.

A coisa é tão genialmente construída que, passadas algumas páginas, o leitor consegue identificar sem maiores problemas quem está falando, mesmo quando há quatro, cinco ou até mais personagens papeando em uma determinada cena. J R, por exemplo, sempre soa mais ou menos assim (p. 300):

“— Não mas caramba, quer dizer me escuta sou eu quem tem que bolar essas coisas e tipo tomar essas decisões aqui com esses riscos e tudo quer dizer eu quase não dei conta cara, fazer esse acionista aqui colocar dinheiro nessa conta aqui pra arranjar um empréstimo com essa outra aqui pra conseguir enviar todos aqueles garfos e pagar esses títulos todos que eu já mandei pra eles onde esses corretores aqui começam…”

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3.

Além de Bast e J R, há alguns personagens com maior importância ou incidência no decorrer do romance. Enumero alguns deles abaixo:

  • Jack Gibbs: professor de JR e escritor frustrado, pena para (não) terminar um confuso livro de não-ficção intitulado Agapé Agape (a propósito, título do quinto e último romance de Gaddis, lançado postumamente). Bebe demais, está falido por conta de um divórcio litigioso, e só tem um breve respiro graças a Amy Joubert (e a promessa de outro ao final, mas é impossível ter certeza).
  • Emily (Amy) Joubert: filha de um tubarão corporativo chamado Moncrieff (diretor da Typhon International, ele depois assume um cargo em Washington). Professora como Gibbs, Amy também passou por um divórcio complicado e é usada como testa-de-ferro em uma fundação criada pelo pai a fim de sonegar impostos.
  • Thomas Eigen: alter ego de Gaddis, escreveu um romanção anos antes, mas se vê obrigado a ganhar a vida como redator de discursos na Typhon.
  • Stella Angel: prima de Bast, faz de tudo para abocanhar sua parte na herança da família, mesmo que isso signifique (ao menos no começo) abocanhar o primo.
  • Dan DiCephalis: marido de Ann (não confundir com Amy). Ambos trabalham na escola em Massapequa, pelo menos até certa altura — ele se meterá em um experimento militar-industrial chamado Teletravel e acabará, bem, pulverizado; ela posará nua para a revista She. Ah, sim: o casal mantém em casa um velho sem nome; ambos se referem a ele como Dad, “papai”, porque Dan acha que ele é o pai de Ann, e Ann acha que ele é o pai de Dan.
  • Whiteback: diretor da escola e presidente do banco local. Sim, é isso mesmo.
  • Coen: advogado da General Roll, tenta esclarecer uma espinhosa questão familiar dos Bast.
  • Rhoda: aspirante a modelo, passa a viver em um apartamento novaiorquino que Eigen e Gibbs pretendiam usar para escrever — e se encontrar com mulheres — e no qual Bast se entoca para compor; claro que o lugar se transforma no “quartel-general” das empresas de J R.

Patrick O’Donnell4 definiu J R como um “palimpsesto de trocas verbais onde os aparelhos de transmissão — telefones, televisores, gravadores — tomaram conta, em um certo sentido, do discurso, de tal forma que a conversação e o comércio humanos refletem a quase completa instrumentalização da vida humana e a ‘capitalização’ da identidade”. Essa instrumentalização é, de fato, evidente na maior parte das “trocas verbais” que ocorrem no romance, e não só pela onipresença daqueles aparelhos, mas pelo seu próprio teor e, acima de tudo, pelos hilários desencontros, incompreensões e enganos que a despersonalização provoca.

Por exemplo: a escola em Massapequa testa um sistema de ensino pela TV (financiado pela tal fundação de Moncrieff), e Whiteback tem acesso em tempo real ao que ocorre em cada sala de aula. Mas isso não impede que ele incompreenda o que acontece ali: os alunos de uma determinada turma passam mal depois de cheirar cola (por descuido de um professor cretiníssimo e desfigurado, Vogel) e caem no chão; o diretor vê aquilo pela TV e acha que se trata de uma greve (!) da criançada.

(Isso me fez lembrar de outra coisa engraçadíssima: no começo do romance, Bast é uma espécie de compositor residente na tal escola e trabalha na montagem da ópera O Ouro do Reno (Das Rheingold), de Wagner, com uma turma da sexta série. E a ópera está sendo montada em uma sinagoga.)

A distinção feita por O’Donnell entre os três tipos de cenas que há no romance é tão simples quanto útil: (1) monólogos que visam parodiar linguagens “especializadas” do mundo das finanças, dos advogados, pedagogos, literatos etc.; (2) diálogos dos quais só acompanhamos um dos lados (quando alguém está ao telefone, por exemplo, e não “ouvimos” o interlocutor); e (3) conversações entre duas ou (bem) mais pessoas em um determinado ambiente (e com frequência acontece de alguém atender o telefone e papear com um personagem ausente).

Em se tratando da paródia de linguagens “especializadas”, expediente que por certo influenciou diretamente autores como David Foster Wallace, o melhor é quando elas se atropelam ou uma toma o lugar da outra, como na passagem em que, numa reunião escolar, alguém sugere (p. 456): “Pague salários em vez de dar notas para essas crianças que elas vão aprender o que é a América”.

E, não por acaso, é graças a uma viagem escolar até Wall Street, com direito a visitas guiadas à Typhon e a outras empresas, que J R desperta de vez para o mundo das finanças. Como parte dessa viagem e a título de experiência, as crianças compram uma ação e começam a aprender na prática “o que é a América”.

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4.

O caminho até o estabelecimento (e posterior débâcle) do “império” J R Family of Companies é hilariantemente tortuoso. Em termos gerais, o que o garoto erige é um esquema especulando, a princípio, com penny stocks e, depois, usando essas ações baratas para alavancar empréstimos, com os quais adquire (com vistas a liquidar, desmembrar ou simplesmente sangrar) um amontoado de empresas que vão desde tecelagens até funerárias, passando por cervejarias e sabe-se lá mais o quê. O clímax dessa escalada se dá em uma reserva indígena, quando ele tenta engambelar um bando de índios a fim de explorar o petróleo e o gás natural que há por ali. A coisa culmina não com um lamento, mas numa explosão.

Sobre a ilegalidade de muitas dessas investidas, não só de J R, mas de todos os envolvidos no imbróglio, ela é apenas aparente ou, melhor dizendo, provisória. É algo como a constatação de Gordon Gekko ao sair da cadeia no segundo Wall Street: “Cobiça é bom, e agora parece que também é legal”. Ou como diz o próprio J R (p. 660):

“— Quer dizer é isso que eu estou te dizendo! Quer dizer por que alguém ia roubar e desobedecer a lei pra pegar o que quer se sempre tem alguma lei que você pode usar pra pegar tudo de um jeito ou de outro! (…)”

A fome de J R é abordada em algumas das melhores passagens do romance. Por exemplo, quando Gibbs e Amy falam a respeito dele (p. 246-7):

“— Não, eu me refiro a esse outro garotinho, J R, ele é tão, ele parece sempre assim como se vivesse numa casa sem, eu não sei. Sem adultos, acho, como se ele simplesmente morasse naquelas roupas lá dele.
“— É provável que more, você já o viu sem que ele estivesse se coçando em algum lugar?
“— Oh eu sei, sim, tenho a impressão de que ele não se banha com frequência, mas não, é outra coisa, tem algo mais, quando você fala com ele, ele não olha para você, mas não é como se, não é como se ele escondesse alguma coisa. Ele olha como se tentasse encaixar o que você está dizendo em algo totalmente diferente, um mundo do qual você não sabe nada, ele é um garotinho tão ávido, tem algo ali bem desolador, como uma fome…”

Ou, já perto do fim, quando Bast diz ao próprio J R em sua derradeira discussão com o “chefe” (p. 647):

“— Porque um banco vende minhas ações e depois eu sou demitido por tê-las vendido e então alguém me processa enquanto você corre por aí arranjando empréstimos para esse ativo aqui para tomar mais empréstimos e ir atrás desse outro ativo aqui pra olha eu já não te falei pra você parar? quando foi que a coisa toda começou? apenas pare e deixe alguém te ajudar a organizar tudo isso em vez desse mais! mais! Quanto mais você tem mais fome você tem dessa vez você nem sabe o quanto, quero dizer quem acreditaria nisso quem, em nada disso quem acreditaria.”

Bast é importantíssimo no esquema porque é o único (dentre os que negociam com ele) que sabe a idade de J R e, sempre a contragosto, faz as vezes de “rosto” da companhia. Quando liga para advogados, empregados, banqueiros etc., J R coloca um lenço sobre o bocal do telefone a fim de disfarçar a voz. O problema é que tal expediente (aliado àquele forte sotaque de Long Island e às frases entrecortadas e repletas de “no”, “wait”, “holy!”) causa ainda mais confusão, pois, em geral, as pessoas não entendem o que ele diz.

A ideia de Bast é faturar algum a fim de que, em um futuro próximo, possa se dedicar exclusivamente à composição. O problema com esse (e qualquer outro) pacto de ecos faustianos é que o sujeito é constantemente frustrado: ele se desencontra de Coen logo no começo e deixa de assinar um documento importante, que ajudaria a resolver aquela questão familiar; abandona a escola e nunca reaparece para receber o cheque pelo período trabalhado; aceita compor trilhas para filmes absurdos (zebra music!), é destratado pelo produtor (que lhe passa um sermão sobre os “deveres do artista”) e fica à espera de um pagamento que só chega tarde demais — ou na hora certa, se pensarmos bem.

Há, portanto, temas, piadas e situações recorrentes no livro: vários personagens estão se divorciando e são alijados do convívio com os filhos (Gibbs, Eigen, Amy); vários são artistas (escritores, músicos, pintores) que, ou não conseguem trabalhar (Gibbs se enfurna no apartamento para terminar seu livro, mas é flagrado completamente bêbado por Rhoda (p. 607), “escrevendo esse grande livro sem sequer colocar papel na porra da máquina de escrever”), ou trabalham em condições deploráveis (Bast, o pintor Schepperman, o escritor suicida Schramm, o próprio Eigen, que tem uma peça teatral roubada); a maioria se sente (e é) deslocada, ludibriada, vampirizada, ridicularizada.

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5.

Em se tratando de gente ridicularizada, e como forma de saltar ao último ponto que pretendo abordar aqui, atentem para essa outra passagem: DiCephalis sofre um acidente de carro (há vários acidentes de carro no livro, a propósito) e, ao sair do hospital e voltar para casa, descobre que sua esposa vendeu seus únicos ternos. Mas isso nem é o pior (p. 314):

“— Eu coloquei um dinheiro aqui, no fundo dessa gaveta. Sumiu.
“— Pra quê você colocou dinheiro no fundo da gaveta?
“— Tinha quase cinquenta dólares, sumiu.
“— Nora? Vem cá.
“— O quê, mamãe?
“— Eu disse vem cá. Papai disse que guardou um dinheiro naquela gaveta e o dinheiro sumiu. Você sabe…
“— Donny achou.
“— Bom, onde é que está, vai pegar.
“— Ele vendeu.
“— Como assim ele vendeu.
“— Ele vendeu pruns garotos.
“— Ele vendeu?
“— Ele não sabia, ele achou que as moedas eram melhores porque as outras eram só papel. Ele vendeu as notas de cinco por cinco centavos e as notas de um por dez centavos.
“— Bom por que ele fez, meu Deus, por que ele fez…
“— Ele achou que as notas de um eram melhores porque tinham o George Washington.
“— Meu Deus.
“— Mas, mas Nora que garotos. Por que você não o impediu?
“— Não sei, papai, eram só uns garotos, eu nem estava lá. Ele faturou oitenta e cinco centavos. Eu ajudei ele a contar depois. Mamãe…”

Essa piada com a “falta de valor” do dinheiro de papel aparece logo na abertura do romance, quando as tias de Bast conversam entre si, na presença do advogado Coen (p. 3):

“— Dinheiro…? em uma voz que farfalhava.
“— Papel, sim.
“— E nunca tínhamos visto isso. Dinheiro de papel.
“— Nós nunca vimos dinheiro de papel até que viemos para o leste.
“— Pareceu tão estranho na primeira vez em que vimos. Sem vida.
“— Não dava para acreditar que aquilo valia alguma coisa.
“— Não depois do Pai tilintando seus trocados.
“— Aqueles eram dólares de prata.
“— E pratinhas de cinquenta, sim, e de vinte e cinco, Julia. Dos alunos. Posso ouvi-lo agora…
“Luz do sol, embolsada por uma nuvem, livre de repente, derramou-se pelo chão através das folhas das árvores lá fora.
“— Chegando na varanda, como ele tilintava ao caminhar.”

A beleza dessa abertura reside no fato de que ela está na contramão de todo aquele processo empobrecedor, aqui simbolizado pelo dinheiro de papel e seus derivados. Nem é pelas moedas em si (de prata ou não), mas pelo que elas evocam nas duas senhoras e também na criança da outra cena: a lembrança do pai e da vida pregressa; a imagem de George Washington se traduzindo em algum valor.

Em um certo sentido, é como se o antídoto para aquela fome fosse a memória e, junto com ela, o resgate da “qualidade narrativa” que sustenta a nossa vida, que nos possibilita ver onde estamos e como chegamos até aqui. Em vez de se submeter a uma valoração despersonalizada, imposta agressiva e externamente, as velhas e a criança instituem inconscientemente um sistema de valor próprio e intransferível, conferindo importância a coisas talvez tão intangíveis quanto os “ativos” que J R devora até explodir, mas, por certo, mais perenes e significativas.

Em um movimento similar, depois que tudo vai pelos ares, Bast também se dispõe a voltar a compor, e o faz em uma cama de hospital, onde se recupera de uma pneumonia, usando giz de cera porque não há um lápis sequer à disposição. Ele, que pouco antes havia desistido de tudo, incluindo da música, (re)descobre que o apetite criador é muitas vezes inescapável. E, assim, artista que é, dispõe-se a criar mesmo sem saber por que o faz, mesmo sabendo que quase ninguém dá a mínima, sabendo apenas que precisa porque precisa fazê-lo, que precisa porque precisa seguir ao menos tentando, ciente do (não) lugar que ocupa.

Esta é a fome que importa, afinal. Esta é a fome que mantém Bast vivo. Esta é a fome que manteve William Gaddis vivo por duas décadas, entre a injusta e perversa recepção de seu primeiro romance e o lançamento do segundo. Esta é a fome que se sobressai em meio à cacofonia, à histeria e ao desespero dos que só comem para vomitar. Esta é a fome que, embora insaciável (e também por isso), é criadora, jamais destruidora.

São Paulo, janeiro de 2019
(revisto em outubro de 2021).

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NOTAS

¹ Li a edição da Dalkey Archive Press, com introdução de Rick Moody. Uma nova edição foi lançada em 2020 pela New York Review of Books, com introdução de Joy Williams. O livro é inédito em português, a exemplo de quase toda a obra de Gaddis — exceto por Carpenter’s Gothic, seu terceiro romance, traduzido por Muriel Alves Brazil como Alguém parado lá fora e lançado pela editora Best Seller.

² Escrevi sobre outros livros de Gaddis. Veja AQUI.

³ Há até um livro, Fire the Bastards!, em que Jack Green compilou resenhas inacreditáveis, escritas por críticos que sequer leram o romance inteiro e erraram informações básicas (há quem errou o número de páginas, o nome do autor e até mesmo o título), além de, muitas vezes, adotarem um tom condescendente ou grosseiro. Com isso, relegaram uma obra-prima ao ostracismo por anos.

4 Em His Master’s Voice. Leia na íntegra AQUI.

Noite e dia

Um pequeno trecho de
ABAIXO DO PARAÍSO
(Rocco, 2016)

Abaixo

Quando se aproximava do trevo de Anápolis, o distrito industrial à direita e a cidade à esquerda, Cristiano pensou em Brasília, no que fizera (nada) e no que vira (muito) por lá. Dois modos de se situar na cidade, ou de confrontá-la. Não saberia dizer qual deles era o pior, o mais arriscado. Não se lembrava de muitas pessoas que se mantivessem aquém da linha traçada no chão (Silvia era obviamente, e até certo ponto, cúmplice de Paulo), que não lidassem com ela de algum modo, que não a ultrapassassem eventualmente. Os conhecidos em Brasília gerenciavam o tráfico aqui e acolá, o entorno do Distrito Federal como o Velho (Centro-)Oeste, um vácuo deixado pelo Estado no qual era surpreendente que a lei da gravidade ainda estivesse em vigor (nada mais estava) (talvez porque a gravidade não interferisse no andamento da coisa), e tinham aquele gosto pela expansão agressiva dos negócios. Cristiano os conhecera anos antes, quando trabalhara na campanha para senador de um aliado do reizinho, Paulo dizendo que eles precisavam dos votos do entorno do DF e que a melhor forma de consegui-los era se aliando ao que chamava, meio sério, meio sacana, de lideranças locais. Shows de música sertaneja, camisetas e cestas básicas distribuídas mediante o estreitamento dos laços com as tais lideranças, tudo pelo bem público, no interesse da comunidade, o melhor para todos nós. E o reizinho administrava Goiás também se colocando assim agressivamente, não? Vide o que Cristiano fazia naquele exato momento, a caminho de obter informações escusas por meios ilícitos, circulando à sombra do poder ao mesmo tempo em que alimentava (e era alimentado por) essa sombra. Por tudo isso, a ideia de um submundo lhe parecia falaciosa. A superfície era uma só. Quando muito, poderia se falar em expressões diurna e noturna de uma mesmíssima cartografia. Os conhecidos em Brasília se restringiam (no mais das vezes, e por enquanto) à expressão noturna; o governador goiano conciliava ambas, a depender das circunstâncias, ou às vezes no âmbito de uma mesma circunstância, como as eleições. Assim, ao adentrar a pujante cidade de Anápolis para fazer o que o governador incumbira alguém de incumbir outro alguém de incumbir Paulo de lhe incumbir, Cristiano sentiu-se parte de uma brincadeira sem começo nem fim, uma fila a perder de vista formada por pessoas de costas umas para as outras e entregues a uma sucessão de empurrões desmotivados, este empurra o que está à frente, que empurra o seguinte, que empurra aquele, que empurra aquele outro etc., os empurrões adquirindo uma violência maior a cada vez, alguém golpeado aqui e ali, um soco na nuca, um eventual pontapé, um morto eventual, por que não?, nada que altere a normalidade, o andamento em geral tedioso do jogo, a violência aumentando e diminuindo conforme a dinâmica própria e inescrutável da coreografia. Cristiano estava ali, entre a noite e o dia, encalacrado na madrugada infinita cuja escuridade baça lhe penetrava os poros e, pouco a pouco, enegrecia ossos, coração, vísceras, dentes.

Histórias sobre histórias

Versão estendida de uma resenha publicada n’O Popular.

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A voz do outro está aí desde sempre. Nós é que muitas vezes não nos dispomos a ouvi-la. Ela fala com a gente nas ruas e também por meio dos livros, dos filmes, da música etc. Basta prestar atenção. Com isso em mente, sugiro que atentemos para o que é dito em Lá não existe lá, estreia do norte-americano Tommy Orange. Lançado em 2018 pela Rocco, com primorosa tradução de Ismar Tirelli Neto, o romance é de uma beleza e de um engenho insuspeitos.

De ascendência Cheyenne e Arapaho, Orange parte de uma premissa tão simples quanto evidente: em geral, os povos nativos americanos são muito mal representados. De fato, quando vemos um “índio” em um romance, filme ou seriado, é quase sempre uma figura estereotipada como, por exemplo, um sujeito andrajoso trabalhando como frentista em um posto de gasolina no meio do nada ou um alcoólatra vendendo porcarias à beira de uma rodovia. Como disse o autor em entrevista ao jornal britânico Guardian, tampouco “há muitas representações nossas como (pessoas) modernas, contemporâneas e vivendo em cidades”. Assim, em Lá não existe lá, Orange monta um coral: são doze narradores, todos nativos americanos, todos vivendo em áreas urbanas, especialmente na Califórnia.

Não é fácil estruturar um romance a partir de tantas vozes. Primeiro, há que se distinguir cada uma delas, e depois fazer com que caminhem por um mesmo chão, por assim dizer. E é a qualidade do entrelaçar dessas vozes que justifica e eleva o romance enquanto tal; conectá-las, implícita ou explicitamente, e de uma forma que seja instigante. Orange é muito bem-sucedido nisso.

No clímax de Lá não existe lá está um powwow, evento tradicional que visa integrar os mais diversos grupos nativos por meio de apresentações artísticas. É para esse festival que afluem os personagens: um deles vai dançar (depois de usar vídeos do YouTube para aprender os passos), outros organizam e trabalham no evento, uns vão assistir, outros planejam um assalto etc. Essa confluência é acidentada, dolorosa, repleta de desvios e com um desfecho dos mais brutais. Mas, de um modo ou de outro, todos dão testemunho de algo — mesmo que do próprio silenciamento –, pois, como diz a mãe de uma personagem (Opal Viola), o mundo é “feito de histórias, nada mais, apenas histórias, e histórias sobre histórias”.

Em meio a tantos personagens, há alguns que exibem certa característica amalgamadora. Por exemplo: Dene Oxendene, que grava depoimentos de Índios com vistas a montar uma espécie de documentário. “Quero que eles possam dizer o que quiserem”, ele afirma. “Há tantas histórias aqui.” Sim, há, e elas funcionam como pequenos mosaicos dentro do mosaico maior, ou corais menores substanciando o coral maior. Em tal contexto, aproveito para ressaltar outras duas passagens.

A primeira é aquela em que Opal Viola e sua irmã, ainda adolescentes, são levadas pela mãe para uma ocupação em Alcatraz, e é dito: “Que é que tem de tão bom em ocupar um lugar estúpido onde ninguém quer estar, um lugar do qual as pessoas estão tentando escapar desde que o construíram”. Ora, que a antiga prisão seja cogitada como um “lar” possível para os Índios diz muito da forma como eles se veem e, acima de tudo, são vistos e tratados.

Já a segunda passagem diz respeito ao doloroso testemunho da irmã de Opal, Jacquie, seguido pela fala daquele que usou “de força para esticar um não até transformá-lo em sim” e a engravidou quando ela contava apenas dezesseis anos. O livre trânsito de vivências e lembranças compartilhadas, a verbalização de experiências traumáticas, muitas vezes marcadas pelo alcoolismo, pelo abandono e por inúmeras perdas, tantos anos depois, tudo isso acaba por paradoxalmente reaproximar os personagens. Tal reaproximação é até certo ponto previsível, mas isso não importa e, sim, a forma como ela se dá, o cuidado com que Orange desvela uma voz e depois a outra, abrindo um espaço, uma clareira, onde elas possam se ver e se reencontrar e, por que não, coabitar.

Em suma, o que salta aos olhos nesse esforço para resgatar um passado e um presente eivados de desapreço pela memória coletiva e individual é que há sempre vidas tocando vidas, às vezes de forma violenta, mas sempre inequivocamente. Lá não existe lá nos mostra que, havendo histórias em toda parte, atentar para elas é atentar para essas vozes que nos procuram o tempo todo, e que distingui-las, apreciá-las e respeitá-las pelo que são é uma atividade humana no que o termo (humana) ainda tem de bom.

Traduções

Mais dois livros que traduzi chegam às livrarias por esses dias: Lixo – Como a sujeira dos outros molda a nossa vida, de Theodore Dalrymple, e o soberbo Os Deuses da Revolução, de Christopher Dawson. Ambos são lançamentos da É Realizações. Dalrymple propõe uma reflexão cáustica e invulgar sobre a sujeira que espalhamos por aí (e o que ela diz sobre nós). Dawson, por sua vez, nos oferece um dos melhores ensaios sobre a Revolução Francesa. Saiba mais sobre os livros AQUI.

Do silêncio armado

À memória de Aldair da Silveira Aires.

 

 1.

Na obra caudalosa do mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke (1936-2008), o diabo não está “na rua, no meio do redemoinho”, mas surdamente exposto, nu e às vistas de todos, tomando os nossos olhos para si. Madona dos Páramos¹, romance maior do autor, é um épico da incompletude, o recorte de uma viagem cujos inícios, quando muito, apenas entrevemos – “Os inícios das coisas, ninguém sabe, apenas se sabe quando já está no meio, mediações” –, e cujos entrecho e desfecho apontam para um lugar inalcançável pelos personagens, mas ideal e paradoxalmente abraçado tanto por eles quanto por nós, leitores.

Ressalte-se, desde já, a viagem: sua potência transformadora é catalisada pela personagem-título e verificada em cada um dos sujeitos que, dispersos no “silêncio armado” do “sertão”, nos “lugares mais longos, mais restantes, lá onde Deus se recua”, desvelam o caráter esboroante das coisas e seres deste mundo. Mesmo cientes de “que nunca se chega, a verdade, a terra nenhuma nestas terras”, esses personagens cavalgam à exaustão, mirando sua destinação alucinatória, empurrados pela lembrança da madona que se foi e os abandonou nos páramos.

Procuro, por meio deste ensaio, chamar a atenção para um dos achados maiores da literatura brasileira, obra desgraçadamente pouco lida e conhecida. Dono de uma dicção única, aferrado a um estilo febril e desbragado, Dicke merece e precisa ser resgatado o quanto antes do ostracismo.

 

2.

Filho de um alemão de Vechta e de uma brasileira de Coxipó do Ouro, Dicke nasceu em Raizama, na Chapada dos Guimarães. Mudou-se para Cuiabá ainda moleque, sendo educado em colégios religiosos. Mais tarde, no Rio de Janeiro, onde viveu por uma década, estudou Filosofia na UFRJ e pintura com Frank Schaeffer e Ivan Serpa, expôs no XV Salão de Arte Moderna e cursou Cinema no MAM. Ainda na capital fluminense, especializou-se em fenomenologia heideggeriana e trabalhou como repórter e pesquisador para O Globo. De volta a Cuiabá, ocupou-se, entre outras coisas, como professor da Universidade Federal do Mato Grosso e também no Correio da Imprensa. No começo da década de 1980, outra vez no Rio, concluiu o mestrado com a dissertação “Conjunctio Oppositorum no Grande Sertão”, sobre a obra de Guimarães Rosa, após o que retornou em definitivo para Cuiabá.

Ao lançar Madona dos Páramos, em 1982, Dicke vinha de dois romances bem-sucedidos: Deus de Caim, um dos agraciados com o Prêmio Nacional Walmap 1968 (que teve em seu júri Jorge Amado, Guimarães Rosa e Antonio Olinto), e Caieira, primeiro lugar no Prêmio Remington de Prosa 1977 (júri: Hélio Pólvora, Flávio Moreira da Costa e José J. Veiga). Entre um e outro, escreveu Como o Silêncio, Prêmio Clube do Livro 1968.

Se atentarmos para Deus de Caim (relançado em 2010 pela LetraSelvagem) e Caieira (cuja única edição, pela Francisco Alves, data de 1978), é perceptível o fermentar dos temas e formas que culminarão no monumental Madona dos Páramos. Seus personagens, lançados em um ambiente de veredas que se desfazem, abauladas por aquele “silêncio armado”, estão sempre à mercê da natureza devoradora e desarvoradora, seja humana, seja inumana. À infinita violência da Mãe-Terra, eles respondem com a débil violência do homem, perpetuando brutalidades e perplexidades na essência redonda da vida – no que parafraseio o trecho inicial de Deus de Caim.

Madona dos Páramos é estruturado como uma sequência de blocos narrativos e digressivos, sem divisões de capítulos ou quaisquer respiros para o leitor; há parágrafos que se estendem por páginas e páginas. Assim, o romance se impõe como uma experiência que desbasta “e modela a grandes golpes, rompe e irrompe, abre clareiras”, como afirma Hélio Pólvora no prefácio à primeira edição, sublinhando: “Sua alquimia é desvairada”.

Pólvora não está sozinho em sua estupefação. Referindo-se a Dicke, a escritora Hilda Hilst afirmou², em entrevista cedida a Caio Fernando Abreu, tratar-se de “um homem impressionantemente prolixo, com uma linguagem que tem uma oleosidade fascinante”. E mais: em Madona, ele teria chegado ao clímax de seu estilo, “esse centro prolixo, complexo, onde existe a volúpia da palavra”.

Note-se que a prolixidade, aqui, não é um “problema” ou “senão”, mas uma das ferramentas estilísticas que permitem ao autor desmontar e expor, não raro pelas ações, dizeres e olhos de seus personagens, “o horizonte achatado que se nega sempre a ser compreendido” e a vida, essa vida sempre fugidia, “para que ninguém se perca dentro do oceano escuro que suga, o abismo negro que” nos cerca e “chupa para fora do círculo”.

O mote de Madona dos Páramos é uma fuga. A rebelião numa cadeia mato-grossense cospe aos quatro ventos dezenas de criminosos. Um punhado deles, bando liderado por um “pretaço de raça caburé, cuiabano de sangue azougado” chamado Urutu, investe tuaiá adentro rumo a um lugar mítico, a Casa da Figueira-Mãe. “Tuaiá” é uma palavra de origem tupi que significa, conforme o Houaiss, “lugar muito longe, rio acima”, e também é usada para designar, “no Alto Xingu, a mais distante região de seringais”. Os locais remotos servem, é claro, de proteção, na medida em que dificultam a captura ou morte pelas mãos dos “meganhas”, mas também para alimentar a busca última, interminável, pela Figueira-Mãe: “Estavam no centro do tuaiá. Ali era o rodopião, a espiral das ilusões mais profundas”.

Antes de Urutu e dos outros, as páginas iniciais nos trazem o ex-cabo José Gomes. Já em fuga da cadeia, ele se depara com uma velha pedinte que parece uma bruxa desgarrada de Macbeth. Ela roga toda sorte de pragas para o fugitivo, e só aceita lhe ceder a benção após receber uns trocados e entender que ele, a despeito das roupas que usa, não é mais um soldado. Meses antes, José Gomes flagrou a mulher com outro e matou o sujeito a machadadas, deixando “os quartos do homem abertos em dois, os ossos vivos no cerne do branco despontando em tutano no escarlate do esquartejo”.

Em um buritizal, após cavalgar à exaustão, Gomes encontra outro fugitivo, o rapaz Garci, ex-recruta, e com ele segue viagem. Dão com “uma casinhola de sapê num cochicholo de mata”; atrás dela, “um amontoado como de vísceras”, pés e mãos decepados e “testículos humanos, órgãos de gente”; por fim, do “lado do varal da cumieira, dependurados como morcegos, por tiras de couro, de cabeça para baixo (…), quatro homens despidos, sem mãos e sem pés, furados a bala, estrias escuras pelo corpo, castrados em sangue seco”. É sinal de que Urutu e os outros estão por perto e, de fato, não demora para que esses “foragidos, bandoleiros, homens livres” retornem ao local do massacre. São eles: o Caveira, “de Minas Gerais e professor”; Chico Inglaterra, “meio cínico nos modos, meio delicado com o corpo”, o couro devastado pela macutena (hanseníanse); o malfadado mulherengo Lopes Mango de Fogo; Babalão Nazareno, com seu “rosário de contas enormes e toscas no pescoço”; Canguçu, de “cem mortes no lombo”; Pedro Peba, “amansador de gente, capador de onça e capitão”; e Bebiano Flor, “boiadeiro e cantor”.

O destino declarado e desejado por esses homens é a tal Figueira-Mãe, “casa-palácio-igreja”, “direção de homizio, onde não chegam os abusos nem as arbitrariedades”, “lugar perdido no maior sertão do Norte mais profundo, no tuaiá dos mato-grossos, que todos os perseguidos sonham alcançar um dia e pensam encontrar sem erro preconcebido nem maturado”. Essa Canudos elusiva teria o seu Antônio Conselheiro, um certo Sem-Sombra, que antes de lá se fixar se metera com a sobrinha de um arcebispo e, a exemplo de Abelardo, acabou castrado. “Mas tudo isso podem ser lendas”, diz Chico Inglaterra. “E as lendas correm e voam.” Lenda ou não, é para a Figueira-Mãe que o bando de proscritos vai, esteja ela onde estiver, exista ou não.

A eles se juntarão o silencioso Melânio Cajabi, “com sua solidão de mil silêncios encravados na sua mudez”, homem cuja voz só se fará ouvir no longo e esplendoroso monólogo final, e aquela que é o centro em torno do qual orbita o romance – a moça sem nome.

3.

Necessitados de provisões, alguns membros do bando invadem uma fazenda e matam os proprietários. Trazem de lá, entre os espólios, a moça cujo nome jamais saberão. Estaria destinada aos usos e abusos de Urutu, mas algo nela, para além do silêncio e da grande beleza que ostenta, acaba por mesmerizá-los. Ciente do poder de que é pouco a pouco investida, ela prepara e executa “uma espécie de vingança” que passa pela negação do nome (“… eles ficarão para sempre sem saber como me chamo, até a hora da morte se lembrarão de mim e não saberão meu nome, morrerão de sede, cada qual no seu maior deserto…”), pois:

“(…) a essência do homem é dar nome às coisas e transformá-las de inomeadas em nomeadas, de coisas ignoradas em coisas conhecidas, de desconhecidos em coisas, mas eu não tenho nome, eu sou a Mulher me vingando da gratuidade do mundo, a mulher que exige vingança ou uma explicação de Deus; (…) nunca saberão como me chamarei, eu que vim sem nome das origens, e essa recordação lhes arderá na existência como um fogo sem chama, um fogo que arde sem queimar, só para mim mesma me chamarei por meu nome verdadeiro, nome que, para acalmar a sede infinita das apelações, me puseram meu pai e minha mãe quando nasci” (p. 130).

Para além da negação do nome, há ainda a elusividade do corpo: em uma das passagens mais poderosas do romance, a moça sem nome, intocada (o único que ousa achegar-se é prontamente assassinado por Urutu), tira suas roupas e, às vistas de todos, banha-se em um rio. É o momento em que seu domínio sobre eles é consumado, e os homens passam de sequestradores a sequestrados: “se fosse mais bela, o que seria? Uma divindade, um poder (…). Bastava a ela ser ela mesma, a vingadora pela beleza, nada mais”. A partir daí, identificada com uma espécie de “santa no altar” ou, melhor ainda (e aqui o paganismo de Dicke sorri para o leitor com todos os seus dentes), “deusa, dessas dos livros antigos, mais velhos”, ela permanecerá inviolada, exceto por um breve contato com o leproso Chico Inglaterra – mas o que se tem aí é o reiterar de sua condição, na medida em que, feito “uma rainha”, ela oferta “aqueles instantes como um presente aos homens, aos viventes que a amavam na sua solidão”.

Assim inalcançável, ela se torna uma ideia que, porquanto desnomeada, escapará a quaisquer admoestações racionais ou conceituais. De certo modo, a moça sem nome como que se coloca no centro da clareira (Lichtung) a que Heidegger alude em um de seus mais belos textos³:

“(…) A luz pode, efetivamente, incidir na clareira, em sua dimensão aberta, suscitando aí o jogo entre o claro e o escuro. Nunca, porém, a luz primeiro cria a clareira; aquela, a luz, pressupõe esta, a clareira. A clareira, no entanto, o aberto, não está apenas livre para a claridade e a sombra, mas também para a voz que reboa e para o eco que se perde, para tudo que soa e ressoa e morre na distância. A clareira é o aberto para tudo que se presenta e ausenta” (p. 77).

Identificada, também, com a Mãe-Terra, com a violência feminina intrínseca à natureza, com a Criação que põe e dispõe, engole e regurgita, com aquilo que governa o olho masculino para melhor absorvê-lo, ela ainda personifica, a meu ver, o veredicto de Camille Paglia a certa altura de Personas Sexuais4: “A mãe natureza nos torna a todos eunucos”.

A violência da moça sem nome, ainda me aproveitando do vocabulário de Paglia, é de ordem ctônica, ao passo que a violência dos homens que a escoltam, por mais brutal que seja, é um mero jogo de meninos adoecidos. Presos na armadilha, dessexualizados ou incomodamente deslocados no âmbito de sua turbulência libidinal, eles lançam olhares embasbacados para aquela que os remete ao Caos primevo, ao inominado e inominável, ao que foge à conceitualização e que fatalmente lhes escapará (ascenderá?).

4.

Reitero: Madona dos Páramos é uma fuga e, enquanto tal, uma viagem. Mas a jornada que inscreve não se completa. Longe de se perder – embora às vezes se sintam assim –, seus personagens se entregam a essa (não-)destinação, a esse eterno palmilhar e cavalgar pelos ermos do mundo, a essa busca interminável pela Figueira-Mãe que, no fundo e ao cabo, acaba se transformando em buscas outras. No transcorrer desse percurso, a narrativa passeia por todos e cada um deles, flutua com e por suas vozes e rememorações, municia um coral que se dispõe a cantar histórias dentro de histórias dentro de histórias, em notas que se distendem ao extremo em meio a “esse som de cascos, cascos, cascos e cascos e no interior dos cascos esse silêncio e dentro das frestas desse silêncio esse violão soando”.

E é inclusive por essa estruturação singular, cuja incompletude fundamental não canso de ressaltar, que considero um erro grotesco subsumir a prosa de Dicke à de quaisquer “regionalismos” (categorização tão genérica quanto disfuncional) ou, pior, encará-lo como uma espécie de sub-Guimarães Rosa. O ordenamento rosiano obedece a intenções, instintos e procedimentos diversos dos da prosa dickeana. Cito um trecho d’A Poeira da Glória, no qual Martim Vasques da Cunha nos esclarece que5:

“(…) reelaborando cada palavra arcaica da língua portuguesa e reestruturando-as via as línguas greco-latinas e germânicas, [Rosa] implodia qualquer noção tradicional de romance (o mesmo foi feito trinta anos antes com o Ulysses, de Joyce). A estória, contada – ou melhor, ruminada – pelo ex-jagunço, agora fazendeiro barranqueiro, Riobaldo, tem uma estrutura dupla: sua fala tem o ritmo de um rio (seu nome anuncia isso), mas o modo de fabular é de um redemoinho que ora é uma serpente, ora é uma espiral – imagens simbólicas que terão múltiplas ressonâncias neste épico sobre o perigo de viver nas veredas da graça” (p. 403).

Se Rosa é joyceano, Dicke é faulkneriano. No lugar da fabulação espiralada do Grande Sertão: Veredas, temos um estiramento tumultuoso que sugere o desenho (falho, incompleto) de um círculo. Não por acaso, quando deixamos Urutu, José Gomes, Melânio Cajabi e cia., eles prosseguem em sua busca pela Figueira-Mãe, prenhes da presença-ausência da moça sem nome, talvez andando em círculos, talvez não (as noções de tempo e espaço são pouco a pouco implodidas pelo caráter crescentemente alucinatório do romance), mas entregues àquela procura e contaminados por ela. Inexiste, portanto, um arco narrativo como aquele de (imposto por?) Riobaldo, que desde o início se coloca em um ponto fixo a partir do qual pode, retrospectivamente, ruminar sua história. Ademais, em Dicke, tampouco o espraiar “oleoso” da linguagem se assemelha, pelos seus métodos e efeitos, ao inventivo gozo linguageiro proposto por Rosa.

Do mesmo modo, as perquirições filosófico-metafísicas também apontam em direções opostas. Rosa, atesta Vasques da Cunha, “faz um livro inteiro a respeito do pacto demoníaco e, ousadia das ousadias, demonstra que esse fato é a raiz da alma brasileira”. Em Madona dos Páramos, por mais que Melânio Cajabi invoque o Demo, este não aparece ou comparece: o pacto faustiano jamais é efetivado porque o Diabo se revela tão surdo quanto Deus.

 

5.

E surdos ficamos nós à voz única de Ricardo Guilherme Dicke. Afeitos às facilidades dos juízos inconsequentes e apressados, às simplificações, aos nivelamentos grosseiros, permitimos que uma obra-prima como Madona dos Páramos restasse nas sombras do olvido. Mas um livro sobrevive enquanto tiver leitores, e eis-me aqui pedindo, implorando, que se voltem para este caminho que nem é “mais caminho e sim deserção de caminho”, que atentem para o “silêncio armado” dos páramos e sua aridez incontornável, que enlouqueçam com a alquimia desvairada de um gigante.

 

São Paulo, outubro/novembro de 2018.
Artigo publicado na décima edição da revista Helena.

…………

BIBLIO

 

¹ DICKE, Ricardo Guilherme. Madona dos Páramos. Rio de Janeiro: Edições Antares; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1982.

² DINIZ, Cristiano (org.). Fico Besta Quando me Entendem – Entrevistas com Hilda Hilst. São Paulo: Biblioteca Azul, 2013.

³ HEIDEGGER, Martin. O Fim da Filosofia e a Tarefa do Pensamento. Em Conferências e Escritos Filosóficos, coleção Os Pensadores. Tradução: Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

4 PAGLIA, Camille. Personas Sexuais – Arte e Decadência de Nefertite a Emily Dickinson. Tradução: Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

5 VASQUES DA CUNHA, Martim. A Poeira da Glória. Rio de Janeiro: Editora Record, 2015.

Dos reconhecimentos possíveis

Recognitions

Mas você está… você está trabalhando. Você é um artista?
— Sim, e vivi como um ladrão.

1.

The Recognitions¹ é o romance de estreia do nova-iorquino William Gaddis (1922-1998). Quando de seu lançamento, em 1955, foi massacrado pela crítica (que, salvo por algumas raras exceções, nem se deu ao trabalho de ler o calhamaço de quase mil páginas) e ignorado pelo público. Duas décadas se passaram antes que Gaddis voltasse a publicar. Pelo não menos ambicioso JR, ele enfim obteve reconhecimento: o livro foi agraciado com o National Book Award e o interesse por seu trabalho cresceu. Nas décadas seguintes, escreveu outros três romances, tão desconcertantes quanto seus predecessores: Carpenter’s Gothic (1985), A Frolic of His Own (1994, também vencedor do National Book Award) e Agapé Agape (lançado postumamente, em 2002).

O homem é um dos grandes autores surgidos no pós-guerra. É fácil reconhecer sua sombra até o presente, em ficcionistas de todas as gerações seguintes. Mas, vinte anos após sua morte, e exceto por uma edição já esgotada de Carpenter’s Gothic (traduzido por Muriel Alves Brazil como Alguém parado lá fora e lançado pela editora Best Seller), Gaddis segue inédito no Brasil. Talvez seja o momento de reparar essa falta enorme.

The Recognitions é um livro tão difícil quanto extraordinariamente belo. Em se tratando das letras norte-americanas desde a segunda metade do século XX, a profundidade de suas perquirições só é comparável à do Thomas Pynchon de O Arco-Íris da Gravidade. Gaddis é o chão de onde brotaram John Barth, William H. Gass (outro gigante, falecido há pouco tempo), Don DeLillo, David Foster Wallace e o já citado Pynchon. E, passando pelo berçário, não custa nada assinalar que até o pequeno Jonathan Franzen tentou beber dessa fonte (e, previsivelmente, engasgou-se).

2.

Em The Recognitions, Gaddis espelha a escuridade anímica (dele, sua, minha) na obscuridade narrativa, mas nos faz a gentileza de, ao final, implodindo (com música sacra) as paredes e o teto de uma igreja condenada, apontar inequivocamente para o alto.

Tentarei explicar isso melhor.

Como toda e qualquer obra de arte digna de ser considerada como tal, esse romance diz respeito a uma busca. Desde o título — homônimo de um “romance teológico” do século III, dos primórdios do cristianismo, relativo a Clemente de Roma — até a maneira como introduz seus temas e personagens, passando pelas epígrafes que abrem cada um dos capítulos², Gaddis propõe uma odisseia em que a busca pela autodescoberta e por reconhecimento, seja de que espécie for, quase sempre resulta em um descolamento da realidade imediata e, não raro, do próprio eu.

A espinha dorsal da narrativa diz respeito ao pintor Wyatt Gwyon, cujo pai é um presbítero da Nova Inglaterra que abraçou o mitraísmo depois de perder a mulher — primeiro movimento de irreconhecimento que irrompe do livro. Após sofrer um contratempo em sua carreira, Wyatt deixa-se aliciar por um mefistofélico contraventor chamado Recktall Brown e passa a forjar telas “perdidas” de mestres como Bosch e Van Eyck, integrando uma lucrativa rede criminosa que, entre outros, inclui o crítico de arte Basil Valentine, responsável por ajudar na autenticação das pinturas depois que elas são “encontradas”.

Das ironias: o contratempo citado acima é fruto da honestidade de Wyatt, que se recusa a fazer um “acerto” com um crítico (que elogiaria seu trabalho em troca de uma porcentagem sobre as vendas); e seu insucesso como pintor também se deve à concepção anacrônica que possui do fazer artístico, incorporando técnicas e crenças renascentistas segundo as quais o que ele faz é algo deiformemente guiado e observado. Traduzo (apressada e canhestramente) um trecho (p. 251):

“(…) Porque eles viam Deus em toda parte. Não havia nada que Deus não observasse, nada, e então isso… e então cada detalhe da pintura reflete… a preocupação de Deus com os objetos mais insignificantes da vida, com todas as coisas, pois Deus não descansa por um instante sequer, e nem o pintor poderia descansar. Você vê a perspectiva nisso? — ele perguntou, segurando a réplica amarrotada diante deles. — Não tem nenhuma.”

Dezenas de outros personagens pipocam nas páginas, não raro em longos capítulos crivados de diálogos — marca registrada do autor, que em romances posteriores radicalizaria tal expediente. São aspirantes a poetas, aspirantes a dramaturgos, aspirantes a romancistas, aspirantes à paternidade, viciados, falsificadores, editores, todos (se) debatendo com todos, falando sem parar em festas, bares, restaurantes, parques, zoológicos e calçadas.

No decorrer do livro, há pelo menos duas festas agitadíssimas, uma delas (sétimo capítulo da parte II) na véspera de Natal, onde a cacofonia, os desencontros e as maluquices atingem níveis hilariantemente absurdos: uma criança bate à porta a todo instante e pede pílulas para a mãe, obtendo-as sem problemas; um gato é acidentalmente morto por uma convidada, que trata de ocultar o cadáver em sua bolsa, furtada mais tarde (passagem que David Foster Wallace talvez tivesse em mente ao bolar aquela história do coração na bolsa (sic) em Graça Infinita); um bebê passeia por ali e é afinal sequestrado por uma infeliz, que depois será abandonada pelo marido (ele se assume homossexual); alguém se tranca no banheiro e tenta se matar com uma navalha; um crítico é exposto diante de todos como um rematado punheteiro (“Vá pra casa com sua amante, a velha senhora cinco dedos…”), e depois, sozinho com a dona do apartamento, faz jus à fama; a música de Handel ressoa sem parar ao fundo; etc.

Todos os personagens, em algum nível, em um ou mais momentos, por alguma razão, ação ou inação, alimentam os irreconhecimentos que percorrem a narrativa. Exemplos: Esther, mulher de Wyatt e aspirante a escritora, vê no marido algo que ele poderia ou deveria ser (a saber: um reverendo como Gwyon), coisa da qual se distanciou (ou irreconheceu) para pintar; Otto, sempre em fuga (dos EUA para a América Central, da América Central para os EUA, de Esther para Esmé, de Esmé para a América Central), escreve uma peça que poucos leem, mas pela qual todos acusam-no (com níveis variados de animosidade) de plágio; Esmé, poeta, modelo, suicida, viciada, espelha de maneira corrompida a imagem da mãe de Wyatt (e escreve numa carta para ele, antes de ir para casa e tentar se matar: “Pinturas são metáforas da realidade, mas, em vez de auxiliar na sua realização, elas obscurecem a realidade, que é muito mais profunda. A única maneira de eludir a pintura é pela morte absoluta”); Stanley, um músico católico, está sempre às voltas com uma composição em homenagem à mãe diabética e moribunda (depois suicida), cuja execução só se dará no epílogo, quando o romance rui sobre si mesmo para edificar e sustentar a nossa compreensão dele; Sinisterra, responsável logo no começo por matar a mãe de Wyatt (quando, no meio de uma viagem marítima, ela é acometida por uma apendicite e ele se faz passar por médico), tropeça nele décadas mais tarde, junto ao túmulo (vazio) dela, para rebatizá-lo conforme seus pais um dia quiseram chamá-lo.

3.

Esse encontro com Sinisterra talvez seja o primeiro sinal de que o protagonista, após tanto errar pelo mundo, é empurrado rumo a algum (auto?)reconhecimento. De fato, no que diz respeito a Wyatt, três passagens me parecem cruciais para compreender como o romance é animado por sua busca repleta de frustrações, busca que, ao final, não obstante toda a ambiguidade da cena e a aparente loucura do personagem, encontra um desfecho apaziguador.

Na primeira dessas passagens, o terceiro capítulo da segunda parte, temos mais uma sequência perturbadora de irreconhecimentos. Fora de si, planejando expor o esquema de falsificações que integra, Wyatt retorna brevemente à casa do pai. Este pensa que o filho voltou para se tornar um sacerdote mitraísta; o avô materno confunde-o com ninguém menos que o mítico Preste João; a empregada acha que ele é o próprio Cristo redivivo; e, como se não bastasse, o próprio Wyatt julga ser o reformista Jan Huss (queimado numa fogueira no começo do século XV).

Mais irreconhecimentos: naquele outro trecho, citado acima, em que se dá o encontro de Wyatt com o assassino da mãe, eles não por acaso se associam momentaneamente numa jogada que, para variar, envolve uma falsificação.

Por fim, no quinto capítulo da terceira parte, o último antes do epílogo, reencontramos Wyatt em um monastério (o mesmo no qual seu pai se refugiara décadas antes, depois de perder a mulher), não mais falsificando, mas restaurando pinturas de forma nada ortodoxa. Não se trata, por certo, de uma redenção. Contudo, em dois longos diálogos entre ele e o “distinto romancista” Ludy, é possível, sim, ver como o protagonista enfim alcança algum reconhecimento de si, antes de se despedir acenando com a possibilidade real, embora inacessível para seu interlocutor, de uma epifania.

Wyatt está, ali, “vivendo através da culpa” — e o termo “através” me parece essencial, na medida em que alude a uma travessia inclusive física, que se confunde com suas idas e vindas pelo mundo afora e diz respeito à vida orgânica, mortal, contraposta à imortalidade possível, tangível, simbolizada pelas obras de arte que restaura.

 

4.

O procedimento de Gaddis, em que forma e conteúdo (e, reitero, personagens) se espelham mútua e incessantemente, autoenclausurados, cria uma tensão gigantesca. E essa tensão, muito embora seja aliviada aqui e ali por inúmeras passagens cômicas e absurdas³, remete à maneira como se concebe — no sentido mesmo de gerar — a própria obra de arte.

Dizendo de outro modo, é como se o romance, ao problematizar as noções de originalidade e autoria, ao aparentemente reconhecer que tais noções estejam inexoravelmente corrompidas no âmbito da contemporaneidade, terminasse — enquanto produto acabado, enquanto obra de arte irrepreensível — por reavivá-las. Cada negação, distanciamento ou irreconhecimento é aparente, pontual e superficial, ao passo que o que se realiza é o romance em si e também nós que o lemos, quando o lemos, reconhecendo-o (enquanto obra de arte que se/nos espelha), reconhecendo o outro (seja o autor, sejam os personagens, sejam os outros leitores) e reconhecendo a nós mesmos ao fazê-lo, na medida em que podemos, ou melhor, porque conseguimos e ainda nos é permitido fazê-lo.

No meu entender, The Recognitions trata, afinal, da possibilidade desse reconhecimento maior, mais profundo e irrestrito, intrínseco e extrínseco à obra de arte, mas jamais extrínseco à natureza humana. Tal possibilidade é presentificada pelo próprio livro, assim disposto à nossa frente em toda a sua beleza, pronto para ser (re)conhecido. 

…………

¹ Dispus da edição lançada pela Dalkey Archive Press em 2012, com prefácio de William H. Gass. Uma nova edição foi lançada em 2020 pela New York Review of Books, com introdução de Tom McCarthy (e o texto de Gass como posfácio). Uma versão deste meu ensaio foi publicada no Rascunho em janeiro de 2019.

² Sobretudo a primeira dessas epígrafes, atribuída a Santo Irineu: Nihil cavum neque sine signo apud Deum, “Em Deus nada é vazio de sentido” — lembre-se dela quando chegar ao final do penúltimo capítulo.

³ Além das passagens que citei acima, ao me referir à festa de Natal, há também o momento em que Otto e um comparsa invadem uma funerária, furtam uma perna amputada e tentam deixá-la na casa de Stanley, a fim de assustá-lo (e ignorando o fato de que o membro pertencia à mãe diabética dele).

Amóz Oz: uma despedida.

Texto publicado hoje no Estadão.

Oz

Na obra de Amós Oz estão a violência intrínseca ao doloroso trabalho de parto do Estado de Israel e à sua manutenção nos moldes atuais, o “sonho bonito” dos primeiros tempos e a aridez de uma sociedade cindida. Longe de ser uma voz solitária ecoando desde o deserto, à beira do qual vivia, Oz se esforçou para entrever nas rachaduras de seu tempo um futuro que evitasse repetir a tragédia daquela longa noite europeia, a Shoah, e ao mesmo tempo assegurasse uma coexistência civilizada e pacífica com os vizinhos árabes. Não estava sozinho nisso, pois nomes como David Grossman e A. B. Yehoshua também se esforçam nesse sentido, mas ele foi por certo a voz mais firme e equilibrada dentre seus pares.

Contudo, por mais importante que seja o ativismo político exercido por ele, notório defensor da chamada “solução dos dois Estados”, sempre buscando saídas para colocar fim no conflito israelo-palestino, é como ficcionista que será lembrado. Romances como A Caixa Preta e Pantera no Porão são preciosos por compor um mural da vida judaica naquele pedaço de terra, e isso desde antes da fundação do Estado israelense. Seja lidando com a vida em um kibutz (como em Uma Certa Paz), seja tangenciando uma Jerusalém sempre fugidia, que “nos deixa tristes”, mas de “uma tristeza diferente a cada momento e a cada estação do ano” (em Meu Michel), esses livros desvelam um país em formação e, não raro, em deformação. E jamais se distanciam do teor político – como poderiam? Em uma terra conflagrada, a política pontua de forma decisiva a vida doméstica e a vida intelectual. Honrando o sobrenome que escolheu para si, Oz teve a coragem de jamais tergiversar ou desviar o olhar.

Todos esses elementos – históricos, familiares, políticos – marcam presença em sua obra-prima, o romance autobiográfico De amor e trevas. Nele encontramos tanto o irrealizado “sonho bonito” de uma nação quanto o pesadelo concretizado pelo suicídio da mãe do autor, quando ele contava apenas doze anos de idade. De certo modo, a sombra dessa morte espelha a sombra abissal da Shoah. Egressa de um mundo aniquilado pelos nazistas, a mãe de Oz sucumbiu à depressão. Sua história e a história de tantos outros é resgatada pelo escritor.

Assim, nós nos despedimos de Amós Oz ressaltando a integridade e o cuidado com que abordou o tempo e o lugar onde viveu, aberto inclusive para a “luz aguçada, muçulmana”, mesmo que “entre sete véus de neblina”, como lemos em A Caixa Preta. É certo que, conforme a protagonista de Meu Michel, “escrever tudo é impossível”, pois “grande parte das coisas escapa para morrer em silêncio”. Mas o grande escritor é aquele que atenta ao que não escapa e se perde. É pouco, mas é a argamassa do nosso mundo.

F for

Lepanto

RAM
Maira Parula

(Slam poetry)

Foda-se História Social da Arte e da Literatura.
Fodam-se Harry Potter, Grimm, Walt Disney.
Fodam-se Dostoiévski, Tolstói, Maiakóvski.
Fodam-se Flor do Lácio, Sambódromo.
Fodam-se Mário, Oswald e Carlos.
Foda-se o Pessoa na pessoa.
Maeterlinck no Debussy.
Fodam-se Hamlet, Macbeth, Bruce Wayne.
Fodam-se Sigmund e Lucian.
Foda-se Augusto Frederico Schmidt.
Fodam-se os sonhos intranquilos de Gregor.
Foda-se García Lorca.
Foda-se T.S. Eliot.
Fodam-se Queijos Franceses, Nova York, O Processo Civilizador.
Fodam-se João Cabral e o Melo Neto.
Foda-se o Lautréamont do Dylan Thomas.
O Dylan Thomas do Bob Zimmerman.
Fodam-se Janeiro, Fevereiro e Março.
Descartes: foda-se o Corcovado.
Foda-se Câmara Cascudo.
A Construção do Livro. A Cura pelas Pedras.
Os Diários de Sylvia Plath.
As Conversações de Deleuze.
A Conferência de Bretton Woods.
Fodam-se os Beach Boys, os Chicago Boys.
Fodam-se Abraão, Mateus, a tradução do rei Jaime.
Fodam-se Macintosh, Haxixe, Paul Verlaine.
Foda-se terra plana, terra redonda, terra quadrada.
Foda-se das Kapital.
Foda-se mein Kampf.
Fodam-se Blanchot, Bardot, Todorov.
Lispector, Swift e Riefenstahl.
Dietrich e os Sete Nibelungos.
Foda-se Gaius Valerius Catullus.
Pedicabo ego vos et irrumabo.
Foda-se Homero.
I Ching.
Mahabharata.
Jimmy Joyce e Pixinguinha.
Foda-se Thomas Mann.
Foda-se L’église des temps barbares.
Foda-se Irvine Welsh.
Foda-se The Story of the Irish Race.
Foda-se por quem sempre o Tejo chora.
Foda-se Kipling.
Lêdo Ivo e Oppenheimer.
Fodam-se Taxi Driver, Amélie Poulain.
Yamaha, Suzuki, Kurosawa.
Foda-se Marcel Proust.
Star Wars, Ronald Reagan, Scooby-Doo.
Foda-se derradeiro ra ra ra, verdadeiro ra ra ra.
Foda-se se lá passar a Lusitana gente.
O ondulado das sebes.
A árvore colérica.
Rimbaud.
Mallarmé.
Rilke rilkeing Rilke.
L’autre moi.
Foda-se.

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