Quem puxa a ponta do próximo Kleenex?

Quem puxa a ponta do próximo Kleenex?

Texto publicado hoje n’O Popular.

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Em 1992, o bósnio Aleksandar Hemon viajava a passeio pelos Estados Unidos quando a Guerra dos Balcãs estourou. Voltar para casa era loucura, ou mesmo impossível. Nascido em 1964, em Sarajevo, ele já era um escritor promissor em seu país natal, o qual logo seria fragmentado e devastado por aquele que é o pior confronto militar a ocorrer em território europeu desde a Segunda Guerra Mundial. Vivendo desde então nos EUA, Hemon adotou a língua inglesa e foi adotado pela cidade de Chicago, firmando-se como um autor inventivo, que trafega com desenvoltura pela ficção (O Projeto Lazarus, Amor e Obstáculos) e pela não ficção (O Livro das Minhas Vidas), explorando temas que conhece muito bem, como a memória e o desterro.

O romance Como Eu Escrevi as Guerras Zumbi (traduzido à perfeição pela escritora Maira Parula e lançado, a exemplo dos outros livros do autor, pela Rocco) não é bem sobre zumbis, embora um personagem diga a certa altura que a “beleza da vida é que um dia todo mundo se transforma em zumbi, depois morre”. O livro é, antes, uma comédia cujo protagonista, Joshua, tenta escrever o roteiro de um filme com zumbis. Enquanto isso, sua vida, que já não era lá grande coisa, degringola lindamente.

Vivendo em Chicago no começo da década passada, à sombra dos atentados de 11/09 e nos estrondos iniciais da desastrosa invasão do Iraque, Joshua dá aulas de inglês para imigrantes do Leste Europeu, lida (mal) com situações familiares bem complicadas (a irmã está se divorciando, o pai adoece) e, sendo o que é – meio babaca –, toma uma série de decisões erradas que colocarão em risco a única coisa em sua existência que parece caminhar bem (o namoro com uma psicóloga). Com sua prosa bem-humorada, repleta de sacadas que sempre pegam o leitor no contrapé (“Se Deus não existe, quem puxa a ponta do próximo Kleenex?”; “O que seria do amor sem a segurança do esquecimento recíproco?”; “Por que estamos lutando se não posso ter meu Bordeaux?”), Hemon mergulha o protagonista em uma jornada que não chega a ser redentora – quem precisa disso? –, mas da qual decorre algum amadurecimento.

Aliás, um dos vários méritos do autor é transformar esse indivíduo cretino em um personagem quase cativante. As “ideias de roteiros” de Joshua, muitas engraçadíssimas, pipocam no decorrer da narrativa; seu desejo de contar histórias é palpável, assim como o campo minado afetivo que ele próprio vai armando. Circulando entre pessoas machucadas pela guerra e pelo exílio, Joshua age de forma inconsequente, mas – ao menos isso pode ser dito em seu favor – não se esquiva quando a conta chega.

E é nesse ponto que o romance cresce: quando as circunstâncias reúnem Joshua e outro náufrago da existência, por assim dizer. Alguns desdobramentos são violentos e todos são bastante dolorosos, e é irônico que algum reordenamento só se instaure por meio de uma inversão estrutural, como se a reunião familiar, ao final, não passasse de mais um trecho das Guerras Zumbi que Joshua tenta escrever. Lidando com refugiados de verdade, ele se torna uma espécie de refugiado interior, condição talvez necessária para que enfim amadureça. “É só que eu não posso voltar ao que era antes”, ele diz a um conhecido. E ouve: “Ninguém pode. Bem-vindo ao mundo”.

A lembrança dos vivos

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Em Cães de Aluguel (1992), primeiro longa-metragem de Quentin Tarantino, há uma sequência na qual o cineasta consegue envolver o espectador em uma anedota que o policial interpretado por Tim Roth conta para se infiltrar em uma gangue de criminosos. Trata-se da famosa cena cujo clímax se dá no banheiro de uma estação de trem, envolvendo o “traficante”, quatro policiais e um pastor alemão. Tudo é tão bem escrito e montado, desde os ensaios do policial com seu colega até o momento em que, de fato, visualizamos a “cena”, que, em um dado momento, o espectador inadvertida e efetivamente abraça a tensão da coisa, como se tudo aquilo estivesse acontecendo “para valer” no contexto do filme, mesmo sabendo de antemão que é uma história inventada, contada por um policial que finge ser um bandido e precisa ganhar a confiança dos bandidos de verdade¹. É uma aula de construção narrativa, e a primeira grande homenagem de Tarantino ao ato de contar histórias.

Homenagens assim estão em toda a sua filmografia, e adquirem formulações diversas. Às vezes, como em Cães de Aluguel, dizem respeito a uma anedota que, por assim dizer, ganha vida ou é usada com outras intenções (nem sempre saudáveis); em outras, remete à própria investida do cineasta na criação e no povoamento de um universo cinefílico extremamente particular. Cito alguns exemplos: a odisseia de um certo relógio de ouro em Pulp Fiction (1994); a cena em que um marginal convence outro a entrar dentro de um porta-malas em Jackie Brown (1997)crédito ao grande Elmore Leonard aqui, pois a passagem já estava no romance Ponche de Rum (Rocco), no qual o filme se baseia; a conversa junto à fogueira no segundo volume de Kill Bill (2004); o papo do dublê para ganhar uma lap dance em À Prova de Morte (2007); o uso de uma sala de cinema para trucidar o estado-maior nazista em Bastardos Inglórios (2009); a lenda de Siegfried e Brünnhilde revisitada e reimaginada em Django Livre (2012); tudo o que envolve uma suposta carta de Abraham Lincoln em Os Oito Odiados (2015); e, por fim, o uso brilhante de inserções de séries e filmes (reais e fictícios)² no decorrer de Era Uma Vez em… Hollywood (2019).

Em Tarantino, como eu disse em outra ocasião, há sempre essa afabilidade essencial: não obstante toda a violência, nós, os espectadores, estamos seguros, pois estamos do lado do Narrador. Eu me refiro, aqui, à própria forma como histórias e personagens (e histórias dentro das histórias, “verdadeiras” ou não) são distendidos e colocados à nossa disposição, com uma generosidade e um interesse que sempre me parecem genuínos, contagiantes. Mesmo quando “dribla” a História (como em Bastardos Inglórios e Era Uma Vez em… Hollywood), ou justamente quando faz isso, Tarantino está investindo na pulsão narrativa que lhe é própria, incrementando o jogo inerente ao próprio ato de narrar e, assim, reafirmando a verdade da imaginação. É constrangedor que alguns críticos, diante de um filme de ficção, venham reclamar exatamente dessa liberdade narrativa, liberdade que, em Tarantino, é convocada e renovada a cada filme, a cada cena, a cada mísero segundo de projeção: meu mundo, minhas regras.

Era Uma Vez em… Hollywood é uma elegia. Ao nos levar para essa jornada em um lugar (Hollywood, claro) e um tempo (1969) estrangulados por um crime hediondo que, de certa forma, inaugurou uma época bastante sombria, Tarantino realça o poder evocativo do “era uma vez” de seu título (que é muito mais do que uma óbvia homenagem a Sergio Leone) e propõe um jogo de espelhos solar na superfície, mas perturbador em seus efeitos: o que não acontece no filme continua lá, latente, vibrando nas sombras de um universo alternativo e distópico, isto é, do nosso universo, da vida do lado de cá da telona. A carga perturbadora do longa reside justamente nesse espaço entre o fato e a ficção, engendrado, alargado e transformado pela liberdade do criador.

Quando acompanhamos Sharon Tate (Margot Robbie) em um passeio vespertino, indo à livraria (onde compra um exemplar de Tess of the d’Urbervilles, de Thomas Hardy, para presentear Polanski – romance que ele depois adaptaria em um de seus melhores filmes, não por acaso dedicado à memória de Sharon) e depois a um cinema para se ver e ver o público no ato de vê-la, é impossível não se emocionar, pois é um desses milagres que só o cinema possibilita. Ela se sente viva ali, animada pelo próprio trabalho e pelo público que a assiste na telona, e nós a sentimos viva, ao testemunhar e tomar parte desse espelhamento formidável. E mais: nós vemos “tudo” – as várias Sharons (no filme-dentro-do-filme, a personagem e a atriz que interpreta a personagem, e no filme, Margot-Sharon, que vê a si mesma, as outras duas e o público vendo ela própria e as outras duas)³, a plateia no filme e, por fim, a plateia do filme, da qual fazemos parte.

Dessa forma, Tarantino coloca a imaginação a serviço da vida, demonstrando pela enésima vez que seus constantes jogos de citações e espelhamentos não têm nada de estéreis. Ao mergulhar de novo e de novo em tal universo cinefílico, ele não “foge” da realidade, mas sublinha o seu caráter trágico e também a sua beleza essencial. Cocteau teria dito4 certa vez que “o cinema filma a morte no seu trabalho, é a única arte que mostra a morte comendo os atores, que imortais nos personagens são mais fortes em nossa memória que a lembrança dos vivos”. Em Era Uma Vez em… Hollywood, essa “lembrança dos vivos” brilha justamente naquela que, brutalmente assassinada, não está mais aqui, mas está , vivíssima em nossa lembrança, nos filmes que fez e, claro, no filme que agora a resgata para nós. Como disse no outro parágrafo, é o tipo de milagre que só o cinema e Tarantino proporcionam, e eu não consigo pensar em uma homenagem mais digna e bela aos que partiram, ao próprio cinema e à arte superior do contador de histórias.

Em meio a tudo isso, os verdadeiros protagonistas do longa (um ator em dificuldades e seu fiel dublê e faz-tudo) também ajudam a constituir a verdade da coisa pela outra via — são fictícios, mas, não por acaso, vizinhos dos personagens reais. De certo modo, o ator interpretado por Leonardo DiCaprio e o dublê vivido por Brad Pitt funcionam como os guardiões daquela verdade da imaginação: inseridos em um contexto “real”, salvaguardam a liberdade do criador por meio de sua intervenção providencialíssima.

A exemplo do que acontece no clímax de Bastardos Inglórios, Tarantino reforça a distinção entre os universos real e fictício (e, reitero, só idiotas exigem uma “fidelidade” que não cabe necessariamente à ficção) para sublinhar tanto um quanto o outro. Eles não se anulam e tampouco se “desmentem”, mas são complementares. E, claro, esse tipo de escolha não diz respeito a um falseamento, mas é o símbolo maior daquela liberdade imaginativa que o cineasta exibiu desde o momento em que colocou um bando de sujeitos sentados a uma mesa, jogando conversa fora, pouco antes de nos mostrar a que vieram. As joias daquela maleta roubada pelos Cães reluzem até hoje nesse universo alternativo que vez por outra visitamos e que, generoso, Tarantino não se cansa de expandir, celebrando a cada novo filme os atos de criar e de existir, de lembrar e de (re)imaginar.

São Paulo, agosto de 2019.

……

¹ Se levarmos a coisa além, a brincadeira fica ainda mais divertida: temos um ator (Tim Roth) interpretando um policial (Freddy) que, por sua vez, interpreta um bandido (o futuro Mr. Orange) que conta uma história que, talvez, tenha acontecido com outra pessoa.

² Também é brilhante a forma como Tarantino nos lança dentro das histórias-dentro-das-histórias aqui, permitindo-se todo o tempo do mundo para desenvolvê-las como bem entende — e revelando a engrenagem da coisa, quando, por exemplo, um ator esquece suas falas e a gravação da cena-dentro-da-cena é interrompida, e nos vemos de volta ao primeiro plano ficcional (por assim dizer).

³ Não por acaso, é um aprofundamento do jogo proposto na sequência da anedota em Cães de Aluguel, conforme sublinhei na primeira nota: ator/atriz, personagens e personagens interpretados pelos personagens, seja na anedota, seja em um filme-dentro-do-filme.

A fala é citada por Glauber Rocha no ensaio “Glauber Fellini” (ver Fellini Visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 1994). Não sei onde e quando Cocteau teria dito isso.

……

Uma versão deste texto (sem as notas) foi publicada pelo caderno Pensar, do jornal O Estado de Minas. Leia AQUI ou AQUI.

Privação

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::: Abaixo do Paraíso é sobre voltar para casa, como escrevi AQUI. Ou, melhor dizendo, sobre até onde é possível voltar para casa, e sobre os desvios (em todos os sentidos — morais, sexuais, políticos, da memória) que podem ensejar um retorno inadvertido e serem ensejados por ele. A verdade é que Cristiano, esse Odisseu sem Troia, naufraga nos arredores de Ítaca e só nada para lá porque não tem outro lugar para ir, porque não tem escolha. Sua descida ao Hades é surda; não há Anticleia ou Tirésias à vista, não há ninguém. No fim das contas, Ítaca não é o ponto final, mas apenas outro desvio.

::: Tenho pensado nessas coisas porque um dos projetos que acalento nos meus rascunhos é uma espécie de anti-Abaixo do Paraíso, a história de outro fugitivo, de outro náufrago, mas não outro Cristiano e, sim, um indivíduo que compreende esse desvio essencial e o aceita. Pensem no Frank Chambers de O destino bate à sua porta, de James M. Cain, mas em um Chambers que, em vez de optar pela efetivação ou atualização do desvio homicida (ou ser engolfado por ele, como Cristiano), decide esperar.

::: Penso, também, na leitura de Agamben do conceito de potência em Aristóteles (“uma tentativa de compreender o significado do sintagma ‘eu posso'”) ou, mais precisamente, em sua reflexão sobre como isso “assume a forma de uma privação (…), isto é, de algo que atesta a presença do que falta ao ato”, pois ter “uma potência, ter uma faculdade significa: ter uma privação”, e a potência é “definida essencialmente pela possibilidade de seu não-exercício”.

::: Se “o arquiteto é potente na medida em que pode não construir”, o mesmo pode ser dito de um assassino — óbvio que, no Brasil, república miliciana por excelência, a empresa homicida é um ofício como qualquer outro, sancionado pelo Estado e alimentado pela iniciativa privada. Mas, então, o livro seria sobre não matar? Seria sobre essa privação? Sobre a tensão inerente a ela em uma determinada circunstância? De certo modo, ou até certo ponto. E, enquanto tal, seria violentíssimo, até porque a privação não teria fundo “moral”, isto é, o personagem não hesita, não “repensa”, não se tortura, não recua diante da terrível possibilidade que se apresenta. A alma não grita quando está morta, e assim o livro tentaria fazer jus a esse espécime muito particular que é o morto-vivo brasileiro.

Noite eterna

Texto publicado hoje n’O Popular.

Borgo

“Caracas parecia acolhedora e ao mesmo tempo terrível”, escreve Karina Sainz Borgo em Noite em Caracas, “o ninho aquecido de um animal que me olhava com olhos de serpente raivosa em meio à escuridão.” Romance de estreia da venezuelana nascida em 1982, lançado no Brasil pela Intrínseca (com tradução de Livia Deorsola), o livro é um passeio infernal por um país arruinado, em que viver “tinha se transformado em sair para caçar e voltar vivo” – desgraçada por uma ditadura sanguinária, a Venezuela não é uma nação, mas “uma trituradora”, um “país sem dentes que degola galinhas”.

Narrado por Adelaida, Noite em Caracas começa com um enterro (da mãe da protagonista) e termina com uma espécie de renascimento. A única forma de escapar com vida da trituradora é se escondendo e, se e quando possível, fugindo. Nesse sentido, o romance enseja duas descrições: da violação e assassinato de um país pelas mãos de “patriotas”; e da fuga empreendida pela narradora, que mergulha no próprio passado – e no passado de uma vizinha – para não ser despedaçada pela própria nação.

Borgo investe nessa fuga como se a própria História lhe apontasse uma arma e exigisse fidedignidade. Nada mais justo, até por respeito aos inúmeros degolados pela galinha sem dentes, e nada mais doloroso, pois o ex-país ali retratado é contínua e cinicamente estuprado por mentiras e transformado em uma arena de psicopatas e ladrões, uma “fossa séptica” atulhada de corpos desmembrados. Concisa e agressiva, a narrativa avança conforme o desespero da protagonista, que não enxerga um limite para tantas desgraças, e as únicas saídas possíveis são individuais, jamais coletivas.

A jornada de Adelaida é solitária, mas, por alguns dias, ela ganha a companhia de Santiago. Irmão de uma amiga dos tempos da faculdade – Adelaida é formada em Letras, isso em um país no qual os indivíduos se esmeram em abrir a garganta dos desafetos e puxar a língua para fora, deixando-a dependurada feito uma gravata –, Santiago está em fuga. Preso e torturado, viu-se obrigado a compor as hostes governistas em sua batalha campal contra os dissidentes. Em meio à confusão, refugia-se no prédio de Adelaida, a quem narra os horrores que sofreu nas mãos dos “Bastardos da Pátria”. A visita de Santiago termina de forma abrupta, e a impressão é que o infeliz só passa pela narrativa (depois conheceremos seu destino) para deixar ali seu testemunho antes de ser novamente engolido pela noite.

Um exemplo da ruína venezuelana é o edifício Helicoide, citado de passagem por Santiago. A tradutora esclarece: “Projetado nos anos 1950, (…) é um dos símbolos da arquitetura modernista venezuelana”, mas foi transformado em uma prisão “dirigida pelo Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional”. Que um orgulho arquitetônico se torne um moedor de carne humana diz muito do estado terminal da nação.

No Brasil, a Venezuela sempre foi usada como elemento retórico. Boçais à esquerda ainda encontram razões para defender seu regime ditatorial; asnos à direita ameaçam os ignorantes com a “possibilidade” de o Brasil ter um destino similar se cair na mão dos “comunistas”. Mas, ironicamente, dadas as intervenções perversas do nosso atual presidente, é um governo de extrema direita que mais aproxima o Brasil do desgraçamento antidemocrático venezuelano. Quem diria, não é mesmo?

No cativeiro

Resenha publicada em 22.06.2013 pelo Estadão.

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No dia 17 de dezembro de 1996, a embaixada japonesa em Lima foi invadida por guerrilheiros do Movimento Revolucionário Túpac Amaru. Acontecia ali uma recepção oficial pelo aniversário do imperador Akihito. Centenas de pessoas foram feitas reféns e parte delas assim permaneceu por 126 dias, quando militares peruanos invadiram a casa, mataram todos os guerrilheiros e libertaram os 72 reféns que restavam. Esses eventos serviram de inspiração para o belo e estranho Bel Canto, romance da norte-americana Ann Patchett lançado nos EUA em 2001. Vencedor do Orange Prize, o livro foi publicado no Brasil pela Intrínseca, com tradução de Maria Carmelita Dias.

No livro, o país sul-americano não é identificado, a casa onde a história se passa é a do vice-presidente e a festa celebra o aniversário de um industrial japonês, o Sr. Hosokawa. Este só aceitou atravessar o globo para a comemoração porque é um aficionado por ópera e os anfitriões, cientes disso, convidaram uma soprano norte-americana, Roxane Coss, para cantar na festa. Espera-se que o Sr. Hosokawa construa uma fábrica no país. O irônico é que ele não tem interesse em fazer isso, e só sustenta tal possibilidade porque não perderia a chance de assistir a uma apresentação tão exclusiva da soprano.

Quanto aos guerrilheiros, sua intenção original era sequestrar o presidente e dar o fora dali o mais rápido possível. Ocorre que o mandatário da nação decidira, na última hora, não comparecer, pois não suportaria perder um capítulo de sua telenovela favorita. Frustrados e sitiados, eles não veem alternativa senão partir para um plano B que sequer fora esboçado: permanecer na casa com os reféns e desfiar suas exigências. Estão, portanto, amarrados a uma situação precária e que tende se resolver da pior maneira possível.

Exceto por eventuais flashbacks, Patchett mantém o leitor dentro do cativeiro. É uma decisão tão feliz quanto difícil de se sustentar ao longo de quase trezentas páginas, tanto que aqui e ali a história parece patinhar. Contudo, não é difícil perceber que essa lentidão narrativa exprime na verdade uma segurança na condução do romance. A modorra do ambiente contamina tudo e também justifica certos acontecimentos que, vistos de outro modo, soariam absurdos. Aos poucos, aquele mundo fechado ganha uma dinâmica tão particular que até mesmo pensar no que há lá fora adquire certa estranheza. Por exemplo, a paixão entre Gen, intérprete do Sr. Hosokawa, e uma das sequestradoras, no modo como é resolvida dentro da história, jamais soa inverossímil. Há tempo para parar, observar, sentir. Os reféns não têm, obviamente, para onde ir. Os sequestradores também não. E nós, leitores, ficamos “presos” ali com eles, num lugar em que “não havia algo parecido com estar sozinho”.

Nessas circunstâncias, a que poderíamos nos referir como um caso extremo de Síndrome de Estocolmo, o que mais se destaca, no entanto, é o papel desempenhado pela arte. O Sr. Hosokawa sequer estaria presente (e a festa não teria lugar) não fosse seu amor pela ópera em geral e por aquela soprano em particular – amor que, com o passar do tempo, ganhará uma ressonância ainda maior (ou mais íntima). E, mesmo ali, não só Roxane continua a cantar como muitos insistem em se apaixonar, seja por outrem, seja por algo – a culinária, o piano, a telenovela, o xadrez. Há suspensão, mas não letargia. Eles se sentem integrados, próximos: “Na verdade, o tempo tinha parado. Ele sempre estivera aqui e sempre estaria aqui”.

E é nesse espírito de suspensão que lemos próximos do final: “Foi apenas um instante, mas naquele momento tudo o que se sabia sobre o mundo fora esquecido e reaprendido”. Esta frase ressoa muito da beleza estrangulada do livro, até porque, a despeito de sua luminosidade, ela irrompe num contexto brutal. A violência tem esse poder horrendamente delimitador ou mesmo anulador, todos sabemos. Mas, entre o baque inicial e o desfecho do sequestro, e com a placidez que nos é oferecida no epílogo, Bel Canto carrega consigo o deslumbramento que pode surgir de forma inesperada nas situações mais terríveis e improváveis.

Linhas de fuga

Ensaio publicado na edição de 08.2019 do Rascunho.

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Para Erwin, imediato do Rachel.

 

Uma leitura da segunda parte dos Diálogos de Gilles Deleuze com Claire Parnet talvez se beneficie de uma visita a Moby Dick, de Herman Melville, autor citado algumas vezes no decorrer do texto, tendo já em mente o que é exposto logo no início pelo francês:

Partir, se evadir, é traçar uma linha. O objeto mais elevado da literatura, segundo Lawrence: “Partir, partir, se evadir… atravessar o horizonte, penetrar em outra vida… É assim que Melville se encontra no meio do oceano Pacífico, ele passou, realmente, a linha do horizonte”. A linha de fuga é uma desterritorialização.

A edição de que disponho dos Diálogos foi lançada pela Escuta em 1998, com tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. A obra-prima de Melville, por sua vez, chegou a nós em 2008 pela Cosac Naify, traduzida por Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza — tradução relançada em 1º de agosto de 2019 (quando se completaram duzentos anos do nascimento de Melville) pela Editora 34.

1.

Moby Dick é um romance estranhíssimo, aparentemente desconjuntado; a ação é interrompida com frequência para que Ishmael, o narrador e protagonista, digressione sobre baleias, apetrechos náuticos e inúmeras outras coisas. Em momentos, o livro parece claudicar. Flutua à nossa frente, a perder de vista, salga os nossos olhos, faz com que nos sintamos marejados. Personagens aparecem e desaparecem, uma onda narrativa é encoberta pela seguinte e o próprio Ishmael some para só ressurgir aqui e ali. E, claro, ele desaparece sob Ahab, presença tão enorme que pensamos ser impossível que a baleia branca tivesse conseguido arrancar-lhe uma perna e a sanidade.

Dezenas de páginas antes de efetivamente entrar em cena, o nome e a sombra de Ahab já estão presentes. Por exemplo, numa fala de Peleg:

(…) É um homem grande, não é religioso, parece um deus, o Capitão Ahab; não fala muito, mas quando fala é melhor ouvi-lo. Presta atenção: Ahab é uma pessoa fora do comum; Ahab esteve em universidades e também entre os canibais; está acostumado às maravilhas mais profundas do que o próprio mar; fixou sua lança em adversários mais estranhos e poderosos do que baleias. Sua lança! A mais certeira e afiada de todas as lanças de nossa ilha! Oh! Ele não é o capitão Bildad; não! E não é o capitão Peleg; ele é Ahab, meu rapaz, o Ahab da antiguidade, que, bem o sabes, era um rei coroado!

Quando Ahab afinal irrompe no tombadilho, tem “o aspecto de um homem retirado da fogueira, depois de o fogo devastar todos os membros, sem os haver consumido, nem eliminado uma só partícula de sua compacta e velha força”. Em seu olhar, há “uma infinidade de firmeza inabalável, uma vontade determinada e indomável na dedicação fixa, intrépida e atrevida”. No que diz respeito às “profundezas de Ahab, toda revelação” participa “mais de uma obscuridade significativa do que de uma claridade explicativa”, pois nem “baleia branca, nem homem, nem demônio algum pode sequer roçar o velho Ahab em seu ser real e inacessível”. A exemplo da baleia, não? Duas sombras, portanto: uma negra, outra branca.

E quando Ahab inflama a tripulação, é como se todos e também nós, leitores, mordêssemos um pedaço de sua carne doente e enlouquecêssemos com e por ele em sua caçada insana, suicida. A ruptura é irrestrita, irremediável. Um deus maluco e desgraçado que nos aponta o apocalipse, que nos leva diretamente para lá. Afundamos com ele, ao mesmo tempo aterrorizados e em estado de graça; afundamos com Ahab e seu leviatã branco, no meio do nada.

Primeiro somos engolidos pelo Pequod, a Grande Nau Americana: mestiça, uma colcha de retalhos humanos, engajada na caçada impossível. Depois somos engolfados pelo capitão monomaníaco, incendiado. E, ao final, regressamos, apesar de Moby Dick, que não deixa destroços, que não deixa praticamente nada, ou que deixa apenas um caixão, o caixão de Queequeg transformado em boia de salvamento, e Ishmael flutuando com ele. Ele é resgatado pelo Rachel, o navio à procura dos seus filhos e que termina por resgatar um órfão — o próprio Ishmael. Órfão de quem? De Ahab? Da baleia branca? De ambos? Seja de quem for, o órfão Ishmael atravessou o horizonte, penetrou em outra vida, e escapou sozinho para nos contar, para dar testemunho dessa fuga.

2.

“Só se descobre mundos através de uma longa fuga quebrada”, afirma Deleuze nos Diálogos, asseverando-nos de que a literatura anglo-americana “apresenta continuamente rupturas, personagens que criam sua linha de fuga, que criam por linha de fuga”. E fuga, aqui, não é um catapultar-se para fora do mundo, não se trata de uma entrega passiva, mas de algo ativo, “traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia”. Diversamente do que ocorre em outras literaturas, haveria um desbravamento geográfico intrínseco às letras americanas, uma transposição de fronteiras, um devir como que lançado para fora, no espaço.

Deleuze distingue entre fuga e viagem, uma vez que esta pode muito bem ser, por exemplo, uma viagem “à francesa”, de teor histórico e cultural, pois os “franceses são humanos demais, preocupados demais com o futuro e com o passado”, passam todo o tempo “recapitulando” e, ao viajar, contentam-se “em transportar seu ‘eu’”. E é possível que uma viagem ocorra sem que se saia de onde está, ou seja, interiormente. Em outras palavras, a viagem prescinde da ruptura, é organizada de tal forma a evitá-la e, enquanto tal, é estranha à fuga; a fuga, por seu turno, na e pela linha que traça, é desterritorializante.

Em Moby Dick, Ahab e seus homens, uma vez entregues à caçada final, à linha de fuga, “cercados pela escuridão da noite”, parecendo “os últimos homens de um mundo submerso”, não terão como retornar (exceto por Ishmael: testemunha, narrador). Assim, quando Ahab se desfaz do quadrante, “brinquedo inútil”, maldizendo “todas as coisas que fazem levantar os olhos dos homens para aquele céu cujo fulgor incandescente apenas o fere, como agora estes velhos olhos são feridos por tua luz, ó, sol!”, a ele se refere Starbuck: “Velho oceânico! De toda esta tua vida irascível, o que sobrará de ti além de um punhado de cinzas?”.

Para Deleuze, a linha de fuga, tão marcante na literatura anglo-americana, contrapõe-se à “procura de uma primeira certeza como de um ponto de origem, sempre o ponto firme”, própria dos franceses. Estes pensariam demais “em termos de árvore: a árvore do saber, os pontos de arborescência, o alfa e o ômega”, em vez de se orientar por algo como a grama, que “brota em meio às coisas”, “pelo meio”, tendo, assim, uma “linha de fuga, e não de enraizamento”.

Ao pensarmos na literatura anglo-americana, o que vêm à mente são os deslocamentos, a sucessão imensurável de linhas de fuga, o devir; os personagens evadindo-se rumo ao Oeste; fronteiras a alargar, redesenhar, transpor; o descentramento constante, tatear que jamais cessa, delirante e demoníaco, pois sai dos eixos e, enquanto “os deuses têm atributos, propriedades e funções fixas, territórios e códigos”, ou seja, “têm a ver com os eixos, com os limites e com os cadastros”, os demônios saltam “os intervalos, e de um intervalo a outro”.

A linha de fuga implica traição de tudo aquilo que intenta nos segurar, de tudo que quer nos reter, de tal modo que o traidor é “o personagem essencial do romance, o herói”, aquele que trai o “mundo das significações dominantes”, trai a “ordem estabelecida”. E a traição é melhor explicitada pela escolha do objeto:

Do que o capitão Ahab é culpado, em Melville? De ter escolhido Moby Dick, a baleia branca, em vez de obedecer à lei de grupo dos pescadores, que diz que qualquer baleia é boa para ser pescada. É esse o elemento demoníaco de Ahab, sua traição, sua relação com Leviatã, essa escolha de objeto que o engaja em um devir-baleia.

Há os devires contidos na escritura quando ela traça linhas de fuga, traindo as palavras de ordem estabelecidas para se conjugar com o outro, isto é, provocar “um encontro entre dois reinos, um curto-circuito, uma captura de código onde cada um se desterritorializa”. São muitos os devires possíveis, e eles dizem respeito a um “encontro onde cada um empurra o outro, o leva em sua linha de fuga, em uma desterritorialização conjugada”, de tal modo que a “escritura se conjuga sempre com outra coisa que é o seu próprio devir”.

O fluxo característico da literatura anglo-americana corresponderia, assim, àquele descentramento não mais apenas geográfico, mas também da própria escritura, em si, por si e até o outro:

Escrever não tem outra função: ser um fluxo que se conjuga com outros fluxos – todos os devires minoritários do mundo. Um fluxo é algo intensivo, instantâneo e mutante, entre uma criação e uma destruição. Somente quando um fluxo é desterritorializado ele consegue fazer sua conjugação com outros fluxos, que o desterritorializam por sua vez e vice-versa.

3.

Um agenciamento é descrito por Deleuze como “a unidade real mínima”, aquilo que “produz os enunciados”. O sujeito dessa enunciação é o autor (não o escritor, que “inventa agenciamentos a partir de agenciamentos que o inventaram”). O agenciamento é “sempre coletivo”, pois coloca em jogo, “em nós e fora de nós, populações, multiplicidades, territórios, devires, afetos, acontecimentos”, é o elemento capaz de fazer com que os elementos de um conjunto heterogêneo “conspirem”, cofuncionem, por meio dessa simbiose, dessa “simpatia” que são “corpos que se amam ou se odeiam, e a cada vez populações em jogo, nesses corpos ou sobre esses corpos”, os quais podem ser “físicos, biológicos, psíquicos, sociais, verbais, são sempre corpos ou corpus”.

O autor, como sujeito da enunciação, é, antes de tudo, um espírito: ora ele se identifica com seus personagens, ou faz com que nos identifiquemos com eles, ou com a ideia da qual são portadores); ora (…) introduz uma distância que lhe permite e nos permite observar, criticar, prolongar.

Para além disso, o autor necessita “falar com, escrever com”, engendrando uma conspiração, “um choque de amor ou ódio”. Daí que agenciar é “estar no meio, sobre a linha de encontro de um mundo interior e de um mundo exterior”.

Deleuze traça um paralelo entre o romance anglo-americano e o empirismo. Em Hume (parafraseio), temos as ideias, depois as relações entre elas e daí as circunstâncias, capazes de fazer com que as relações variem. Não há, portanto, nenhum grande princípio primeiro, cuja abstração chega a ser sufocante: “o primeiro princípio é sempre uma máscara (…), não existe; as coisas só começam a viver e a se animar” nos níveis seguintes, dos princípios subsequentes; as “coisas só começam a viver pelo meio”. No lugar do opressivo problema do ser e a questão do princípio que o assombra, as conjunções, o “E” no lugar do “É”. Necessita-se “fazer com que o encontro com as relações penetre e corrompa tudo, mine o ser, faça-o vacilar”. Sendo a “estrada de todas as relações”, o “E” oferece outro rumo a elas, fazendo com que fujam os conjuntos, “uns e outros, sobre a linha de fuga que ele cria ativamente”. Ocorre, assim, aquele cofuncionamento (pensamos com “E”, não com ou por “É”), a conspiração, pois a multiplicidade, em vez de residir (ser encalacrada) nos termos, está na conjunção: há “uma sobriedade, uma pobreza e uma ascese fundamentais no E”.

Não é por acaso que um britânico tenha engendrado tal pensamento, pois a língua inglesa sempre foi trabalhada pelas “línguas minoritárias” que a constituem e são, ao mesmo tempo, “máquinas de guerra” contra ela (anglo-gaélico, anglo-irlandês, assim como, nos EUA, temos o inglês falado pelos negros, pelos hispânicos etc.), uma língua móvel, fugidia, eventualmente estrangeira até para quem a utiliza. Essa falta de fundações implica correr pela superfície continuamente quebrada para que nela se imiscua o “E” que “fará a língua correr, e fará de nós esse estrangeiro em nossa língua enquanto é a nossa”.

É dentro desse espírito relacional, por assim dizer, que Deleuze também se refere a Espinoza: a “alma e o corpo, ninguém jamais teve um sentimento tão original da conjunção ‘e’”. Ou seja, cada indivíduo seria fundamentalmente constituído por relações entre as partes que o formam, sem que haja a preponderância de uma parte sobre a outra. A isso Deleuze chama “agenciamento-Espinoza: alma e corpo, relações, encontros, poder de ser afetado, afetos que preenchem esse poder”, daí Espinoza ser descrito como “o homem dos encontros e do devir (…), sempre no meio, sempre em fuga”. A alma, portanto, não está sobre, não está acima, mas com o corpo, também “na estrada, exposta a todos os contatos”, a todos os “encontros”.

Os estoicos também teriam encontrado, segundo Deleuze, um modo de destituir o “É”. No entender deles, “também as qualidades são corpos”, bem como as almas e até mesmo “as ações e as paixões são elas próprias corpos”, de tal modo que tudo “é mistura de corpo, os corpos se penetram, se forçam, se envenenam, se imiscuem, se retiram, se reforçam ou se destroem”. A linha de separação traçada pelos estoicos não está entre inteligível e sensível, alma e corpo, mas “entre a profundidade física e a superfície metafísica”, coisas e acontecimentos:

entre os estados de coisas ou as misturas, as causas, almas e corpos, ações e paixões, qualidades e substâncias, por um lado, e, por outro, os acontecimentos ou Efeitos incorporais impassíveis, inqualificáveis, infinitos dessas misturas que se atribuem a esses estados de coisas que se exprimem nas proposições.

O atributo não é mais uma qualidade que se relaciona com o sujeito por meio do “É”, mas, sim, “um verbo qualquer no infinitivo que sai de um estado de coisas e o sobrevoa” – e “verbos infinitivos são devires ilimitados” que prescindem de um sujeito e “remetem apenas a um ‘Ele’ do acontecimento (chove)”, atribuídos a estados de coisas (misturas, coletivos, agenciamentos). Daí que “os verdadeiros romances operam com indefinidos que não são indeterminados”, havendo uma “estrita complementaridade” entre “os estados de coisas físicas em profundidade e os acontecimentos metafísicos de superfície”. O acontecimento é justamente o produto dos choques entre os corpos, é o que se obtém quando eles se penetram, envenenam, reforçam, imiscuem, destroem etc. Tanto morrer quanto amar, por exemplo, são engendrados em nossos corpos, mas também chegam de Fora, estão “sobre essa superfície incorporal” que os faz advir, de tal maneira que, “agentes ou pacientes, quando agimos ou sofremos, resta-nos, sempre, sermos dignos do que nos acontece”, e é nisto que recai a moral estoica: “não ser inferior ao acontecimento, tornar-se o filho de seus próprios acontecimentos (…), extrair alguma coisa alegre e apaixonante no que acontece”, seja um clarão, seja um encontro, seja “um acontecimento, uma velocidade, um devir”.

Em vez de fazer um drama ou uma história, fazer um acontecimento, mesmo que pequeno, menor, ínfimo, delicado, pois as Entidades não são conceitos, são acontecimentos.

O que é um acontecimento? É uma multiplicidade que comporta muitos termos heterogêneos, e que estabelece ligações, relações entre eles, através das épocas, dos sexos, dos reinos – naturezas diferentes. Por isso a única unidade do agenciamento é o cofuncionamento: é uma simbiose, uma “simpatia”.

4.

Voltando a Moby Dick, é óbvio que tudo se movimenta rumo ao acontecimento final – o encontro derradeiro entre Ahab e a baleia. Em sua caçada, o homem “nunca pensa; apenas sente, sente, sente; isso já é bastante tormentoso para um mortal!”. No entender do capitão, “pensar é audácia” tamanha que apenas “Deus tem esse direito e privilégio”, pois pensar “é, ou deveria ser, coisa serena e tranquila; e os nossos pobres corações palpitam e os nossos pobres cérebros pulsam demais para isso”. Lendo isso, pressinto o que Deleuze afirma nos Diálogos: “As verdadeiras Entidades são acontecimentos, não conceitos”.

No terceiro dia da caçada final, um dos marujos alerta Ahab: “Vê! Moby Dick não te procura. És tu, na tua loucura, é tu, que o procuras”. Ao insistir na procura, Ahab acabará arrastado com os outros, quase todos, para as profundezas, e será o fim. Eles afundam no oceano para se tornar outra coisa, e o devir é essa “longa fuga quebrada”, a própria linha que acompanhamos, descrita sobre ela, que se estica para iluminar o que já não está ali, o que já afundou, desapareceu, o que já cessou.

Afirma Deleuze ao final de sua reflexão: “Nem todo devir passa pela escritura, mas tudo o que se torna é objeto de escritura (…). Tudo o que se torna é uma pura linha que cessa de representar o que quer que seja”. Em Moby Dick, vemos Ishmael à deriva, mantido “à tona pelo caixão, por quase um dia e uma noite inteiros”, flutuando sobre o “calmo e fúnebre oceano”, até ser resgatado. Ishmael estica a linha para que possamos também percorrê-la. E nisso, também, reside a grandeza de Melville e a beleza da grande literatura: cada vez que percorremos linha é um novo acontecimento.

……

Dispersões

Se a velha epistemologia revelou-se infundada,
e a ainda mais antiga escatologia é a única alternativa viável,
então a visão do fim dos tempos se torna o lugar
onde o pensamento começa.
— Inchausti.

Klee

::: Em um momento de excepcionalidade histórica como esse pelo qual passamos (não é sempre que um país é governado por um saco de colostomia), é comum ouvirmos expressões como “estar do lado certo da História” e afins. O sequestro historicista é uma prática comum em qualquer época, a bem da verdade; o que temos de novo talvez seja a simultaneidade com que os grupos mais diversos tentam criar e/ou se apropriar de fatos e factoides, desenvolvendo e aprimorando isso que se convencionou chamar de “narrativas”. Enquanto isso, a História — assim tornada história(s) — morre de inanição nos desvãos do(s) discurso(s), e a única certeza que nos resta é a da corrupção factual, linguageira e conceitual. Se, como proclama o clichê, a realidade ganha fácil da ficção, o que pensar e fazer quando tudo o que há são ficções e mais ficções? Não há “vitória” possível nesse cenário. Todos perdem, cedo ou tarde.

::: Realidade, ficção: restamos à deriva em um mundo de falsas equivalências, como se uma coisa devesse algo à outra, e como se nós devêssemos algo à realidade quando sequer sabemos onde ela se encontra. Fixamo-nos, então, no surto corruptor, nas filigranas das “narrativas”, e a trapaça relativista atinge o seu ápice.

::: Até 2016, nessa enorme cama de Procusto que é o Brasil, cortavam as nossas pernas; desde então, tratam de arrancar nossas cabeças.

::: Por algum tempo, pensei no bolsonarismo como uma forma de neointegralismo. Passados tantos (e, ao mesmo tempo, tão poucos) meses de (anti)governo, parece-me que até essa distinção não é mais cabível. Não custa lembrar que o integralismo sempre foi encarado como um epifenômeno do fascismo e, enquanto tal, nada mais seria do uma caricatura, uma camisa negra desbotada. Talvez o bolsonarismo seja não um neointegralismo, mas uma corrupção do integralismo, um rasgo naquela já desbotada camisa negra que, dependurada no varal, esfarela sob o sol. Por outro lado, a pobreza dessa contra-ideologia faz de tudo para escapar a qualquer categorização mais ou menos consequente; em outras palavras, ela não é a expressão do conteúdo de um projeto, mas, sim, da vaziez essencial desse mesmo projeto. O bolsonarismo sobrevive na medida em que elude qualquer projeto ou qualquer possibilidade de um projeto que vá além da boçalidade criminosa.

::: Em um cenário objetiva e subjetivamente tão pobre, a ficção é mais importante do que nunca. Signo de uma crise, o romance é essencialmente incapaz de “dar conta da realidade”, e aí reside a sua beleza: nessa insuficiência essencial. É assim desde sempre, e por isso ele continua sendo uma das melhores ferramentas para, mordendo, arrancar pedaços da realidade, mastigá-los e cuspi-los ou digeri-los (fica a critério do autor e/ou do leitor). Assim, muito me surpreende que a estupefação em face do andamento (ou descarrilamento) das coisas, em vez de alimentar a imaginação, tenha o efeito contrário em muitos escritores contemporâneos. A infantilização discursiva, o recuo ao próprio umbigo (para não dizer outra coisa), o empobrecimento das formas com as quais lidamos com o material narrativo oferecido pelo mundo — tudo isso são sintomas da covardia intelectual que, em muitos casos, ignora aquela crise, intrínseca e extrínseca à forma romanesca, a aporia original que dá sentido ao mergulho nesse ethos específico e fundamentalmente incompleto de expressão e criação. A julgar pela mediocridade, pelo tédio e pelas limitações “autoficcionais” com as quais nos deparamos por aí, talvez tivesse sido melhor que Aharon Appelfeld e Paul Celan tivessem morrido na Shoah e Soljenítsin silenciasse depois de se ver livre (ma non troppo) do gulag. Afinal, dizem e repetem aqueles que se retraem, a literatura não dá conta da vida, a poesia não é mais possível depois de [insira a desgraça de sua preferência], tudo é impostura, tudo leva ao silêncio ou, pior, à derrisão.

::: É sempre bom lembrar que, no gueto e diante da perspectiva do extermínio, Celan ocupava seu tempo traduzindo sonetos de Shakespeare. Posso estar enganado, mas é sempre mais saudável apostar na beleza e na imaginação, sobretudo quando o mundo ao redor ruge de forma ameaçadora, pronto para nos despedaçar. Nosso esforço derradeiro, e todo e qualquer esforço deve ser sempre encarado como o derradeiro (até porque nunca se sabe, não é mesmo?), nosso esforço derradeiro diz muito sobre cada um de nós.

::: Em um momento de excepcionalidade histórica, ou de boçalidade anti-histórica, em que cada mísero esforço parece ter o peso (ou a leveza) do último suspiro, parece-me imprescindível reinvestir a ficção de sua carga de verdade, não mais confundir invenção com impostura, não mais sequestrar a História, mas se permitir ser sequestrado por ela, não mais exigir do romance um status que, a rigor, ele jamais se arrogou (exceto pela boca dos desatentos, ingênuos ou imbecis), atentar para a sua insuficiência essencial, sublinhar justamente a sua perpétua incapacidade de “dar conta do mundo” — obras como a Comédia de Balzac, a Educação de Flaubert, o Ulysses de Joyce e os Reconhecimentos de Gaddis são o que são justamente porque têm plena consciência de tudo o que lhes falta, da ausência primeira e incontornável que lhes rasga, de sua incompletude face à “realidade”, do fracasso que diz respeito não apenas à forma na qual investem e que reinventam, mas, também, à espécie que teima em investir e se reinventar por meio de tais e tais coisas, em um esforço derradeiro, sempre em um esforço derradeiro.

A prece de Enriquez

Texto publicado hoje n’O Popular.

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Elemento recorrente na chamada literatura fantástica é o estabelecimento de alguma mitologia. Ao recriar o mundo no qual nascemos, vivemos e morremos, o(a) autor(a) costuma investir em um universo com entidades que escapam à nossa realidade imediata. São universos que muitas vezes se confundem, sustentam ou até mesmo suplantam o nosso, e boa parte da graça reside na qualidade desses deslocamentos e imaginações. Histórias de terror, por exemplo, são tão mais eficientes na medida em que se aproximam de coisas que reconhecemos como próximas. Por exemplo: O Iluminado, de Stephen King, aterroriza menos pelo seu hotel mal-assombrado e mais pelo horror da relação paterno-filial que desenvolve tão bem. A escritora argentina Mariana Enriquez (1973) sabe muito bem dessas coisas, como demonstrou nos contos d’As coisas que perdemos no fogo (tradução de José Geraldo Couto) e no romance Este é o mar (tradução de Elisa Menezes), ambos lançados no Brasil pela Intrínseca.

Ao extrapolar os célebres dizeres de Hamlet para Horácio (de que há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia, como podemos conferir ao final do primeiro ato da célebre peça de Shakespeare), Enriquez chama a nossa atenção para aspectos cotidianos, mas obscuros, da existência, para os fantasmas – reais ou metafóricos – que se “amontoam nos beirais”, como diria Thomas Pynchon. Em vários sentidos, sobretudo para quem vive nas áreas mais depauperadas do mundo, das cidades ou da própria cabeça, o terror é um dado comum, até mesmo palpável. Ou, como a autora disse recentemente ao participar de uma mesa na FLIP, “a vida é um conto de terror”.

No entanto, Este é o mar não é um livro de terror, mas uma narrativa que pressupõe a existência de um mundo além (ou aquém) do nosso, no qual entidades sobrenaturais trabalham para suscitar e manter a devoção dos jovens por estrelas do rock n’roll. Elas criam e se alimentam do fanatismo adolescente, assim como dão à luz (ou às sombras) as chamadas “Lendas” – personagens como Elvis, Jim Morrison e Kurt Cobain. A protagonista do romance se chama Helena. Depois de uma tarefa bem-sucedida, instando uma mortal a um ato de desespero, ela é promovida e tem como nova missão criar uma dessas “Lendas”, talvez a última – afinal, o rock está morrendo.

Em vista dessa economia sacrificial, talvez o mais perturbador do livro de Enriquez seja justamente a criação de toda uma mitologia para explicar (jamais justificar) a existência de algo que, aos nossos olhos mortais, é tão absurdo quanto todo o resto. E mais: com o andamento da narrativa, fica a impressão de que a imolação é generalizada, pois todos, seres mortais e fantásticos, deixam alguma coisa pelo caminho. Seria o esquecimento o único consolo possível? Talvez não.

“Quando o tempo é infinito”, lemos já perto do desfecho, “o esquecimento é inevitável.” Por mais que a vida se assemelhe a um passeio por “ruínas queimadas” que nos consomem, eventualmente encontramos algumas coisas valiosas pelo caminho. Sendo assim, só nos resta rezar para que não nos esqueçamos delas. Essa é a única prece que parece existir no universo de Enriquez; talvez seja a única prece possível, aqui e lá.

Brautigan

Texto publicado hoje n’O Popular.

Brautigan

Embora seja chamado de “o último dos beats”, não creio que Richard Brautigan (1935-1984) tenha muito a ver com um Kerouac, por exemplo. Se o “datilógrafo” Kerouac é muitas vezes palavroso e desleixado, Brautigan é econômico e preciso; se as imagens de Kerouac às vezes soam meio forçadas e até constrangedoras, as de Brautigan são inesperadas e misteriosas. O leitor pode constatar isso em Pescar Truta na América, relançado há alguns meses pela editora José Olympio com tradução de José J. Veiga.

Publicado originalmente em 1967, o livro pode ser lido como uma sequência de narrativas que, aos poucos, formam uma tapeçaria autobiográfica. Há trechos em que o jogo metaliterário é esfregado na cara do leitor (“Você está a poucas páginas de distância de Pescar Truta na América”), mas a maior parte da novela é constituída por blocos mais ou menos independentes que revisitam diversas passagens da vida do narrador, como sua “infância na estranha cidade de Portland”, a estadia em uma “cabana no alto de Mill Valley”, uma viagem ao sul do México (que por sua vez remete às férias escolares em que, menino, trabalhava “para uma velha na costa do Pacífico”), um acampamento em Idaho etc.

Nesses recortes organizados de forma não-linear, o melhor está na maneira como ocorrências corriqueiras são ressignificadas pela força daquelas imagens. Descrições simples adquirem ares fantasmagóricos e às vezes surreais. Gestos cotidianos são ressaltados por um calor humano que exsuda de determinadas escolhas ou deslocados para uma atmosfera de estranhamento, em que cada coisa remete a outra coisa que jamais se revela por inteiro e nos deixa na expectativa de uma epifania que jamais se completa. Aliás, o próprio título do livro assume essa característica expectante: em um trecho, diz respeito ao ato de pescar trutas na América; noutros, a expressão como um todo substitui o nome de uma pessoa ou de um lugar.

Aqui e ali, Brautigan investe em uma espécie de concreção das metáforas (daí aquele ressaltar dos gestos cotidianos, conferindo beleza e significado a ações e palavras que muitas vezes aparecem esvaziadas por aí, nos livros e na vida). Cito alguns exemplos: “O sol parecia uma enorme moeda de cinquenta centavos que alguém mergulhara em querosene e acendera com um fósforo, para então pedir: ‘Segure isto enquanto vou comprar um jornal’, e depois colocar a moeda em minha mão sem nunca mais voltar”; “Eu não podia fazer outra coisa porque meu corpo era como pássaros pousados em fios de telefone esticados mundo afora, nuvens agitando os fios delicadamente”; “Depois subimos de carro seguindo o curso do riacho até acima dos diques dos castores, e as trutas nos encararam como folhas caídas”; “Chove aqui há dois dias, e entre as árvores o coração para de bater”.

Em seus movimentos inesperados e pela forma como mergulha para voltar à superfície uma vez após a outra, sempre trazendo uma surpresa, Pescar Truta na América é um testemunho de liberdade autoral, algo próprio dos que parecem ouvir o coração do mundo bater em cada mísera coisa, em cada mísero ser. Seu tom “religioso e íntimo” só pôde ser alcançado por alguém com plena consciência da transitoriedade de tudo – exceto da beleza.