O fim da democracia

O fim da democracia

Artigo publicado n’O Popular em 14.11.2017.

Manifestantes contra e a favor de Judith Butler protestam no Sesc Pompeia

Há uma semana, um bando de infelizes foi à porta do SESC Pompeia, em São Paulo, e ateou fogo a uma boneca da filósofa norte-americana Judith Butler. Doutora por Yale e professora de Literatura Comparada na Universidade da Califórnia em Berkeley, Butler participava ali do colóquio “Os Fins da Democracia”. Ela é tida como uma referência nos estudos de gênero, mas o escopo de suas reflexões é mais amplo do que a manada zurrante poderia supor. O título de um livro seu lançado há pouco no Brasil, por exemplo, é autoexplicativo: Caminhos Divergentes: Judaicidade e Crítica do Sionismo (Boitempo). O termo “fins” no nome do colóquio se refere, claro, às finalidades e propósitos da democracia, mas, levando-se em conta o miserável estado anímico do mundo hodierno, também alude aos possíveis colapsos dessa forma de organização política. Vide a democracia brasileira, que nunca foi lá muito vigorosa e caminha (cavalga?) a passos largos para a morte. Mais uma.

Um sintoma do falecimento em curso reside no fato de que boa parcela da nossa população, animada pelo obscurantismo em voga e por uma quantidade grotesca de preconceitos, não tem capacidade intelectiva para ler qualquer coisa que Butler tenha escrito, mas sente-se muitíssimo bem marchando com tochas e berrando: “Queimem a bruxa!”. Deixando bem claro: Butler, aqui, é apenas o exemplo que tenho à mão. Este texto não é sobre as ideias dela, mas sobre a reação desarrazoada dos fascistas locais e o que tal reação tem a nos dizer acerca da metástase que corrói o Brasil.

Acredito que a vivência democrática é, dentre outras coisas, intrínseca ao ato de enxergar, ouvir e ler o outro. Ou seja, é lendo e conversando que compreendemos o próximo e o lugar que ele ocupa no mundo. Ler Problemas de Gênero, talvez o trabalho mais conhecido de Butler, não implica, necessariamente, em concordar com ela, mas é imprescindível para que (se for caso) se possa discordar de forma civilizada e/ou ver até que ponto sustentamos as nossas próprias ideias. E discordar de forma civilizada significa argumentar de maneira coerente, sem apelar para o uso de tochas, sem agredir, sem resvalar na histeria energúmena dos que não admitem nada diferente de si.

O Brasil é um país de iletrados e, enquanto tal, incapaz de pensar a si próprio e enxergar o outro, pois não dispõe de um aparato não só conceitual, mas também (e consequentemente) prático para tanto. Se as nossas ideias não são ideias, mas grunhidos e esperneios preconceituosos, como é possível fundamentar e sustentar algo parecido com uma democracia, que, por definição, nasce e se alimenta das diferenças e das formas como tais diferenças conversam entre si? Não por acaso, o brasileiro médio – esse monstro – desgosta da democracia e, em casos extremos, nostálgico da ditadura, faz campanha para censurar obras e pessoas das quais discorda e usa qualquer pretexto para acender uma fogueira a fim de queimar aquelas mesmas obras e pessoas.

Cada um dos que relinchavam contra Butler diante do SESC Pompeia é, em si, um fim (no sentido de término, morte) da democracia brasileira. Cada um deles encerra uma morte e enterra qualquer possibilidade que teríamos de conviver com um mínimo de racionalidade e afeição para com o outro, por mais diferente que ele seja e/ou pense. Todos são cadáveres que, sem saber, celebram a própria morte, queimando a si próprios no fogo em que julgam obliterar (e no qual tentam atirar) o semelhante.

[Foto: Tiago Queiroz/Estadão.]

Do lugar mais sombrio

Resenha publicada na edição de hoje do Estadão.

“Inverno e silêncio”, escreve Martim, narrador de A Noite da Espera, logo no começo desse volume com o qual o amazonense Milton Hatoum abre a trilogia O Lugar Mais Sombrio. Exilado em Paris no final dos anos 1970, o protagonista relembra o que vivenciou em Brasília entre 1968 e 1972, período mais violento da ditadura militar. É um romance de formação que, dado o contexto político-repressor no qual se desenrola, é também um romance de deformação: Martim amadurece enquanto o país apodrece e, feito “as pétalas duras de uma flor vermelha” do cerrado, “exala um perfume torpe”. É triste constatar que tal perfume ainda não se dispersou.

A narrativa é estruturada como uma sucessão de anotações em um diário, as quais são revistas e organizadas no exílio pelo protagonista, e acompanha Martim desde os dezesseis anos. Ele passa pela separação traumática dos pais, ainda em 1967, após a qual se muda de São Paulo para o Distrito Federal. A mãe, Lina, deixa o marido para se casar com um artista plástico, com quem depois irá para o interior de Minas Gerais, alimentando o distanciamento surdo, quebrado (mas jamais vencido) pelas cartas que eventualmente troca com o filho. O pai, Rodolfo, é um engenheiro que parece incapaz de poupar Martim da revolta que sente por ter sido abandonado, uma “sombra enorme, a três passos da soleira da porta”, espiando enquanto o rapaz lê as raras notícias que recebe da mãe.

Em que pesem as saudades e os mal-entendidos, como na passagem em que Martim viaja a Goiânia para se encontrar clandestinamente com Lina e acaba passando a noite sozinho em um hotel na avenida Goiás, acompanhado apenas pela leitura de A Educação Sentimental, de Flaubert, o distanciamento da mãe é físico, mas não afetivo. Por outro lado, o alheamento de Rodolfo, a despeito de Martim viver com ele sob o mesmo teto (ao menos por um tempo), é amplo, geral e raivosamente irrestrito, e incrementado por posições políticas divergentes.

Assim, estudando a princípio no Centro de Ensino Médio e depois na Universidade de Brasília, convivendo com uma trupe que inclui a filha de um senador pró-ditadura e o filho de um diplomata afastado pelo regime, errando desprotegido por uma Brasília cheia de “armadilhas”, de um “silêncio precário”, “a província mais espaçosa do país”, testemunhando e às vezes sofrendo na pele a mão pesada da repressão, Martim cresce. Participa de uma montagem natimorta de Prometeu Acorrentado, cujo aborto é assistido pelo próprio ditador Médici, ajuda a editar uma revista com artigos, poemas e traduções, a “nova liberdade jorrando do Planalto” (publicação que previsivelmente lhes trará problemas), trabalha na mítica Livraria Encontro e se deixa levar pela noite adentro, um “viajante imprudente” acompanhado por outros.

Hatoum imprime urgência à narrativa de tempos conturbados, equilibrando ocorrências familiares e acontecimentos históricos de tal modo que estes espelham aquelas e vice-versa. Dados o distanciamento materno e a ausência paterna, é como se Martim se constituísse no olho do furacão, um “órfão” girando ali com os olhos bem abertos. Seu amadurecimento se dá no vácuo do lar implodido e à sombra da brutalidade ditatorial, no útero metastático da República que, ainda hoje, insiste em devorar seus cidadãos – A Noite da Espera aponta para a continuidade do “inverno de nosso descontentamento”. É, portanto, um romance necessário sobre o nosso caráter disfuncional. Que os volumes seguintes sigam esmiuçando a doença republicana que nos acomete.

Fonseca

Texto publicado hoje n’O Popular*.

Rubem-Fonseca-woo1

Há uns dez anos, quando iniciava minha carreira e sentia aquela necessidade tão inescapável quanto adolescente de autoafirmação, disse, em uma enquete feita pelo jornal O Globo com vários (então) jovens autores, algumas coisas bem desagradáveis sobre a obra do escritor Rubem Fonseca. De um jeito ou de outro, sempre procuramos matar os nossos pais, e os contos reunidos em livros como Os Prisioneiros, A Coleira do Cão e O Cobrador foram importantíssimos para a minha formação como leitor e, por decorrência, como escritor. Ocorre que, em 2007, com um romance publicado, um romance cru, violento, desbragado, eu estava de saco cheio que muitos viessem identificar, ainda que (às vezes) positivamente, a óbvia influência de Fonseca (e outros) na minha escrita, e disse ao jornal que o autor de Agosto estava morto e enterrado, que seus livros mais recentes eram ruins, pedestres, constrangedores, e que as coisas que eu fazia nada tinham a ver com ele.

Eu estava errado. Grosseiramente errado.

Porque as coisas que eu fazia então tinham, sim, muito a ver com a liberdade e a agressividade que encontrara na ficção de Fonseca. Porque não me parece correto e muito menos educado se referir a um autor dessa estatura com tamanho desrespeito. E porque seus livros mais recentes não são ruins, pedestres e constrangedores.

Eu não estava sozinho nesses ataques. Poucos escritores são hoje tão malhados quanto Fonseca. Quando do lançamento de Calibre 22, meses atrás, houve quem dissesse que seria melhor que ele parasse de escrever. Não consigo pensar em nada mais cretino para se dizer a/sobre um colega. Por mais que eu despreze o trabalho de vários autores, jamais me daria ao trabalho de dizer ou sugerir que fulano ou beltrano arranjasse outra coisa para fazer. Somos livres para escrever (ou não) o que quisermos, assim como somos livres para ler (ou não) o que quisermos. Ora, um escritor que diz a outro que pare de escrever é um escritor que sequer deveria ter começado a escrever.

Para o meu gosto, e por enquanto, o último grande livro de contos lançado por Fonseca foi Pequenas Criaturas, em 2002. Mas afirmar isso não significa desconsiderar sua produção posterior. Ainda é possível encontrar o melhor dele em Amálgama, Histórias Curtas e Calibre 22. Ao resenhar Amálgama para o Estadão, em 2013, afirmei que os “narradores de Fonseca deitam seus olhos exaustos sobre uma realidade tão esgarçada quanto incompreensível”, e que o autor “traduz um mundo no qual a valoração, qualquer que seja, perdeu a razão de ser”, pois “sequer faz mais sentido falar em termos de barbárie e civilização”. Se, em contos clássicos como “Feliz Ano Novo” e “O Cobrador”, “ele percebeu as rachaduras no teto e nas paredes”, agora “se dedica a documentar as ruínas”.

Pois bem. Em um momento de nossa história no qual a intolerância, a venalidade e a violência atingem níveis absurdos, não podemos nos dar ao luxo de ignorar a obra ainda em progresso de Fonseca (e as formas como ela é muitas vezes recepcionada e (mal) lida por aí). Em Calibre 22, atentem para contos como “Réveillon”, “Gastronomia” e “Mildred”, por exemplo. Temas e recursos técnicos familiares à prosa do autor são explorados, mas com o peso e a consciência de que, frente a uma realidade que suplantou seus pesadelos literários mais brutais, só é possível seguir narrando com uma autoironia que não esconde um extremo desarvoramento. Fonseca dá prosseguimento àquele processo de documentação das ruínas, o que o torna tão imprescindível em 2017 quanto era em 1963.

Ishiguro

kazuo-ishiguro

Kazuo Ishiguro é o Nobel de Literatura 2017. Achei uma bela escolha. Abaixo, alguns links (em inglês) que vocês talvez curtam.

Summer After the War, conto publicado na Granta #7.
A Village After Dark, outro conto (este saiu na New Yorker).
Figuring the Real: Ishiguro’s When We Were Orphans, ensaio de Brian Finney.
Rereading The Remains of the Day, artigo de Salman Rushdie.
The Art of Fiction No. 196, entrevista do autor para a Paris Review.

 

Passeio de roda-gigante

Resenha publicada ontem no Estadão.

No quinto thriller protagonizado pelo professor Robert Langdon, o norte-americano Dan Brown leva seu personagem à Espanha. Lá, como de praxe nos livros do autor, o assassinato de uma figura proeminente expõe uma conspiração que pode – ou não – envolver organizações como a Igreja Palmariana, seita controversa e ultraconservadora, dissidente do catolicismo romano, e até mesmo membros (fictícios) da família real. O famigerado “simbologista” se vê em mais uma de suas aventuras, por assim dizer, “ilustradas”, um quebra-cabeças que envolve sangue, pseudoerudição, correria e, neste caso, uma tentativa de afinal conciliar dois campos aparentemente incompatíveis: religião e ciência (atentem para a fala de Langdon, já perto do desfecho, envolvendo os termos “padrão” e “código”). A exemplo dos romances que o antecedem, Origem é um passeio de roda-gigante. Não é inteligente exigir dele muito mais do que isso.

Quanto ao enredo, há sempre o risco de falar demais e estragar as reviravoltas que, semeadas com esmero pelo autor, brotam de suas páginas (uma das mais divertidas envolve ninguém menos que o rei da Espanha), mas vamos lá: em Bilbao, um desses gênios high-tech bilionários, o “futurólogo” Edmond Kirsch, está prestes a fazer um anúncio no Museu Guggenheim. Ele promete “erradicar o mito da religião” e encetar uma nova etapa na aventura humana, pois, segundo afirma, fez uma descoberta que “responde claramente” a duas questões fundamentais sem recorrer a Deus: “De onde viemos? Para onde vamos?”. Langdon está no evento porque o sujeito foi seu aluno em Harvard e é um amigo próximo.

Auxiliado pela diretora do museu, a beldade Ambra Vidal – noiva do príncipe herdeiro da Espanha –, Kirsch investe em uma performance à Steve Jobs que vira um escarcéu dos diabos antes que o anúncio seja feito. A partir daí, Langdon se une a Vidal e, com a ajuda de Winston, uma inteligência artificial que bota o HAL de 2001: Uma Odisseia no Espaço no chinelo, eles vão a Barcelona decifrar qual é, afinal, a descoberta do futurólogo e revelá-la ao mundo. Dado o teor bombástico da coisa, há gente (da Igreja Católica? Da tal Igreja Palmariana? Da própria Coroa?) empenhada em impedir a divulgação, deixando alguns cadáveres pelo caminho e transformando o “simbologista” e sua parceira nos próximos alvos.

Brown alimenta o suspense com habilidade, fragmentando a narrativa para melhor dispor as pistas, muitas delas falsas ou parciais, e o mistério é engrossado em um caldo de sabor familiar. Sequências de ação se alternam com discussões envolvendo desde William Blake até John Steinbeck (uma bela sacada na reviravolta final), passando pelo físico Jeremy England e pelo arquiteto Antoni Gaudí – a Casa Milà e a Basílica da Sagrada Família são cenários de enorme importância no curso da trama.

Óbvio que o pós-humanismo (ou seria um neoiluminismo?) de Origem deve ser encarado como o que de fato é: dentes na engrenagem da supracitada roda-gigante. Quando no alto, até vislumbramos coisas que nos fazem pensar, mas a vista é parcial e distanciada, e logo estamos de novo entretidos com o friozinho na barriga. Noutras palavras, Brown é bem-sucedido no que faz por explorar elementos de perquirições filosóficas e científicas de maneira agressivamente superficial, com vistas a alimentar o suspense e engendrar a reviravolta seguinte – que nunca tarda, e raras vezes decepciona.

Beleza lacunar

Artigo publicado em 25.09.2017 no Blog da Rocco.

atwood

A voz de Grace Marks é a espinha dorsal do romance Vulgo, Grace, de Margaret Atwood. Não se trata de uma voz qualquer, e ela (por si e pelo que representa) é imprescindível para a sustentação e o alcance da narrativa, situada no século XIX, mas que tem muito a nos dizer neste conturbado século XXI.

Aos dezesseis anos de idade, em 1843, Grace foi condenada como cúmplice dos assassinatos de Thomas Kinnear e Nancy Montgomery. Os crimes teriam sido executados por James McDermott, com a ajuda dela – ou assim a justiça entendeu, animada pelo sensacionalismo da imprensa, sentenciando ambos à pena de morte. Graças ao trabalho de seu advogado, a sentença de Grace foi comutada por prisão perpétua. McDermott não teve a mesma sorte e acabou enforcado. Ela cumpriu quase trinta anos da pena, foi perdoada, mudou-se para os Estados Unidos e desapareceu das vistas de todos.

Em Vulgo, Grace, o esforço primeiro de Atwood é no sentido de restituir à protagonista a possibilidade de contar a própria história. Óbvio que se trata de uma recriação ficcional, mas é importante sublinhar que as tentativas anteriores de relatar o que houve, tentativas supostamente não-ficcionais, como Life in the Clearings (1853), de Susanna Moodie, estão repletas de imprecisões, melodrama barato e “licenças poéticas”, para não falar em preconceito e invencionice pura. Assim, e isso talvez seja tão irônico quanto curioso, é por meio de uma narrativa romanesca que nos aproximamos da verdade ou, pelo menos, de uma verdade plausível, coerente.

Atwood estrutura o romance em torno dos longos colóquios de Grace com o (fictício) alienista Simon Jordan, já em 1859. Ela trabalha durante o dia como criada na casa do diretor da penitenciária (coisa que de fato aconteceu). Jordan é contratado por um comitê que milita pela libertação de Grace para entrevistá-la, analisá-la e escrever um relatório. Ela afirma não se lembrar dos crimes, ou de boa parte dos fatos ligados a eles, e o comitê precisa ter uma ideia mais acurada acerca de seu estado mental e saber se ela foi – como afirma – coagida por McDermott.

Escreve a autora no posfácio: “As atitudes em relação a ela refletiam a ambiguidade da época sobre a natureza das mulheres: seria Grace um demônio feminino, um monstro sedutor, a instigadora do crime e verdadeira assassina (…) ou seria uma vítima involuntária, forçada ao silêncio pelas ameaças de McDermott e por temer pela própria vida?”. As referidas “atitudes” são expostas no romance de maneira inteligente, como uma espécie de contraponto, em capítulos narrados em terceira pessoa, e também por meio de cartas, citações e outros expedientes, intercalando as conversas da condenada com o médico. De novo, é o trabalho da romancista procurando nos aproximar de uma verdade justamente a partir da fabulação.

Mas o que Grace conta ao dr. Jordan e a nós, leitores? Que, norte-irlandesa, vai com a família para o Canadá em meados do século XIX. A mãe morre durante a penosa viagem de navio. O pai é alcoólatra e perdulário. A situação da família, que nunca foi das melhores, degenera rapidamente e Grace se vê obrigada a aceitar um trabalho como criada. Passa por diversas casas, sofre outra perda traumática, de sua única amiga, e é então empregada na propriedade de Thomas Kinnear. Este mantém um relacionamento com sua governanta, Nancy Montgomery, que causa buchichos em toda a região. Outro empregado é James McDermott, um sujeito irascível que cuida dos estábulos. Grávida de Kinnear, enciumada (pois teme que ele a troque por Grace) e cansada das grosserias de McDermott, Nancy decide demitir os dois. Aí está o estopim dos assassinatos, cujas circunstâncias e o verdadeiro papel desempenhado por Grace, sobretudo na morte da governanta, são imprecisos.

Como sempre, em se tratando de um bom romance, importam o percurso e a maneira como ele é construído e trilhado pela autora. Por mais que sua voz ocupe boa parte do livro, ou talvez exatamente por isso, Grace jamais é reduzida a qualquer uma daquelas categorias (vítima, assassina, louca, indefesa, perversa, coagida, instigadora etc.), mas brinca com elas e com as nossas expectativas. Atwood mostra, por exemplo, o quanto as percepções alheias acerca do crime são contaminadas pelo fato de duas das envolvidas serem mulheres.

Mas é sobretudo ao restituir ou, melhor dizendo, constituir uma voz possível para Grace que ela expõe a engrenagem preconceituosa e viciada, ainda hoje em plena atividade, que nos prende à categorização supracitada. Para tanto, desde a espinha até a epiderme, Atwood concebe o livro como um organismo dos mais complexos, em que cada voz, cada personagem e cada coisa dita e contradita é uma peça num quebra-cabeças que jamais estará completo.

Na verdade, é exatamente pelas peças faltantes que o romance diz a que veio: sua beleza lacunar reitera o quanto é impossível dizer “tudo” a respeito de alguém ou de nós mesmos, mas demonstra que é perfeitamente factível iluminar aspectos sombrios da nossa existência na medida em que aponta para a persistência dessas lacunas. Em outras palavras, Vulgo, Grace é muito bem-sucedido tanto pelo que diz quanto pelo que cala, e também porque dá voz a uma personagem (mulher, imigrante, pobre, condenada, “louca”) que é usualmente silenciada, ontem e hoje, de um jeito ou de outro.

Em Brasília

Dias Vazios

Hoje, no Festival de Brasília, o filme Dias Vazios será exibido na Mostra Futuro Brasil. Esta comporta sessões fechadas para profissionais de curadoria e seleção de grandes festivais do mundo inteiro. Dirigido por Robney Bruno e ainda em finalização, Dias Vazios é uma adaptação do meu romance de estreia, Hoje está um dia morto, e deverá chegar ao circuito comercial em meados de 2018. Antes, torço para que faça uma bela carreira em festivais.

João 9: 24-25

Jake La Motta morreu. Tinha 95 anos.
Um dos maiores boxeadores — e um dos camaradas mais arrombados — que já passaram por esse mundo.
Sobre ele, Martin Scorsese fez Touro Indomável, um dos melhores filmes da história. Um dos cinco melhores. Fácil.
Escrevi sobre o longa AQUI.
Giacobbe, RIP.

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