Patriotismo

Patriotismo

Artigo publicado hoje n’O Popular.

Há um pequeno vídeo circulando pelas redes sociais desde a outra semana. É um trecho do documentário O Fórum, de Marcus Vetter, sobre os bastidores da edição 2019 do Fórum Econômico Mundial, em Davos. No trecho em questão, acompanhamos um encontro constrangedor (para nós, brasileiros) entre Jair Bolsonaro e Al Gore, ex-vice-presidente dos EUA. Ernesto Araújo, ministro das relações exteriores do Brasil, está por ali atuando como papagaio de pirata.

Começa com Gore dizendo que é um bom amigo do jornalista e ambientalista brasileiro Alfredo Sirkis (falecido há poucas semanas, a propósito). Bolsonaro responde: “Lá atrás, fui inimigo do Sirkis na luta armada”. Gore tira de letra, retrucando — com ironia — que não sabia disso, e que, portanto, trouxe a “pessoa errada” para a conversa. Bolsonaro complementa afirmando ser “capitão do exército”, e diz: “A história recém passada (sic) no Brasil dos militares foi muito mal contada”. (Impossível discordar disso: tivesse sido bem contada, não teríamos tantos energúmenos pedindo intervenção militar e coisas do tipo.) Gore tenta mudar de assunto e diz estar muito preocupado com a Amazônia, pede desculpas por levantar a questão em uma reunião informal (eles estão em uma espécie de coquetel), mas reafirma que é algo que o preocupa bastante. Jair, então, bolsonariza total: “A Amazônia não pode ser esquecida. Temos muita (sic) riquezas. E gostaria muito de explorá-la (sic) junto com os Estados Unidos”. Assim que o intérprete traduz o que o presidente brasileiro acabou de dizer, a reação de Gore é impagável: “I’m not sure what that mean”, isto é, “Não estou certo do que isso quer dizer” — mas no sentido (e no tom) de: “Eu não acredito que ouvi uma imbecilidade dessas”.

Há uma célebre frase atribuída a Samuel Johnson: “O patriotismo é o último refúgio do canalha”. No Brasil, eu diria que é o primeiro, pois é curioso como um político tão enamorado da histeria patriótica se dispõe a dizer para um ex-vice-presidente norte-americano que “gostaria muito” de “explorar” as enormes riquezas da Amazônia “junto com os Estados Unidos”. A coisa é ridícula e absurda sob todos os aspectos. Gore é um notório defensor das causas ambientais. Mesmo que não fosse, mesmo que estivesse disposto a violentar a Amazônia de braços dados com Jair, ele e os Democratas não estavam no poder na época em que se deu a conversa, assim como não estão agora. O que Bolsonaro esperava ao dizer aquilo para ele? Que espécie de aceno é esse? E que recado ele manda não só para Gore, mas para o mundo inteiro? “Venham, estamos de pernas abertas”?

A (péssima) postura do presidente brasileiro já não é novidade para ninguém. O problema não é só a falta de papas na língua, coisa tão festejada pelos apoiadores quanto contraproducente em termos de governabilidade e estratégia política. O problema é a falta de tato, humanidade e inteligência. Sem falar na cara-de-pau: Sirkis foi para o exílio em 1971, e Bolsonaro só ingressou no exército um ano depois; logo, como eles teriam se “enfrentado”? Ademais, o único registro de “participação” de Bolsonaro na luta armada é o fato de que, aos quinze anos de idade, teria denunciado um suposto campo de treinamento de Carlos Lamarca. Longe de pegar em armas contra os inimigos, ele teria apenas — e “patrioticamente” — bancado o alcaguete. Preciso contar essa pro Al Gore.

#CulturaEmCasa

Papeei com Martim Vasques da Cunha sobre gêneros literários e várias outras coisas, de Homero a Ellroy. A conversa foi parte do projeto Diálogos Necessários e exibida ao vivo pelo Cultura em Casa. Veja aqui:

A normalidade do desconforto

Resenha publicada em 10.08.2020 no Estadão.

A certa altura de O Avesso da Pele (Cia. das Letras), lemos algo sobre a “perversidade do racismo”, que impede o indivíduo de “revisitar os próprios infernos”. No entanto, é tal revisita que alimenta o romance de Jeferson Tenório. Um de seus vetores principais está no destrinchar de uma relação paterno-filial, algo que é de certa forma anunciado desde a epígrafe, retirada de Hamlet, o gélido bafejo do fantasma mais famoso da literatura ocidental. Tampouco é por acaso que, em sua maior parte, a narrativa seja endereçada ao pai já ausente e, por conseguinte, a nós — em uma obra crivada de exclusões de toda espécie, a narração em segunda pessoa, aquele “você” tantalizante, está ali para incluir o leitor, convocá-lo, agarrá-lo.

A voz do filho desfia uma orfandade essencial, que abarca também as solidões paterna e materna. O filho — essa voz solitária, percuciente — se chama Pedro; os pais, Henrique e Martha. Boa parte do romance se detém, de forma alternada, nas histórias desses pais. O tom direto procura alcançar algo dessas vivências, dessa lida constante com os “afetos na precariedade”. Os protagonistas são negros, e é inevitável que muito de suas vidas seja condicionado pela raça ou, mais precisamente, pelo racismo. Assim, a “normalidade do desconforto” acompanha cada passo que eles dão, cada escolha, cada desvio, cada recuo, cada avanço, cada salto. Ressalte-se o longo trecho (no quarto capítulo da terceira parte) em que são descritas todas as abordagens policiais sofridas por Henrique ao longo da vida, e “sofridas” é o termo obviamente apropriado, dada a violência estrutural e desestruturante desse tipo de “ação” do Estado.

A brutalidade policial não é a única que atravessa o romance, claro, embora talvez seja a mais evidente, por razões que o leitor perceberá desde o começo (“E ser confundido com bandido vai fazer parte da sua trajetória”). Há outras brutalidades, exploradas com um viés quase antropológico — o advogado “babaca”, o noivado de Henrique com uma moça branca, o primeiro casamento de Martha (sobretudo no que diz respeito à relação com a sogra: “Agora você é da família e isso significa que pode ajudar a manter a casa dos seus sogros limpa também. Uma moreninha forte igual a você pode ajudar bastante”), a crise conjugal, as condições terríveis em que Henrique trabalha como professor de escola pública etc.

São muitos infernos, como se vê, e Tenório investe em um esquematismo convoluto para visitá-los e revisitá-los. Em algumas passagens, os personagens discursam em vez de falar ou conversar, e não raro parecem forçados pelas próprias circunstâncias a mergulhar em algum nível de estereotipização. Há um método aí, e ele serve para lembrar o leitor de que, em nosso país, até a violência opera por clichês, condenados que estamos à trágica reiteração das desgraças cotidianas.

Por outro lado, a melhor passagem de O Avesso da Pele foge um pouco desse procedimento: o professor Henrique encontra uma forma de apresentar Dostoiévski aos seus alunos ou, melhor dizendo, de fazê-los perceber que a São Petersburgo de Crime e Castigo é um estado de espírito bastante familiar, uma paisagem que também lhes diz respeito. O reencontro de Henrique com o prazer de lecionar é efêmero, mas a anormalidade do conforto emociona, sobretudo em um romance que nos mostra a cada página que, no Brasil, o avesso é a norma.

Zeus, um depoimento

 

 

Meu nome é Zeus. Por quase duas semanas, fui chamado de Augusto. Não me incomodei, a princípio. Não obstante meu lugar no píncaro do panteão olimpiano, confesso que achei simpático quando aquele indivíduo de ares desinteligentes me rebatizou com (julguei então e erroneamente) o nome do primeiro dos césares, coveiro da República e de Marco Antônio, fundador do Império, o primeiro da dinastia júlio-claudiana, Gaius Iulius Caesar Octavianus Augustus. Juro pela mancha no meu focinho que não sabia que o Augusto daquela gente era outro. Fui ingênuo, eu sei. Mas o que vocês queriam? Sou um cachorro, sempre espero o melhor das pessoas.

Talvez estivesse obnubilado pela visão do Palácio. Sim, apreciei bastante as dependências em que me instalaram, no coração burocrático desta necrópole planejada por nefelibatas e administrada por calígulas. Preciso dizer que as minhas dependências originais, na aprazível Vila Planalto, não eram ruins. Sempre fui bem tratado, e só cavei um buraco nas proximidades do portão e me evadi por um motivo, digamos, lúbrico. Se o próprio Zeus divino não media esforços para seduzir alguma fêmea — vide a ocasião em que ele se transformou em cisne para seduzir Leda, e Leda se viu tão absorvida que, dos ovos que chocou (sim!), nasceram a belíssima Helena, e também Clitemnestra, Castor e Pólux —, por que eu, Zeus canino, haveria de me conter ante a visão e o cheiro de uma digníssima cadela?

Sim, foi isso. Vi a cachorra, fugi, entreguei-me à luxúria. Em minha defesa, sustento que era uma cadela e tanto, e que a corte se prolongou por quilômetros. Quando enfim nos acoplamos, quando enfim ela acedeu e teve lugar o doce concubitus, fiquei tão emocionado que sequer me ocorreu que estava longe de casa e perdido. Tal percepção só veio depois, quando já me encontrava exangue pelos olorosos trabalhos de Vênus. Despedi-me de Deméter (a cadela), que afirmou ter hora marcada com o adestrador, e olhei ao redor. Indeciso sobre que rumo tomar, optei cegamente pela direita. Tempos depois, em desespero, fui resgatado por aquela gente.

A vida de um cão pode ser aventurosa. Ademais, como afirmei há pouco, ser rebatizado era algo previsível, e qualquer nome que escolhessem estaria abaixo de Zeus, por óbvias razões. Reitero: quando ouvi a voz de corvo gripado do pater familias anunciar que eu passaria a me chamar Augusto, julguei que se referia àquele César e aquiesci, ignorando o óbvio: um estulto como ele jamais teria lido Suetônio. Assim, os problemas começaram quando descobri que não era ao nobilíssimo Caio Otávio que ele se referia ao me renomear, mas àquele outro Augusto, um certo Pinochet, verme e ditador — nada a ver com a figura romana do dictator, bem entendido — que corroeu a alma das plagas chilenas, torturando e assassinando milhares. Fiquei caninamente deprimido. Por obra e graça de um palerma, fui deposto do Olimpo e socado na fossa séptica da História.

O que aconteceu a seguir é de conhecimento público. A família decidiu me expor em uma rede social. Fui reconhecido pelo meu antigo dono e a ele devolvido. No entanto, como se eu fosse personagem de uma sátira menipeia, o nome Augusto foi mantido, acrescido a Zeus. Derrisão! Não por acaso, Deméter não retorna minhas ligações.

Covas estreitas

Artigo publicado hoje n’O Popular.

Um tio da minha esposa faleceu há alguns dias. Covid-19. Ficou quase vinte dias hospitalizado, vários deles entubado. Não pôde se despedir da esposa, dos filhos, de ninguém. Não houve velório. E não puderam enterrá-lo no jazigo da família. A viúva, acompanhada por alguns parentes, poucos, foi ao cemitério. A paisagem era de covas abertas, aquela infinidade de bocas escancaradas para o nada, como se o próprio chão estivesse estupefato, aterrorizado.

Isso foi na segunda-feira da semana passada. Fazia sol em São Paulo. Um belo dia de outono. E a tia observou uma quantidade enorme de enterros ocorrendo às pressas, um atrás do outro, como se acompanhasse uma linha de montagem da morte, ou uma linha de desmontagem, de descarte. Ela pôde observar isso porque a cova destinada ao marido era estreita demais. Então, teve de esperar que outra cova fosse designada ao corpo (creio que o alargamento da primeira também foi cogitado).

Como se não bastasse, ela ainda assimilava o soco sofrido na véspera: por engano, foi chamada ao hospital com a informação de que o marido se recuperara e estava na enfermaria; lá chegando, soube da verdade. Do alívio à dor extrema. Do esboço de um sorriso ao soco no meio do peito. Cada morte arrasta outras consigo, literais e não literais, porque eu não saberia dizer se essa mulher continua viva depois de tudo isso. Não sei se eu continuaria.

E a cova estreita demais? Os coveiros, cavando sem parar há meses, cavando cada vez mais, exaustos, braços e costas moídos, as juntas estalando, mãos estouradas, as narinas entupidas com o cheiro da terra e da morte, ouvidos zunindo com o choro e os berros, os olhos ardendo com o que veem, não querendo saltar das órbitas, mas, sim, mergulhar no aconchego interior, desaparecer crânio adentro — ora, é compreensível que os coveiros tenham calculado mal, cavado às pressas, algo do tipo. Quantas covas cada um deles cava por dia, todos os dias? Haverá espaço para todas elas? E se todas precisarem ser alargadas? E se não tivermos espaço físico para todos os nossos mortos?

Criança ainda, crescendo em uma cidadezinha no interior de Goiás, lembro de ir a um enterro e olhar ao redor. Os limites do cemitério eram precisos. Contando as pessoas presentes, tentei calcular se todas caberiam ali quando chegasse a hora. Não me parecia possível. Seriam enterradas umas sobre as outras? Eu me lembro da terra molhada, escorregadia, e do cheiro que emanava. Não era um dia ensolarado. Havia chovido. Lembro da lama nos solados dos meus sapatos. Lembro de não saber onde colocar as mãos. Lembro de olhar para os familiares do morto e pensar que eles também não pareciam saber; seus movimentos eram estranhos, antinaturais, convulsionados. A morte exige muito do corpo de quem continua vivo, de quem encara a boca aberta no chão, de quem testemunha a descida.

Talvez a cova estreita seja um apelo inconsciente dos coveiros. Eles não aguentam mais. Talvez a estreiteza seja uma forma de dizer isso, de se recusar a enterrar mais corpos. Chega. Mas a doença não trabalha assim. Os criminosos que permitiram à doença escalar com tamanha ferocidade não trabalham assim. Talvez sejam eles os alargadores de covas. Alargam e, covardes, desviam os olhos. E aqui nos deixam, sozinhos com os nossos mortos, à beira da enorme cova estreita que se tornou esse país.