Privação

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::: Abaixo do Paraíso é sobre voltar para casa, como escrevi AQUI. Ou, melhor dizendo, sobre até onde é possível voltar para casa, e sobre os desvios (em todos os sentidos — morais, sexuais, políticos, da memória) que podem ensejar um retorno inadvertido e serem ensejados por ele. A verdade é que Cristiano, esse Odisseu sem Troia, naufraga nos arredores de Ítaca e só nada para lá porque não tem outro lugar para ir, porque não tem escolha. Sua descida ao Hades é surda; não há Anticleia ou Tirésias à vista, não há ninguém. No fim das contas, Ítaca não é o ponto final, mas apenas outro desvio.

::: Tenho pensado nessas coisas porque um dos projetos que acalento nos meus rascunhos é uma espécie de anti-Abaixo do Paraíso, a história de outro fugitivo, de outro náufrago, mas não outro Cristiano e, sim, um indivíduo que compreende esse desvio essencial e o aceita. Pensem no Frank Chambers de O destino bate à sua porta, de James M. Cain, mas em um Chambers que, em vez de optar pela efetivação ou atualização do desvio homicida (ou ser engolfado por ele, como Cristiano), decide esperar.

::: Penso, também, na leitura de Agamben do conceito de potência em Aristóteles (“uma tentativa de compreender o significado do sintagma ‘eu posso'”) ou, mais precisamente, em sua reflexão sobre como isso “assume a forma de uma privação (…), isto é, de algo que atesta a presença do que falta ao ato”, pois ter “uma potência, ter uma faculdade significa: ter uma privação”, e a potência é “definida essencialmente pela possibilidade de seu não-exercício”.

::: Se “o arquiteto é potente na medida em que pode não construir”, o mesmo pode ser dito de um assassino — óbvio que, no Brasil, república miliciana por excelência, a empresa homicida é um ofício como qualquer outro, sancionado pelo Estado e alimentado pela iniciativa privada. Mas, então, o livro seria sobre não matar? Seria sobre essa privação? Sobre a tensão inerente a ela em uma determinada circunstância? De certo modo, ou até certo ponto. E, enquanto tal, seria violentíssimo, até porque a privação não teria fundo “moral”, isto é, o personagem não hesita, não “repensa”, não se tortura, não recua diante da terrível possibilidade que se apresenta. A alma não grita quando está morta, e assim o livro tentaria fazer jus a esse espécime muito particular que é o morto-vivo brasileiro.