‘Das himmlische Leben’

‘Das himmlische Leben’

Ouvindo a Quarta de Mahler, talvez a mais contida das sinfonias dele. O quarto e último movimento é (inusualmente) uma canção. Uma criança (interpretada por uma soprano) nos fala desde o Paraíso, descrevendo a preparação de um banquete. “Kein’ Musik ist ja nicht auf Erden / Die unsrer verglichen kann werden”, ela canta a certa altura. Mal traduzindo, “não há música na Terra que se compare com a nossa”. Pensei no ocorrido ontem em Manchester. Depois, em mais nada. Só ouvi, e rezei.

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Encruzilhada (II)

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“Sim, a literatura não cura, é paliativo. Contudo, a ela devo não me ter suicidado quando perdi a Fé, escapado ao hospício (Para lá quase me conduziram as taras de uma família de líricos, capitães de navios negreiros, fazendeiros-poetas e um pintor de igrejas). Sei que ela me reconduzirá a Deus, já que me reconduziu ao Mistério.”

Murilo Rubião, em carta a Otto Lara Resende (05.10.1948).
A correspondência entre os dois foi reunida no volume Mares Interiores.

Encruzilhada

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“Quando a destruição de Israel teve início, Isaac Bloch estava se decidindo entre o suicídio e o exílio judaico”, escreve Jonathan Safran Foer logo no começo de Aqui Estou (Rocco). Estive diante de tal dilema em 2009. Optei por uma Guinness no pub hierosolimita Stardust e, tempos depois, citando Montale, enfim encontrei aquele modus moriendi que não é nem o suicídio, nem a sobrevivência. O resto é ficção.

Nomes

Courier da Amazon entregou uma encomenda minha no endereço errado. O celular tocando há pouco, o porteiro de um prédio subindo a rua: “Vi seu número na nota fiscal, mas diga aí seu nome completo só preu confirmar, faz favor”. Eu disse. Ele riu. “Seu sobrenome é Leones, olha só.” “O que é que tem?” “Meu primeiro nome é Leones.” Fui buscar o pacote e, de dentro da guarita, seu Leones exibiu o cartão BOM. Faxineiro estava por perto, acompanhando a conversa, e comentou: “O coveiro do meu tio tinha o mesmo nome que ele”. Por sorte, seu Leones não está cogitando mudar de profissão (eu perguntei).

Contra a banalidade

Há, na Piauí deste mês, um artigo enfadonho, invasivo e desajeitado sobre Thomas Pynchon. Poucas linhas sobre o que mais importa (os livros do cara) e parágrafos e mais parágrafos com historietas, fofocas e coisas do tipo para ao final dizer, paradoxalmente, que essas bobagens não interessam. Ou seja, a pessoa nem consegue ser coerentemente banal. Nenhuma tentativa de se aprofundar nos romances ou mesmo de investir em uma reflexão sobre a postura “reclusa” do autor nessa época hiperconectada, assolada por celebridades, superexposição etc. Duvido que alguém se disponha a ler Vineland ou Mason e Dixon depois de tropeçar em uma peça jornalística tão ruim. Pynchon é um dos autores mais exigentes e complexos surgidos na segunda metade do século XX. Sugiro aos interessados no trabalho dele que leiam o ótimo ensaio de Martim Vasques da Cunha, O agente secreto. Há também um divertido testemunho de Ian Rankin enquanto leitor de Pynchon publicado em 2006 pelo Guardian. Há muitas coisas interessantes acerca dos livros dele por aí. Basta pesquisar. Aliás, aqui mesmo neste espaço é possível encontrar minhas notas de leitura e resenhas de O Arco-Íris da Gravidade, Vício Inerente (AQUI e AQUI) e Bleeding Edge (prestes a ser lançado no Brasil com o título O Último Grito). E, óbvio, nada substitui a leitura dos livros de Thomas Pynchon. Jamais, em hipótese alguma.

Candido, RIP

Antonio Candido faleceu. A pobreza anímico-conceitual de sua obra foi esmiuçada por Martim Vasques da Cunha em A Poeira da Glória, mais especificamente no capítulo “A invasão do abismo”, do qual transcrevo alguns trechos abaixo.

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“(…) Candido tem outras intenções ao criar a linhagem de sua ‘formação’. Ele não está preocupado com a literatura em si ou com o que ela pode nos ajudar para entender o país onde vivemos. Sua intenção é usá-la como meio de formatar um determinado tipo de consciência, uma consciência coletiva que, como a que exprimiu Mário de Andrade em seu retrospecto melancólico sobre o Modernismo, tenha a utilidade para subverter os tais ‘interesses dominantes’. Ao discorrer, por exemplo, sobre as diferenças entre ‘manifestações literárias’ — em que o escritor pode até ter algum talento, mas se encontra isolado em seu meio, não tendo assim nenhuma repercussão na sociedade — e os ‘sistemas literários’ — nos quais o escritor precisa da recepção de um público para que a sua obra seja plenamente entendida por seus pares, criando assim uma linha de tradição –, Candido apenas quer nos despistar de seu intento mais pragmático. Para acentuar a eficácia, ele usa e abusa de um estilo retórico plenamente dissimulado, inspirado em Machado de Assis, em que usa da autoridade de professor para convencer-nos de que seu estudo sobre a literatura pode até não ser o definitivo, mas é um dos poucos que nos fará superar a pressão dos ‘interesses dominantes’.”

“(…) O estudo literário é usado como meio de proselitismo político, feito com as graças de uma poética da dissimulação em que a natureza humana é vista sem nenhuma nobreza ou bondade, apenas condicionada aos determinismos sociais.”

“(…) A Formação da literatura brasileira é o ápice do projeto dos ‘ventos da destruição’ defendido por Mário de Andrade para inverter completamente o eixo da sensibilidade nacional — e Antonio Candido é ninguém menos que o rei encantado que nos trará a este novo reino onde não existirão mais os ‘interesses dominantes’. Como bem observou (o crítico português Abel) Barros Baptista, a validade do projeto discutido na Formação só existe se for observado de forma coletiva, isto é, ‘político, não literário’ — e todo o estudo literário deve girar a partir de agora em torno do ‘imperativo político que define a própria condição de brasileiro’.
“A triste conclusão a que chegamos é que o brasileiro não é mais definido pela sua natureza como ser humano que supera qualquer circunstância histórica e sim pela função política dentro de uma formação que construirá uma nova sociedade que permitirá outras formas de expressão sufocadas por quem estava no poder. A única coerência nas análises de Antonio Candido é a da mesquinharia que, seguindo a linha estabelecida por Machado de Assis, Sergio Buarque de Holanda e Mário de Andrade, reduz o homem a um mero organismo ideológico que precisa da fome para justificar qualquer impulso, seja nobre ou devasso. Afinal, para que ter alguma espécie de responsabilidade moral se todas as paixões são justificadas por essas entidades abstratas como a ‘expansão econômica’, a ‘exploração capitalista’, a ‘fome psíquica’, o ‘mecanismo patrimonial’, os ‘interesses dominantes’ — ou então pelo desejo puro e simples, incapaz de perceber que existem outras pessoas que serão afetadas por elas?”

Candido faleceu aos 98 anos. Suas ideias morreram antes. Que ambos descansem em paz.

Pynchon 80

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Thomas Pynchon completa oitenta anos hoje. É um dos prediletos nesta casa desde que, duas semanas antes do Natal de 2004, tropecei em um exemplar de O Arco-Íris da Gravidade. Foi na rodoviária de Goiânia. O exemplar estava com cinquenta por cento de desconto porque a livraria, prestes a fechar de uma vez por todas, fazia uma bela queima de estoque (também comprei o insano Glamorama, de Bret Easton Ellis, por uns trocados). Eu escrevia então o meu primeiro romance e a leitura do calhamaço fez com que eu tomasse duas decisões: 1) eviscerar, atulhar de explosivos, suturar e explodir (no bom sentido) (espero) Hoje está um dia morto; 2) não fazer outra coisa na vida (digo, profissionalmente) além de escrever. Como bom capricorniano, tenho o péssimo hábito de me manter fiel às decisões que tomo não porque as considere “certas” ou sequer inteligentes, mas porque voltar atrás não é uma opção viável. Percorri os contos e romances de Pynchon mais de uma vez desde aquele dia, e não raro as leituras não só me sustentaram (no sentido estrito mesmo, desde sustinere) como me lançaram adiante. Ler V. à beira do Mar Morto, por exemplo, como que aprofundou a paisagem: animado pelo livro, enxerguei por um breve instante a outra margem e imaginei o quão angustiante seria restar ali e não consegui-lo, daí o desfecho de Terra de casas vazias. Muitas vezes, o escritor é como Mondaugen na Namíbia, preso num casarão na companhia de gente muito estranha enquanto o pau come lá fora, a terra eviscerada e ainda ecoando o primeiro genocídio do século dos genocídios, encalacrado em uma festa nascida do estado de sítio, errando pelo lugar e sonhando os crimes cometidos por outrem; impossível descrevê-los, impossível não tentar descrevê-los. Como Stencil, a gente conta a nossa história “até tarde da noite, mas com uma voz sempre ameaçando partir-se, como se agora, finalmente, implorasse por sua vida”. Em Pynchon, a ficção é uma alucinação da História ou, melhor dizendo, contra a História. É algo que muitos autores influenciados por ele (como o David Foster Wallace de Marathe & Steeply e do Eskathon, as passagens menos felizes de Graça Infinita) compreenderam mal; a História só é um jogo (literal ou figurativo) do ponto de vista do último homem. Ao tentar parodiá-la de forma direta, tornamo-nos inadvertidamente a punch line. Bem mais engenhoso é se manter à margem e, no momento oportuno, noite alta, sem lua e vento, no ápice da nossa “primavera invertida”, mergulhar contra a corrente e se manter lá no fundo, enquanto tiver fôlego. E, ao que eu saiba, ninguém tem mais fôlego que Thomas Pynchon.

Fimnício

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Terminei outro dia a leitura do Finnegans Wake, de James Joyce. Usei a edição da Penguin com introdução de John Bishop e a tradução de Donaldo Schüler lançada em cinco volumes pela Ateliê. Os posts que escrevi (links abaixo) são anotações feitas desorganizadamente no decorrer da travessia.

Muito embora eu tenha lido o romance de forma linear (problemático usar esse termo aqui, eu sei), as notas circulam livres. São elucidativas (para mim) na medida em que documentam essa primeira travessia; espero que sejam elucidativas para outros que se dispuserem a ler o romance. A exemplo do Ulysses, o Finnegans Wake é algo a ser relido e treslido (inclusive de forma “atravessada”, não linear); ambos se abrem na medida em que os revisitamos, e (a exemplo do que aconteceu com minhas notas de primeira leitura do Ulysses) o mais provável é que, quando tiver voltado ao livro, essas anotações soem pedestres e/ou infantilmente entusiasmadas, em vez de esclarecedoras ou sequer pertinentes.

E, é claro, há inúmeras coisas que não abordei nelas (exemplos: no longo capítulo no pub, II.3, o modo como a história do casal de protagonistas é delirantemente reimaginada pelos gêmeos; a jornada de Shaun pelo Liffey num barril, quando é abordado pelos anciões e obrigado a responder questões concernentes à carta que leva consigo, em III.1; a própria carta atravessando a narrativa, referida inúmeras vezes, ciscada, protegida, transportada, eludida e, por fim, confundindo-se com ela; em III.2, Shaun/Jaunt se dirigindo à irmã e suas amigas, um longo sermão repleto de carga incestuosa, antes que, no capítulo seguinte, a voz de HCE rimbombe mediúnica e pateticamente, posto que se vê obrigada a mais uma defesa do próprio caráter; etc.) e que, em releituras, tentarei cobrir.

Enfim.

Os olhos sempre procuram retornar ao que os agrada. Na companhia do Finnegans, abril foi o mais doce dos meses. Sou um outro após a travessia. Uma vez do outro lado, que vem a ser o mesmo, transformado, sinto-me mais apto a seguir buscando aquela terceira margem.

Finnegans Wake: notas (I) — (II) — (III) — (IV)

Imagem: Robert Berry.