Uma thread sobre “Eufrates”

Uma thread sobre “Eufrates”

O sr. Martim Vasques da Cunha, conforme linkei AQUI, escreveu sobre Eufrates para o caderno Aliás do Estadão. Ele também teceu alguns comentários acerca do livro no Twitter, em uma thread publicada meses atrás. Tomo a liberdade de colar abaixo o que ele tuitou:

EUFRATES, de André De Leones (@d_leoness) é um dos grandes romances de 2018 pelos seguintes motivos: (a) Finalmente, depois do Hades que foi “Abaixo do Paraíso”, De Leones chega a uma serenidade formal e a uma maturidade existencial impressionantes.

(b) Ainda em termos formais, nenhum autor nacional surgido nos últimos dez anos tem o tesão estilístico dele (com a possível exceção de Pelizzari e Terron): De Leones vai de James Joyce a David Foster Wallace, sem deixar de prestar várias homenagens a Don DeLillo.

(c) Como se não bastasse, EUFRATES tem grandes cenas de sacanagem, muito bem escritas (algo que só James Ellroy sabe fazer atualmente), e uma sequencia de ácido lisérgico que é capaz de convencer o leitor mais conserva – no caso, eu – de que se pode encontrar alguma paz ali.

(d) É um romance adulto, de temas adultos, escrito por um adulto, a ser lido por adultos, mas que não se esquece jamais do jovem que foi e que poderia ter sido. Portanto, não há amargura nele, apesar do confronto com o caos – que é vencido, mesmo de maneira provisória.

(e) O tema central do romance é a paralisia – algo que De Leones já contemplava nos romances anteriores, mas que aqui alcança um desenvolvimento mais suave, o que possibilita a abertura para uma redenção intramundana que, contudo, é melhor do que abraçar o niilismo puro.

(f) Os personagens Jonas e Moshe são o coração do livro. Porém, são nas digressões que encontramos outras pérolas, como a terrível cena com Giovanna, a sequência do jogo de basquete com João Gabriel e o hilário momento dos sapatos apertados nos pés doloridos de Dona Cida.

(g) Essas digressões são fundamentais para que De Leones abrace a forma ampla do romance como um modo de conhecimento peculiar da realidade, tal como Milan Kundera nos avisa em “Os Testamentos Traídos”.

(h) A prova desse tipo de intenção do autor está no final, quando Moshe e seu pai, Miguel, discutem a situação do Brasil durante as manifestações de Junho de 2013, com direito a referências cifradas a Eric Voegelin e Paulo Eduardo Arantes.

(i) EUFRATES, com sua estrutura aparentemente fragmentada, mas unido pelo tema das escolhas que devemos fazer quando estamos mergulhados na *stasis* da alma, fala de um Brasil completamente caótico, sem possibilidade de salvação coletiva.

(j) Contudo — e talvez por isso mesmo — é por causa deste mesmo caos que o país dá chance a uma salvação – ou melhor, a uma *comunhão* – que acontece somente entre as pessoas, entre os indivíduos, entre os amigos e com quem que restou das nossas famílias.

(l) (Se isto não é o que nos conforta para sempre, é, ao mesmo tempo, mais do que o suficiente nos nossos dias.)

 

 

Coleção Identidade na Amazon

A Amazon e três agentes literárias brasileiras (Lucia Riff, Luciana Villas-Boas e minha queridíssima Marianna Teixeira) estão lançando a coleção Identidade. São trinta contos de autores brasileiros contemporâneos, vendidos de forma avulsa (por R$ 1,99) ou em três coletâneas com dez narrativas cada (R$ 9,90). Assinantes Kindle Unlimited não pagam nada. Leia mais respeito na Babel.

Meu conto se chama Pessoas Bacanas e pode ser adquirido AQUI (avulso) ou AQUI (coletânea Agência MTS). Um trecho:

Foi um pouco antes da Copa de 2010, e uns meses depois que soltaram a minha irmã. A mãe saiu do hospital e, naquela época, apesar de tudo, eu realmente achava que as coisas iam se endireitar.
A escola tinha entrado em greve e eu ganhava uns trocados trabalhando com o meu tio. A ideia era aprender alguma coisa, mas o máximo que acontecia era eu perder dias inteiros em filas de banco ou correndo pela cidade em busca de uma ou outra peça que ele precisava para arrumar os carros. A oficina vivia cheia, mas acho que, no fundo, meu tio não queria que eu virasse mecânico. Estava sempre falando sobre o quanto era importante estudar, por exemplo. Depois do expediente, ele me chamava para comer alguma coisa no pé-sujo mais próximo e desandava a falar essas coisas. Eu ouvia e concordava com a cabeça, mas depois me lembrava da escola, de toda aquela bagunça, de como era difícil me concentrar no falatório dos professores e nos livros e coisa e tal, e sentia uma preguiça desgraçada. Também não me agradava a ideia de virar mecânico, passar o dia inteiro sujo de graxa, enfiado debaixo dos carros, fuçando em toda aquela porcariada, e então a preguiça virava uma angústia que me sufocava. Eu não tinha lá muitas opções, e sabia disso.

“Daniel” vem aí.

daniel

Na coluna Babel, publicada na edição de sábado do Estadão, a jornalista Maria Fernanda Rodrigues conta que:

De Patricia Capella e Tatiana Kely, ex-publisher da Oito e Meio, a novata [editora] Quase Oito tem a proposta de publicar o primeiro infantil de autores e artistas já conhecidos por seus trabalhos literários em outras áreas. Em março, ela publica Daniel Está Viajando (acima), de André de Leones (…).

É isso aí. Meu primeiro livro infantil está a caminho. As ilustrações ficaram a cargo da sensacional Paula Nestorov, e estão ficando lindas, como se vê pela imagem acima. 2019 promete. Sigamos.

Vento, fogo e fumaça

Artigo publicado hoje n’O Popular.

Saulo

Gênero ou subgênero cinematográfico muito conhecido é o dos chamados road movies, em que o ato de se lançar na estrada, seja em fuga, seja em busca de algo, seja por qualquer outro motivo, funciona como uma espécie de elemento narrativo norteador, uma bússola ficcional a ser observada junto com a paisagem que se desvela ao redor. Detour, Morangos Silvestres, Sem Destino, Alice nas Cidades, The Hit, Coração Selvagem e Central do Brasil são exemplos tão díspares quanto incontornáveis de uma determinada categoria cinematográfica em que é característico esse apelo da estrada. Os Incontestáveis, filme de Alexandre Serafini, é outra contribuição ao gênero, mas não é dele que pretendo falar neste texto e, sim, da obra literária em que se baseou, o road novel homônimo do capixaba Saulo Ribeiro, lançado no primeiro semestre deste ano pelas editoras Cousa e Patuá.

A viagem diz respeito a dois irmãos, Maurício e Belmont. Eles viajam pelo Espírito Santo em um Opala que parece movido a rock n’roll. Sua busca é por um carro que pertenceu ao pai de ambos: “Uma coisa meio nostalgia e calafrio na espinha. Olho cada detalhe da imagem, que traz um Maverick laranja mandarim ano 75, duas crianças sentadas no capô e um homem ao lado” (p. 26). Pouco antes de abandonar a família, o pai perdera o carro no jogo. Agora, sem saber muito bem por quê, ou talvez por sentir que o Maverick seria a única coisa boa que o velho teria lhes deixado, sua herança possível, por assim dizer, os irmãos tentam recuperar o veículo.

A viagem não é linear. Os protagonistas procuram comprador atrás de comprador, seguindo a pista do carro e viajando aos/pelos extremos do Espírito Santo (com direito a um bate-volta numa cidade limítrofe de Minas Gerais), onde “ser baiano, mineiro, capixaba dá no mesmo”, pois tudo é a “mesma pobreza”, o “mesmo abandono” (p. 89). Eles, assim, desenham um trajeto tão incerto quanto a busca que os move.

Em todo o percurso, arde o pressentimento do que, no fim das contas, é irreparável: “Asfalto novo. Pastos, propriedades rurais. O céu se abre no litoral, azul e manso. Mau e Baiana, Lila e Bel. Chegam. Descem da máquina-automóvel. A areia da praia vazia cede aos passos, deixando pegadas fundas e fugidias. Os grãos são levados ao vento para formar e reformar outra paisagem, incessantemente” (p. 74). O efêmero sempre desemboca na ausência. Descortina-se um país incerto e informe como a própria memória dos protagonistas, e uma coisa não só reflete a outra (em meio à poeira) como elas parecem se alimentar uma da outra, o que se torna evidente no terço final do romance.

Ali, o ensaio de uma sublevação popular ecoa outra, a do Estado da União de Jeová – na década de 1950, houve de fato uma revolta camponesa no noroeste capixaba, em que posseiros liderados por um certo Udelino Alves de Matos confrontaram fazendeiros, jagunços e policiais. Acabaram massacrados. Em Os Incontestáveis, a fantasmagoria do conflito como que incorpora um dos protagonistas. Tal desvio narrativo é quimericamente necessário, embora (ou porque) passageiro, como, aliás, toda e qualquer paisagem, seja interior, seja exterior. Saulo Ribeiro é esperto o bastante para devolver seus personagens à estrada. O resto é apenas “vento, fogo e fumaça”.

Begbie

Artigo publicado hoje n’O Popular.

Begbie

Para quem viu Trainspotting, célebre filme de Danny Boyle lançado em 1996, e para quem leu o livro homônimo de Irvine Welsh, o nome Francis Begbie é aterradoramente familiar. Ele não é viciado em heroína como seus amigos Renton, Sick Boy, Spud e cia., mas em violência. É aquele sujeito incapaz de adentrar um bar sem provocar um escarcéu dos diabos em tempo recorde. Intempestivo, espanca qualquer um por qualquer motivo, real ou imaginário. Begbie já havia dado as caras na sequência de Trainspotting, Pornô, e na pré-sequência Skagboys (a obra-prima de Welsh, que resenhei AQUI; todos os livros saíram no Brasil pela Rocco), e agora retorna em O Artista da Faca (tradução: Ryta Vinagre).

Vale ressaltar que o novo romance está mais para um thriller que para os painéis edimburgueses pintados nos outros romances. E Begbie parece mudado: vivendo na Califórnia com a esposa norte-americana e duas filhas pequenas, trabalha como artista plástico após ter sido, de certo modo, resgatado do sistema prisional britânico e de sua vida criminosa pregressa. É um novo homem, certo? Mais ou menos.

Quando dois sujeitos ameaçam sua família, por exemplo, ele reincorpora a anima psicopática de outrora, piorada pelo fato de que se tornou menos explosivo e mais calculista. Similarmente, o assassinato de um de seus filhos em Edimburgo, para onde viajará a fim de enterrar o rapaz (e quem quer que esteja por trás de sua morte), explicitará o lado obscuro do “velho-novo” Begbie.

Sobre essa confluência de personalidades por obra e graça da violência, tomo a liberdade de transcrever um trecho (página 111): “Cada vez mais sua vida parece fraturada, como se o passado fosse vivido por outra pessoa. Não é só que o lugar onde ele agora mora e as pessoas que o cercam sejam diferentes, é como se ele próprio fosse alguém inteiramente diferente. As obsessões e deficiências predominantes do homem que ele foi no passado agora parecem completamente ridículas no morador atual de sua mente e corpo. A única ponte é a raiva; quando furioso, ele sente o gosto de seu antigo ser”.

O Artista da Faca é, reafirmo, menos ambicioso que Trainspotting e, sobretudo, Skagboys. O humor e a acidez de Welsh comparecem aqui e ali, sobretudo quando usados para ressaltar as contradições do protagonista e de suas escolhas. Há algo de irreparável em Begbie, tão mais perigoso agora que aprendeu a controlar seus impulsos, a planejar cada passo, a usar com maior inteligência aqueles que o cercam – incluindo familiares. Mas, ironicamente, é possível entrever alguma nobreza nesse “velho-novo” Begbie e em alguns de seus atos, no modo como se dedica à esposa e às filhas e na maneira como faz uma autocrítica relativamente à forma como (não) criou seus outros rebentos. “Quando o mocinho é o psicopata do nosso antigo bairro”, diz alguém a certa altura, “a cidade tem sérios problemas.”

Óbvio que as motivações do protagonista são egoístas e seus métodos, hediondos. Ele quer vingar o morto não porque o amasse, mas porque lhe é inadmissível aceitar passivamente o assassinato de um filho. E o desfecho, quando se revela quem é o assassino, diz muito do círculo de violência que começa e termina no próprio Begbie ou, pelo menos, insiste em passar por ele a todo instante. Quando tudo arde em chamas, só podemos culpar a nós mesmos.

“Eufrates” n’O Globo

Resenha publicada na edição de ontem d’O Globo.

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O DESASSOSSEGO DIANTE DA BRUTALIDADE DO DIA A DIA
Romance caudaloso de André de Leones entrelaça histórias viajando por tempo e espaço

Por Juliana Krapp.

O táxi avança pela Marginal Tietê quando se depara com um acidente, o corpo morto engolfado pela lataria de outro veículo. No banco do carona, um dos protagonistas de “Eufrates” desvia os olhos. Sempre lhe impressionam as marcas de sangue, couro e borracha misturados na derrapagem. “Couro humano. Vivo e, logo depois, não.”

Desde que estreou com “Hoje está um dia morto” (2006), o escritor goiano André de Leones tem trazido à luz personagens marcados pelo aturdimento ante a reiteração de que a vida — seja em sua face literal, seja como representação de rotina e estabilidade — está sempre por um triz. Suas histórias têm como mote separações, recomeços, perdas afetivas, mortes. Tramas que lidam com a alternância de focos narrativos para compor mosaicos de personagens à deriva, tomados pelo embotamento e pelo luto, às voltas com a impossibilidade de alcançar o outro.

Romance caudaloso, que entrelaça inúmeras histórias ao serpear por tempos (entre 1991 e 2013), cidades (São Paulo, Brasília, Buenos Aires, Belém do Pará, Jerusalém) e personagens distintos, “Eufrates” é o resultado mais ambicioso desse projeto literário de marcas bem definidas. Sua espinha dorsal é a amizade entre dois jovens, o professor de inglês Moshe e o corretor Jonas, irmanados na brutalidade de perdas e reveses, mas também na sensação de desajuste e de prostração.

Leones reafirma uma marca nítida em sua obra: a busca por refletir o desassossego contemporâneo, no encalço de homens e mulheres de classe média, flagrados na banalidade do cotidiano. Assombrados pela teia de violências que se imiscui, fantasmagórica, ao espaço trivial dos dias. Violências de naturezas e contundências múltiplas. A mãe de Moshe morre num atentado terrorista. Uma jovem comemora o aniversário numa churrascaria e, enquanto os convidados bebem e comem à mesa, sem sequer notar sua ausência, se enforca no banheiro. Em sua primeira entrevista de emprego, Jonas constata a necessidade de simular um padrão de conduta sem nenhuma autenticidade.

Para perseguir essa teia de violências e opressões, o autor usa como estratégia o empenho em capturar as minúcias da rotina, o mal-estar que se instaura num vazio tipicamente contemporâneo. Diálogos balbuciantes ou desbocados, refeições, uma toalha esquecida sobre a banheira, reminiscências. Leones se prolonga em descrições de cenas onde quase nada acontece, passeando pela memória e pelas impressões dos protagonistas, engordando a trama até roçar o limite da exaustão. Isso acaba construindo um tom aflitivo, um atrito entre a delicadeza do olhar sobre a cena e o alheamento de personagens que, afinal, não conseguem estabelecer uma comunicação eficaz entre si.

Consistente e produtivo
É nesse trabalho intrincado de desmantelar os personagens, mergulhando-os quase até a asfixia para só aos poucos trazer à tona os acontecimentos, que se situa o grande trunfo de “Eufrates”. Por outro lado, é justamente nesse ímpeto pelo excesso que o romance por vezes derrapa, atado a certas reiterações e redundâncias. Além disso, encarada de soslaio, a dimensão psicológica de alguns personagens se esvai em generalizações pueris, como a evangélica que recusa o sexo em nome do fervor religioso.

Ainda assim, este novo livro atesta o trabalho vigoroso e a maturidade de um dos autores mais consistentes e produtivos da ficção brasileira atual. Seus méritos não são poucos. Um deles é reiterar a capacidade de Leones para estabelecer um projeto literário coeso — Eufrates, vale lembrar, já é seu sétimo livro.

Há que se destacar também a habilidade em narrar as atividades e fantasias sexuais dos personagens, com descrições realistas que conseguem escapar ao grotesco e ao evasivo. Como se sabe, a ficção brasileira — e mesmo a estrangeira — não costuma ser pródiga em narrativas bem-sucedidas sobre a dimensão lúbrica da vida. Em “Eufrates”, no entanto, o desejo, as peripécias e frustrações sexuais ocupam uma centralidade que enfatiza ainda mais a argúcia técnica do autor.

Já o contexto político aparece apenas de viés, o que acentua a contundência dos silêncios e dos desencontros, do alheamento e do desamparo. Mas é o que acentua, também, a sua própria atualidade. Numa das cenas, os dois protagonistas tomam chope na Rua Augusta, no período das manifestações de 2013. Revelam desinteresse pela massa de jovens a ocupar as ruas. Moshe os nomeia “espíritos irrequietos”, Jonas gargalha. “Estamos todos mortos”, justifica, ressaltando que ninguém sabe disso. E que tampouco vai aparecer alguém para contar.

Um reencontro marcado

Artigo publicado n’O Globo em 11.09.2010.

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A primeira vez em que ouvi falar de Ricardo Guilherme Dicke foi em 2002. Minha temporada em Brasília tinha chegado ao fim de maneira desastrosa e eu estava de volta ao aprazível interior de Goiás, perdido e meio, sem ter o que fazer e com aquela ideia um tanto vaga (e francamente imbecil) de que a literatura talvez pudesse me salvar.
Quando digo “sem ter o que fazer”, quero dizer exatamente isso, tanto que logo comecei a frequentar as reuniões do Rotary Clube com meu pai. Explico: a programação televisiva às terças-feiras era horrível, meu boteco de estimação só abria de quarta a domingo e, bem, o jantar pós-reunião dos rotaryanos era algo assim digno de ser apreciado.
Foi em um desses jantares que me apresentaram a um professor universitário aposentado e também escritor conhecido regionalmente. O nome dele era Aldair Aires. Por alguma razão que eu nunca quis entender, Aldair se enfurnara no interior depois de debelar (ma non troppo) um câncer na língua e abandonar de vez o amistoso e aconchegante meio acadêmico. Tão logo nos conhecemos, demos início àquele esporte predileto entre escritores, literatos e afins: o tráfico de influências. O primeiro autor que meu novo amigo indicou, e indicou com veemência, foi Ricardo Guilherme Dicke. Usando adjetivos dos quais a gente costuma desconfiar, tais como “genial” e “único”, Aldair falou durante horas (ok, por uns vinte minutos, enquanto jantávamos) sobre esse escritor premiado, mas desgraçadamente relegado ao ostracismo. Texto caudaloso, imagético, repleto de barbaridades.
Nascido e criado na Chapada dos Guimarães, filho de pai alemão, Dicke viveu por algum tempo no Rio de Janeiro, em meados da década de 1960. Foi por essa época que se licenciou em Filosofia e fez mestrado em Filosofia da Arte pela UFRJ enquanto, paralelamente, estudava com os artistas plásticos Frank Schaeffer e Ivan Serpa (chegou a participar do XV Salão de Arte Moderna, em 1966). Ganhava a vida com revisões e traduções, além de ter sido repórter e pesquisador do Segundo Caderno deste O GLOBO. Acabaria voltando para Cuiabá, onde, segundo Adélia, sua mulher, sentia-se melhor para escrever.
Como escritor, teve o que se poderia chamar de um início de carreira auspicioso. Seus três primeiros romances venceram prêmios importantes, conferidos por autores consagrados. Em 1967, Guimarães Rosa, Antonio Olinto e Jorge Amado foram os jurados que concederam a Deus de Caim uma menção honrosa no então prestigioso Prêmio Walmap. Caieira, seu romance seguinte, faturou o Prêmio Remington, em 1977, e foi apontado por ninguém menos do que Glauber Rocha, no programa televisivo Abertura, da TV Tupi, como leitura obrigatória. Por fim, em 1981, a obra-prima Madona dos Páramos foi premiada pela Fundação Cultural do Distrito Federal e definida por Hélio Pólvora, no prefácio, como “grande e grandioso em todos os sentidos”.
Dias depois daquele nosso jantar rotaryano, Aldair Aires me emprestou um exemplar surrado de Madona dos Páramos. O que se deu em minha cabeça foi como uma explosão. Devorei em um final de semana as mais de quatrocentas páginas daquele texto caudaloso, imagético, repleto de barbaridades, constituído por parágrafos que se prolongavam por páginas e páginas, e tive aquela certeza que nós, leitores, perseguimos todo o tempo: a de ter encontrado um dos “nossos”. Passei, então, a garimpar outros livros de Dicke e a indicá-los a quem atravessasse o meu caminho, sem medo de ser confundido com aquele tipo chato que cita autores que poucos conhecem única e exclusivamente para se perfazer.
Aos poucos, e não por minha causa, evidentemente, o nome dele começou a reaparecer aqui e ali. Em fevereiro de 2004, pouco antes de falecer, Hilda Hilst concedeu uma entrevista ao GLOBO. Em um determinado momento, a pedido do entrevistador, enumerou aqueles que considerava os grandes escritores brasileiros. Depois de, é claro, citar a si própria, emendou: “Guimarães Rosa, Machado de Assis… Tem vários. O Guilherme Dicke, que praticamente não é conhecido, também é um gigante”.
Em 2007, quem faleceu foi o meu amigo Aldair Aires. O câncer voltou só para levá-lo embora. Em nossa última conversa, falamos sobre Dicke. Eu disse que uma pequena editora de Culabá, a Carlini & Caniato, estava prestes a lançar dois contos inéditos em um único volume, Toada do Esquecido & Sinfonia Equestre. Falei que era questão de tempo para que o trabalho dele voltasse a circular e obtivesse o reconhecimento merecido. Óbvio que não havia nada que embasasse o que eu dizia. Era apenas a expressão de uma enorme vontade.
Dicke morreu em 2008, aos 71 anos. Os necrológios publicados pela imprensa falavam sobre os prêmios que ganhara, os elogios que recebera, mas nada a respeito de novos projetos de publicação. Agora, com o relançamento de Deus de Caim pela editora paulista LetraSelvagem, gosto de pensar que alguma justiça começa a ser feita. Uma obra nunca menos do que magistral.
Nesse romance (Deus de Caim), os personagens Lázaro e Jônatas são como Abel e Caim. Os dois irmãos brigam por uma jovem, Menira. Com sua prosa definida por estudiosos (Dicke é aquele tipo de autor que, por enquanto, tem mais estudiosos do que leitores) como “flutuante”, sempre alternando entre a terceira e as várias primeiras pessoas que povoam o enredo, ele nos apresenta a fictícia Pasmoso, localizada nos arredores de Culabá, e seus habitantes. Espécie de mosaico quebradiço, denso e violento, Deus de Caim não é, a princípio, uma leitura fácil. Mas, uma vez acostumado com a dicção faulkneriana do autor, o leitor adentrará o corpo de uma obra nunca menos do que magistral.
Agora, é torcer para que os estupendos Caieira e Madona dos Páramos, para não falar dos outros livros de Ricardo Guilherme Dicke, incluindo os vários inéditos, cheguem até nós o quanto antes. O fantasma de Aldair Aires agradecerá. E nós também, é claro.

Meu passado nazista

“Noção terás do que é o ermo, a solidão?”
— Goethe, no Fausto.

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1. Era o começo dos anos noventa do século passado, era o interior de Goiás, era o governo Collor (não por muito tempo), e lá estava aquele sujeito que, parado no topo da escada, fazia Sieg Heil para a molecada reunida no alpendre, o braço direito estendido e a voz altissonando: “Heil Hitler!”.

1.1 O sujeito era pai de um colega de escola que eu visitava quase todos os dias. Eu e o colega jogávamos Mega Drive, Streets of RageDesert Strike, Golden Axe, ou ouvíamos os vinis do irmão mais velho dele, Use Your Illusion (eu gostava mais do II, meu colega preferia o I, daí que ouvíamos ambos), o Black AlbumNevermind, The Real Thing, havia também uma coletânea dos Doors, ou assistíamos à televisão, eles tinham antena parabólica e um aparelho de muitas e muitas polegadas, era impressionante aquele caixotão de madeira (embora eu achasse a imagem escura demais) ali na sala, dominando a paisagem, impossível olhar noutra direção, para outra coisa, qualquer outra coisa.

1.2 O lance com o Sieg Heil acontecia sempre que o pai dele chegava, e a gente ria porque tinha dez, depois onze, depois doze anos, e aquele era o único Pai que tentava fazer alguma gracinha, os outros Pais não faziam nada ou simplesmente entravam e resmungavam um cumprimento qualquer antes de desaparecer. O sujeito surgia no topo da escada ou no cômodo onde estivéssemos (era uma casa grande), erguia o braço, “Heil Hitler!”, a gente ria e ele às vezes dava um tempinho por ali, jogava um pouco de videogame ou perguntava o que estávamos vendo ou ouvindo ou estudando, porque às vezes acontecia de estudarmos, já lancharam?, era o único Pai que fazia todas essas coisas, e a gente (a turminha do filho caçula) não desgostava nem tinha medo dele, o que naquela idade significava muito, vamos concordar.

2. Demorou algum tempo para que eu entendesse certas coisas, e então era o governo Itamar, mas ainda eram os anos noventa do século passado, ainda era o interior de Goiás, a mesma casa, o mesmo Sieg Heil, que deixou de ser engraçadinho ou “diferente” depois que aprendi uma coisinha ou outra, meio que sem querer, e me inteirei de alguns fatos que, certo dia, o meu colega — estávamos de novo na casa dele, onde mais?, sentados no tapete da sala, ouvindo In Utero — negou, não foi bem assim, meu pai me explicou, ferraram muito a Alemanha com aquele tratado lá, como é que o nome?, ele só fez o que precisava fazer, e esses judeus, bicho, ah, puta que pariu, deixa eu te falar desses judeus, e eu até deixava, beleza, fala aí, mas a conversa morria pouco depois e era evidente que, embora quisesse, o meu colega não tinha muito o que falar “desses judeus”, nada além de ideias genéricas e obscuras, aproveitadores, sacanas, meu pai, ele me explicou tudo, ele me explicou tudinho.

2.1 Meu desconforto aumentou gradativamente, fosse pelas coisas que o colega dizia e/ou ensaiava dizer sempre que determinados assuntos surgiam, fosse porque o pai dele não se cansava do Sieg Heil. A essa altura eu já não conseguia rir ou disfarçar ou embarcar na “brincadeirinha”, mas nenhum deles parecia se importar, ninguém ali parecia se importar, a palhaçada se dava do mesmo jeito, os outros colegas riam do mesmo jeito, a vida seguia do mesmo jeito.

2.2 Não sei por que continuei a frequentar a casa desse colega; talvez porque aos treze anos as coisas não fossem tão simples, ou eu pressentisse que elas só complicariam com o passar do tempo. E aquele era o “melhor amigo” — onde encontraria outro? Entretanto, no que diz respeito ao Sieg Heil, passei a sentir cada vez mais vergonha por algum dia ter achado graça de tamanha imbecilidade. E também comecei a sentir raiva de mim por não conseguir me afastar.

3. Muitos e muitos anos depois, em Israel, contei essas coisas para um conhecido. Estávamos sentados a uma mesa na Ben Yehuda, bebendo e comendo não me lembro o quê. Fazia muito calor. Era o sharav.

3.1 Esse conhecido era francês, recém-instalado em Jerusalém. Dizia trabalhar como fotógrafo, mas nunca me explicou direito o que fazia por lá e eu tampouco quis saber. Dizia também não conhecer a América Latina e estar curioso sobre o Brasil. Falei, então, dos anos noventa do século passado, falei do interior de Goiás, falei do sujeito parado no topo da escada, o braço direito estendido e a voz altissonando: “Heil Hitler!”. Falei de como a gente achava isso engraçado aos dez, onze, doze anos, falei de como isso aos poucos foi me parecendo mais e mais escroto, até o momento em que senti vergonha por algum dia ter achado graça de tamanha imbecilidade.

3.2 Quando parei de falar, o francês respirou fundo, tomou um gole do que quer que estivesse bebendo e disse, antes de gargalhar: “Você se envergonha do seu passado nazista”.

4. Eram os anos noventa do século passado, e também foi na casa daquele meu colega que ouvi o pai dele dizer, referindo-se a Collor, PC Farias e cia., o escândalo então no auge, que na época da revolução (sic) não tinha nada dessas coisas, não tinha roubalheira, não tinha safadeza, era tudo bem diferente. Mais tarde, em casa, comentei a respeito com o meu pai e ele bufou (estava sempre bufando) e disse que na época da ditadura (sic) era tudo bem diferente, sim, mas por outras razões. Ele disse isso e se calou, não entrou em detalhes.

4.1 (Meu velho nunca entrava em detalhes. A gente que se virasse para saber do que ele estava falando, que corresse atrás, que se informasse por conta própria e tirasse as nossas próprias conclusões. Essa sua recusa sistemática a entrar em detalhes foi uma das melhores coisas que poderia ter feito por mim.)

4.2 Essa outra história, sobre a noção sempre muito difundida de que a corrupção era algo estranho à ditadura militar, essa outra história eu não comentei com o francês, embora tivesse muito a ver com o que ele supostamente queria de mim naquela tarde (“saber mais do Brasil”). Senti preguiça de contextualizar a coisa, e estava cansado de falar do século passado, do interior de Goiás, do meu “passado nazista”.

5. O francês e eu deixamos a Ben Yehuda e fomos a um pub nas redondezas. O calor estava insuportável e uma cerveja cairia bem. No pub, papeamos sobre outras coisas, até porque nenhuma história que eu contasse seria capaz de rivalizar com as maluquices que o dono do lugar, um bielorrusso, conforme a noite se aproximava, curtia compartilhar com os fregueses. “Meu avô me contou uma coisa muito louca que ele viu quando era moleque”, ele começava, e quem estivesse ao balcão (eu sempre me sentava ao balcão) calava a boca para ouvir.

5.1 Eu tinha visto Vá e Veja e fazia alguma ideia do que significava ser moleque na Bielorrússia em meados da década de 1940. Mas, naquela tarde, por alguma razão, não consegui prestar atenção em nada. Mesmo quando o bielorrusso desandou a falar, entremeando o discurso com uma dose ou outra do que estivesse à mão (ele adorava infligir Bushmills aos fregueses) (aceitávamos de muito bom grado), continuei pensando no que contara ao francês, nós dois sentados a uma mesa no calçadão da Ben Yehuda, comendo e bebendo não me lembro o quê enquanto o sharav nos castigava, inclemente.

5.2 Eram os anos noventa do século passado, era o interior de Goiás, a igreja ainda ficava lotada nos feriados religiosos, as procissões tomavam as ruas durante a Semana Santa, o pai de um colega nos fazia rir com seus Sieg Heil e, em Jerusalém, rememorando essas coisas tanto tempo depois, senti mais vergonha do que nunca do meu passado nazista.

Kakutani

Artigo publicado hoje n’O Popular.

Segundo a crítica literária Michiko Kakutani, a noção pós-modernista de que não existem verdades absolutas, abraçada pela esquerda em meados do século passado, foi também, e ironicamente, adotada pela extrema direita contemporânea. A noção é autoanuladora: se não existem verdades absolutas, como asseverá-lo? Noutras palavras, a asserção “não existem verdades absolutas” arroga-se, paradoxalmente, o status de uma verdade absoluta: logo, caso seja verdadeira, é falsa; e caso seja falsa, é verdadeira. Em seu livro A Morte da Verdade – Notas Sobre a Mentira na Era Trump (ed. Intrínseca, trad.: André Czarnobai e Marcela Duarte), Kakutani procura discorrer sobre como o relativismo cego e inconsequente teria resultado nesse estado de fragmentação epistemológica e ética que vivenciamos nos dias de hoje.

Traçando um panorama ligeiro e, por conseguinte, simplificador do pós-modernismo – especialmente quando enfia os nomes de Nietzsche e Heidegger de maneira leviana, aludindo-os como credores de Foucault e Derrida sem, contudo, contextualizar e fundamentar tal afirmação –, Kakutani tenta descrever o fenômeno Trump como sintomático do relativismo supracitado, do ambiente histérico que resultou das chamadas guerras culturais e, sobretudo, dos usos e abusos da internet em geral e das redes sociais em particular.

Segundo ela, as fraturas epistêmicas, aprofundadas pela erosão do chão comum que deveria nos sustentar, apontam para o esgarçamento das estruturas políticas e democráticas e para o recrudescimento de um novo tipo de autoritarismo, beneficiário da esquizofrenia disseminadora de fake news e afins. Em um mundo no qual nada é objetivamente verdadeiro, mas fruto de diversas “narrativas”, qualquer coisa pode ser tomada ou aceita como “fato”, a depender do gosto do freguês — incluindo as notícias, ou mentiras, mais absurdas.

O problema é que Kakutani está, ela própria, desenrolando uma narrativa, e parece incompreender que os termos dos quais se utiliza foram também mergulhados naquele oceano de ensurdecedora esquizofrenia. Assim como Heidegger, em Sobre o “Humanismo”, critica em Sartre o uso do mesmo vocabulário que o francês intenta criticar, de tal modo que o existencialista acaba ridiculamente enredado pela própria armadilha, percebo em Kakutani uma crítica do perspectivismo que, no entanto, não consegue escapar dos vícios perspectivistas.

Talvez esse problema seja fruto da crença da autora não em um sistema político – a democracia ocidental –, mas na ideia de um sistema político – a Democracia Ocidental – que nunca se instalou por completo e irredutivelmente na realidade, nem mesmo nos EUA de Don Draper. É óbvio que o ideal alimenta o concreto, e é certo que alguns dos nossos melhores momentos são ou foram resultantes de uma maior aproximação daquele ideal, mas o choro por um Éden imaginário não torna esse paraíso menos perdido, e perdido de antemão.

Assim, A Morte da Verdade serve mais como um testemunho dos nossos dias do que como uma discussão aprofundada acerca dos mesmos — é um sintoma, não um diagnóstico. Mas, justiça seja feita, um sintoma arejador, amparado em uma teia febril de relações e competente na maneira como, em suas passagens mais felizes, enquadra picaretas como Derrida e Paul de Man. Ou seja, é o tipo de sintoma que chama a atenção para a doença, possibilitando um tratamento mais adequado da mesma.