Gaddis: links

Mais do que palavras

Artigo publicado hoje n’O Popular.

Mais de uma centena de corpos enterrados em Manaus em um único dia. Em valas comuns. E o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, vai à entrevista coletiva que deveria ser de técnicos e especialistas em saúde pública, o momento em que atualizariam os hórridos números de infectados e mortos pela Covid-19 e reforçariam as diretrizes da Organização Mundial da Saúde para que enfrentemos a pandemia com o menor número de baixas possível, o tal general vai a uma coletiva que deveria ser técnica, informativa, e tem a pachorra de pedir à imprensa que “não dê tanto destaque” às covas, aos caixões e às mortes. Isso aconteceu na quarta-feira, dia 22 de abril.

Um general pedindo à imprensa que “esconda” corpos. Um general pedindo à imprensa que não faça o seu trabalho. Um general pedindo à imprensa que não informe. Um general pedindo à imprensa que não noticie o resultado óbvio da incompetência e da estupidez criminosas do governo federal. Sim, porque os resultados óbvios das paranoias, das birras, dos flertes ditatoriais, dos crimes de responsabilidade, da falta de humanidade e de empatia, da burrice, das saidinhas à padaria e às manifestações de imbecis (contratados e pagos por outros imbecis), enfim, os resultados óbvios da presidência e dos discursos de Jair Bolsonaro são os cadáveres e as valas comuns.

Se você acha que estou exagerando, sugiro que acesse ajzenman.com ou ssrn.com e leia um artigo científico intitulado “More than Words: Leaders’ Speech and Risky Behavior During a Pandemic” (em tradução livre: “Mais do que palavras: os discursos dos líderes e o comportamento de risco durante uma pandemia”). O artigo, assinado por Nicolás Ajzenman (Fundação Getúlio Vargas), Tiago Cavalcanti (Universidade de Cambridge) e Daniel Da Mata (também da GV), é resultado de uma pesquisa feita no Brasil combinando dados eleitorais e informações de geolocalização de mais de 60 milhões de telefones celulares.

Em resumo, ao cruzar esses dados, os pesquisadores descobriram o seguinte: em regiões nas quais se concentram apoiadores de Bolsonaro, sempre que o presidente faz um discurso contrário às orientações de isolamento e distanciamento social, os cidadãos afrouxam ou ignoram quaisquer cuidados, saem à rua, circulam mais e, claro, expõem-se e expõem os outros ao risco de contágio. Ou seja, são “mais do que palavras” — as falas e atitudes de Bolsonaro têm influência direta no comportamento de parte da população e, portanto, no número de infectados, internados e mortos pela Covid-19. Não por acaso, em áreas nas quais residem relativamente menos bolsonaristas, as pessoas são menos influenciadas pela “retórica” presidencial, isto é, elas ficam mais em casa, respeitando a quarentena, a própria vida e as vidas dos semelhantes.

É difícil, e muitas vezes inútil, usar argumentos racionais com certa parcela da população. Muitos buscam “informações” em grupos de aplicativos, não checam as fontes (nem saberiam como), acreditam em teorias conspiratórias estapafúrdias e proliferam mentiras. “Orientados” por um presidente com nenhum apreço pela vida humana, encaminham-se para a vala comum, levando consigo gente que nada tem a ver com isso. Bolsonaro é criminoso e faz com que outros ajam criminosamente.

Ausências calcinadas

::: Os doze narradores de Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo têm em comum “a certeza do efêmero” de que nos fala a epígrafe virgiliana do romance. Não são vozes que nos chegam, mas, conforme aquela estruturação típica em António Lobo Antunes, ecos e estilhaços de vozes coalhados de outras vozes, outros ecos, outros estilhaços. Não é bem uma polifonia, mas o indício de uma derruição, espécie de poliafasia em constante recrudescimento.

::: O romance é dividido em prólogo, três livros e epílogo. A trama envolve as sucessivas viagens de agentes portugueses à Angola pós-independência e ainda (e sempre) em guerra para recuperar diamantes contrabandeados, mas não só para isso. Os eventos colocam em loop infinito a descida conradiana: cada um daqueles homens viaja (retorna) ao coração das trevas também com a missão de trucidar aquele que o precedeu. Alguns deles, mais do que diamantes, tentam (sem sucesso) contrabandear as próprias vidas, desaparecer no interior ou alhures, mais ou menos como aquele Kurtz. Sublinhe-se, aqui, a imagem recorrente de touros indo para o abate, um após o outro. Ao se lançar à vampirização da ex-colônia, os agentes são engolidos por ela e — o que é mais irônico — pelos próprios conterrâneos; cada “alvo” é “um português que nos anda a deixar mal em Angola”, como diz um superior ao agente Seabra (p. 31). E assim eles vão se devorando e se deixando devorar pelos mabecos, pelo fogo, pela terra “vermelha ou amarela”, a depender dos olhos de quem vê.

::: Os doze narradores: Seabra e Marina (mestiça, sobrinha de um contrabandista) tomam conta do prólogo e do primeiro livro; Miguéis (outro agente), sua esposa e a filha (morta) nos falam no segundo livro; Major Morais e os cinco contrabandistas que persegue com apoio militar norte-americano se alternam no terceiro livro; por fim, a voz infantil da filha do diretor do Serviço (órgão responsável pelo envio dos tais agentes) assume o epílogo, cuja forma é de uma redação escolar do tipo “minhas férias”. Os cinco contrabandistas do terceiro livro são Gonçalves (referido em outras passagens como Correio), Mateus (“o do mapa”), Mendonça (“o da coronha”), Sampaio (“— Não há passaporte nem dinheiro nem bilhete de barco vão matar-te como aos outros Sampaio”, p. 496) e Tavares (“o ferido”).

::: Cada livro tem dez capítulos, e todos são crivados de vozes alheias, soltas, que invadem e corroem a narrativa, criando um delírio no qual se misturam lembranças familiares e lembranças de guerra — como se estas e aquelas não fossem uma só coisa, não é mesmo? Em momentos, a voz de outro personagem (por exemplo: a filha morta de Miguéis a certa altura do quinto capítulo do livro três) assume a primeira pessoa, às vezes “a pedido” do próprio narrador, momentaneamente incapaz de dar prosseguimento à história: “escreve isto por mim filha, acaba isto por mim, assina com o teu nome, impede-me de dizer o que falta” (p. 285). Note-se que, no exemplo citado, Miguéis implora por um impedimento.

::: Esses ruídos e atravessamentos narrativos também funcionam como mais um indício das inúmeras formas de violência que têm lugar no decorrer do romance. A palavra nunca chega, nunca é suficiente para dar conta desse emaranhado de desgraças, e é por isso mesmo que Lobo Antunes investe em seu esgarçamento desde a estrutura do livro. E este é tão bom quanto a sua incompletude essencial, seu constante desmoronar, seu desfazer-se ao menor toque, seu esvaziar-se da memória e dos traumas sem explicitá-los ou sequer compreendê-los de todo, sua aceitação das ruínas, em suma, seu entregar-se à impossibilidade de narrar por completo e “linearmente” aquilo que é ruinoso, faltante, lacunar e, claro, insuportável.

::: Ora, ainda circula por aí aquela assertiva tola e vazia segundo a qual “a ficção não dá conta da realidade” ou “a realidade ganha fácil da ficção”. Autores como Lobo Antunes — a rigor, qualquer escritor digno de nota — sabem muito bem disso, e sabem que não se trata disso. Não há experiência que seja representável ou traduzível por inteiro, e a literatura desliza por essa incompletude, faz dessa contradição — narrar o inenarrável, representar o irrepresentável, traduzir o intraduzível — a sua força. À certeza do efêmero, juntamos a certeza da fratura. Narrar é faltar.

::: É por isso que, em Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo, tudo e todos são “ausências calcinadas”, todos aludem a uma “Luanda incompleta”, cuja nitidez “até o fim da baía” é elusiva, enganadora, fugidia. Não por acaso, Miguéis hesita em “definir a cor do mar”, “nem azul nem verde, porque não roxo transparente, um escarlate mas diáfano, como que aceso por baixo” (p. 241), a cor da terra é às vezes referida como amarela, às vezes como vermelha, as árvores mudam “de nome com a vinda da noite”, restamos cercados por “ruídos sem cor” (p. 368), “julgamos que somos e não somos, não há nós, há os mil ecos do que apenas se torna casa quando o abajur se ilumina” (p. 372), perdidos “onde não só as pessoas e as palavras se desvanecem, o passado também, um soluçozito de vida ou nem sequer vida, a imprecisão dos sonhos” (p. 379).

::: Outra formulação recorrente no romance diz respeito à “demora” para se “contar uma história”. É uma frase repetida sobretudo pela filha de Miguéis, justo ela, que nos fala de sua cova no cemitério do Montijo e que teria todo o tempo da morte à disposição. Ocorre que até mesmo a extensão do domínio da morte no corpo da narrativa remete àquela incompletude essencial.

::: Reitere-se: tudo em Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo é uma voz que falta e que, no entanto, fala justamente para comunicar de alguma forma, ou de muitas e muitas formas, essa falta. Aqui, tudo bebe “o próprio silêncio” para melhor regurgitá-lo na página, tudo é uma lembrança “cheia de vincos, rasgada” (p. 213). Nesse sentido, enquanto índice de tudo que nos olha “com as feições vazias” (p. 420), os limites do pesadelo traçados por Lobo Antunes são precisos, a fratura se mostra certa e por inteiro, e a fuga é apenas outro caminho que leva à extinção: “— Vocês morreram calem-se” (p. 554). Mas não nos calamos. Por que nos calaríamos?

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Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo foi lançado em 2003. A edição brasileira (também de 2003) é da Objetiva.

Estupidez criminosa

Artigo publicado hoje n’O Popular.

Há uma semana, o presidente Jair Bolsonaro fez um pronunciamento em rede nacional no qual se posicionou contrariamente às recomendações da Organização Mundial da Saúde e aos apelos e ações de especialistas, governadores e prefeitos quanto ao isolamento como forma de mitigar o avanço da pandemia de Covid-19. Foi, até aquele momento, a maior demonstração de estupidez criminosa e desumanidade não só do governo atual, mas, talvez, de toda a história republicana brasileira. Coisas muito piores virão.

Como escreve o filósofo Eric Voegelin em Hitler e os Alemães (tradução de Elpídio Mário Dantas Fonseca, É Realizações): “a estupidez não é criminosa em si, mas pode tornar-se criminosa pela circunstância social. Então, quem quer que, como estúpido, num lugar da sociedade em que não poderia estar, dá ordens ou tenta instruir outros, é um estúpido criminoso; e por causa disso ele se torna um criminoso, mesmo que ele próprio não entenda assim de maneira nenhuma”.

Bolsonaro é um estúpido criminoso. Ao contrariar o trabalho do próprio Ministério da Saúde, ao ridicularizar o esforço desempenhado por profissionais de um sistema à beira da saturação e, acima de tudo, ao ignorar a dor das pessoas que adoeceram e/ou perderam parentes e amigos no decurso da pandemia, ele alargou os limites — já consideráveis — da própria boçalidade.

No dia do tal pronunciamento, o Brasil já contabilizava quarenta e seis vítimas da pandemia. Mesmo que fossem quatro ou seis, mesmo que fosse uma, nada justifica, nada desculpa aquela demonstração pública e antipresidencial de violência. Sublinhe-se que, em nenhum momento, Bolsonaro externou os pêsames aos familiares dos mortos. Ressalte-se que seu vômito discursivo não passou de um ataque grotesco, tenebroso e desvairado à ciência, à moralidade, ao bom senso e, por tudo isso, à própria população brasileira.

A pergunta “por que fechar escolas?” é um dos vários monumentos à estupidez criminosa erigidos por Bolsonaro não só naquela, mas em todas as suas falas e intervenções. Como se crianças não fossem vetores de contaminação. Como se, infectadas, não pudessem transmitir o coronavírus aos pais, tios, avós. Tal insistência em ignorar a responsabilidade que todos devemos ter para com o próximo dá bem a medida do bolsonarismo enquanto categoria criminosa.

Naquele mesmo livro, Voegelin afirma que “o conceito de estupidez, de insensatez, de perda da razão, a condição pneumopática, e assim por diante, não são termos de xingamento, mas termos técnicos para a análise da estrutura espiritual. Se eu quisesse proibir o emprego dessas expressões porque não são empregadas na sociedade polida, nunca se poderia analisar de maneira nenhuma um grande número de fenômenos políticos”.

Pneumopatologia foi um termo empregado por outro grande pensador, Schelling, para dar conta de um distúrbio que não é “apenas” psicológico ou psiquiátrico, mas sobretudo anímico. Trata-se, figurativamente falando, de uma doença espiritual. Em outras oportunidades, aqui mesmo neste espaço, julgo ter apontado variantes dessa enfermidade tanto à direita quanto à esquerda. Bolsonaro está abaixo de todos eles. Com seu “histórico de atleta” da baixeza, ele é um ponto fora da curva, o índice maior de uma queda em progresso — dele, nossa, do país.

Contra o isolamento

O caderno Pensar, d’O Estado de Minas, fez esse guia aí. Eu fui um dos indicaram cinco calhamaços. A matéria é assinada pelo jornalista e escritor Carlos Marcelo. Leia AQUI. Também participei do podcast do caderno, falando um pouco sobre o Ulysses. Ouça AQUI.

Abaixo, replico as minhas indicações:

ULYSSES, James Joyce. 912 páginas.
Tradução: Bernardina da Silveira Pinheiro. Ed. Objetiva/Alfaguara.
Uma das coisas legais de se indicar Ulysses é que isso envolve pelo menos outros dois livrões: Ilíada e Odisseia. É possível ler Joyce sem ir a Troia e retornar a Ítaca? Claro que é. Mas ter com Homero é algo tão esplêndido que eu sempre sugiro a refeição completa. Quanto ao Ulysses, essa obra-prima divertidíssima e inventiva, um dos três livros mais engraçados que já li (os outros são JR, de William Gaddis, e Lucky Jim, de Kingsley Amis), aqui vai outra dica: caso você não seja fluente em inglês, há três traduções brasileiras do romance; para uma primeira leitura, opte pela versão de Bernardina da Silveira Pinheiro, mais palatável, com notas e textos introdutórios a cada capítulo. E divirta-se.

MIDDLEMARCH, George Eliot. 884 páginas.
Tradução: Leonardo Fróes. Ed. Record.
George Eliot é o pseudônimo de Mary Ann Evans (1819-1880), uma das autoras mais importantes da era vitoriana. Subtitulado “Um Estudo da Vida Provinciana”, Middlemarch se debruça sobre as vidas de uma teia de personagens em um momento histórico (imediatamente anterior à ascensão da Rainha Vitória ao trono) prenhe de mudanças políticas e sociais. Situado na cidade fictícia do título, o livro espelha muito bem esse período convulsionado em uma de suas protagonistas, Dorothea, pessoa inteligente e audaciosa, mas presa em um casamento que se depaupera como a velha ordem das coisas.

BOA TARDE ÀS COISAS AQUI EM BAIXO, António Lobo Antunes. 568 páginas.
Ed. Objetiva.
Difícil escolher um só calhamaço na obra de Lobo Antunes, o maior escritor vivo de língua portuguesa. Que tal Fado Alexandrino, Não entres tão depressa nessa noite escura ou Que farei quando tudo arde? Opto por Boa tarde por ter sido o primeiro dele que li. Seu enredo envolve as viagens de agentes portugueses que, em períodos subsequentes, vão à Angola pós-colonial recuperar diamantes contrabandeados. Com isso, perpetuam a vampirização do país africano (mas também se estrepam). A estrutura estilhaçada mistura as vozes e os tempos narrativos e obriga o leitor a um recompensador trabalho de prospecção e, por que não dizer, cocriação.

EXPLOSÃO, Hubert Fichte. 844 páginas.
Tradução: Marcelo Backes. Editora Hedra.
Não me conformo que esse livro extraordinário, lançado em 2017 no Brasil, tenha merecido tão pouca atenção. Nascido das viagens de Fichte (1935-1986) pelo nosso país (e pela América do Sul) entre o final da década de 1960 e o início dos anos 1980, Explosão é um mergulho autobiográfico e experimental, mas nunca maçante. O romance integra um projeto literário inacabado, a História da Sensibilidade, desenvolvido ao longo de toda a carreira por Fichte. Jäckl, alter ego do autor, circula por terreiros de umbanda e candomblé, inferninhos, zonas de prostituição, favelas, mas também papeia com figuras como Pierre Verger e Salvador Allende, tudo isso com a urgência de quem escreve “para um mundo em que a escrita não existirá mais, nem leitores, provavelmente nem mesmo olhos”.

WOLF HALL, Hilary Mantel. 588 páginas.
Tradução: Heloisa Mourão. Editora Record.
Primeiro de uma trilogia complementada por O Livro de Henrique e pelo recém-lançado The Mirror & the Light, Wolf Hall resgata para nós um personagem e tanto: Thomas Cromwell (c. 1485-1540). A prosa percuciente de Mantel jamais se limita às convenções do romance histórico e recria a mente de um homem inteligentíssimo, de origem humilde e enorme ambição, e seus sucessos e atribulações na corte de Henrique VIII. A agilidade com que os fatos se desenrolam contribui para a sensação de que, cedo ou tarde, todos somos atropelados pela História.

Estamos todos doentes

Trecho de DENTES NEGROS
(Rocco, 2011)
Compre o livro AQUI.

Eles estão sentados à mesa do bar, outra vez em silêncio. Ela é muito jovem e ele não sabe o que ela faz, não se lembra quem os apresentou, não sabe com quem ela chegou àquela mesa, ele chegou depois e ela já estava lá. Dois órfãos, ela baiana, ele goiano, suas terras natais devastadas, suas famílias, e ele pensa sobre o que ela disse antes, aquilo sobre eles estarem envenenados, algo assim, e pergunta:
O que você quis dizer com aquilo?
Aquilo o quê?
Você disse algo sobre a gente estar envenenado até os ossos. Ou a partir deles. Algo assim.
Disse, sim.
O que você quis dizer?
Você sabe.
Não estamos doentes. A vacina funciona. Somos todos vacinados aqui. Nossos ossos estão salvos.
Não estão, não. Você sabe, a vacina não elimina a doença. Ela impede que os sintomas apareçam, isso sim. Ela constrói um monte de pequenas jaulas para os antígenos e transforma o nosso corpo num imenso calabouço. Somos todos bastilhas ambulantes. Estamos todos doentes, e doentes até os ossos. A doença está dentro da gente e nunca vai sair.
Está dentro da gente e nunca vai sair, ele repete.
Hugo sabe disso, sempre soube. Leu sobre, viu e ouviu na televisão. Mas nunca pensou a respeito. Nunca disse isso em voz alta.
As filas, as pessoas tomando a vacina quando tudo parecia perdido, quando parecia que a desgraça chegaria até eles, inclemente, quando parecia inevitável. Antes, os sobreviventes migrando para o sul e para o sudeste e sendo isolados e estudados, quando não mortos por algum soldado afoito ou por civis descontrolados, que pareciam dizer, e às vezes diziam, gritavam:
Por que vocês não ficaram lá e morreram?
A coisa dentro deles, paralisada, mas dentro deles para sempre, e depois dentro dele, Hugo, e de todos os outros, todos devidamente vacinados.
Calabouços ambulantes.
Hugo pensa em um tio que certa vez, há muito tempo, levou um tiro e a bala se alojou em seu corpo. Não quiseram tirar. Os médicos disseram que causaria mais danos abri-lo e tirar a bala do que deixá-la lá dentro. As radiografias, o projétil visível. A doença em nós é assim, visível feito aquela bala?

Boa, Jair

Artigo publicado hoje n’O Popular.

É difícil explicar para pessoas intelectualmente limitadas o conceito de ironia. Quando a limitação intelectual se alia aos preconceitos mais rasteiros, qualquer tentativa de explicação se torna inútil. Você fala com a pessoa, usa algum exemplo para ilustrar a coisa — Jair Bolsonaro chamando o coronavírus de “fantasia” justo quando a doença rebolava bem perto dele —, mas há uma desconfiança, uma confusão no olhar estupidificado do outro. Você insiste. Sim, é inútil, mas também divertido. Extremamente divertido.

Bolsonaro é alguém afeito aos fundamentalismos e contrário à transparência e ao avanço científico. Logo, não é irônico que justo o secretário de comunicação (!) Fabio Wajngarten seja o primeiro (e, até o momento em que escrevo, único) infectado com o coronavírus no núcleo duro (ou meia-bomba) da Presidência da República? Isso depois de uma viagem aos EUA, onde a patota se encontrou com Donald Trump. Apertos de mãos, perdigotos, os brasileiros babando em cima do norte-americano. Também será irônico se o secretário tiver infectado o presidente dos EUA. Como alguém tuitou, estaríamos diante do primeiro caso de contaminação de uma pessoa por um bichinho de estimação.

Escrevo na sexta-feira. É provável que, quando este texto for publicado, eu também esteja doente — o que seria outra ironia. Talvez eu esteja estirado na cama, lendo o Salmo 109 com um sorriso trouxa na cara. Sim, aprecio as ironias a esse ponto. “Muito mais fantasia, a questão do coronavírus.” Boa, Jair.

Que a pesquisa científica brasileira se encontre tão comprometida pela horda de oligofrênicos que chegou ao poder graças aos votos de milhões, bom, disso eu não consigo rir. Nenhuma ironia aqui. Mas é o que se obtém após séculos de investimento em deseducação. Para essa turba, ciência é “muito mais fantasia”, e a política de devastação estrutural (e aqui incluo as ações destruidoras em cultura, educação, meio ambiente, enfim, em todas as áreas) exercida pelo governo é uma ótima ideia.

Voltando ao meu provável adoecimento, já separei os livros que lerei enquanto estiver acamado. Decamerão, de Boccaccio, será o primeiro. Escrito em meados do século XIV, é sobre um grupo de sete moças e três rapazes que se refugiam em uma vila isolada, durante a epidemia da peste negra. Como não têm muito o que fazer, eles começam a contar histórias uns para os outros. O livro é composto por essas narrativas.

Depois será a vez de A Peste, de Albert Camus. Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago, também é uma boa pedida. Dentes Negros? Não costumo reler meus próprios livros, mas fica aí a sugestão para vocês. É sobre uma epidemia que dizima boa parte da população brasileira. Animador, hein?

“Sim, a peste, como abstração, era monótona”, escreve Camus. Talvez isso explique a fala obtusa do presidente brasileiro. Ele estava entediado com toda essa conversa de coronavírus e aproveitou para fustigar um de seus alvos prediletos — a imprensa. Enquanto isso, a pandemia avança. Boa, Jair. Mas eu é que não vou explicar o que é ironia para Bolsonaro. Vou ficar bem quietinho no meu canto, lendo Boccaccio e esperando a doença passar ou a morte chegar, o que vier primeiro.

“BelHell” do Pará

belhell

Há livros que podem ser lidos como verdadeiros comentários acerca da natureza do Mal e, por isso mesmo, trazendo a discussão para o nosso quintal repleto de entulhos e cadáveres insepultos, são recriações muito fiéis de alguns dos aspectos mais brutais do nosso arremedo de nação. Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Patrícia Melo, Ricardo Guilherme Dicke e Ana Paula Maia são exemplos de autores e autoras que, cada qual à sua maneira particularíssima e sem jamais incorrer em tons panfletários (ou desarmar suas histórias com “mensagens” e “morais”), trafegam pelos círculos infernais brasileiros, nos quais as relações são quase sempre mediadas por alguma forma de violência. Isso também pode ser conferido na obra do paraense Edyr Augusto, autor dos excelentes Moscow e Pssica e do recém-lançado BelHell (todos saíram pela Boitempo Editorial).

Nas narrativas de Augusto, a forma desvaira o conteúdo. Por meio de períodos curtos, em que ação segue ação e as falas dos personagens são encavaladas, sem aspas ou travessões, no interior de parágrafos que se assemelham a blocos de concreto, o autor desvela essa realidade na qual cada mísero aspecto do cotidiano é, de uma forma ou de outra, corrompido. Ali, para furtar uma expressão muito cara à filosofia do italiano Giorgio Agamben, todas as existências são “vidas nuas”, isto é, matáveis. Em outras palavras, na literatura de Augusto (e na desgraçada realidade brasileira), a vida humana não tem valor e as carcaças dos nossos semelhantes se amontoam ao nosso redor. O Brasil é uma cova aberta e faminta, e autores como ele dão conta disso, arrancam a dentadas um pedaço do país e cospem-no à nossa frente.

Em BelHell, tal pedaço corresponde a uma Belém ruinosa, por onde circulam vários personagens. Estes e a cidade parecem incorporar aquela antiga máxima que ecoa em Macunaíma e é também o título original de um filme de Werner Herzog: “cada um por si e Deus contra todos”. Policiais, milicianos, traficantes (e policiais que são ou se tornam milicianos e traficantes), políticos, miseráveis, prostitutas, jogadores, pistoleiros e até um assassino em série povoam a capital paraense retratada no livro, eco de um Brasil que se tornou — ou sempre foi, e agora o é sem quaisquer disfarces — um matadouro.

O escritor é personagem do próprio romance, e transmite para nós o testemunho (confissão?) de Bronco, que alinhava e protagoniza parte dos acontecimentos. Além dele, e entre vários outros, há Giovonaldo, gerente do cassino clandestino de um magnata local; Marollo, dono do tal cassino e também de vários hospitais e clínicas graças ao apadrinhamento de um deputado; a arrivista Paula, uma talentosa jogadora de cartas; Paulo, policial que se torna fora-da-lei; Rogério, delegado que investiga os crimes do assassino em série; e Sérgio, o tal serial killer brasileiríssimo (rico, só mata pobres, mendigos e viciados).

“E lá tem lei nessa terra?”, alguém pergunta a certa altura. Sim, existem leis, mas isso é irrelevante, estamos cansados de saber. Há outros códigos, que podem ou não ser obedecidos, nos diversos círculos frequentados pelos personagens. Mesmo em tais ambientes, a obediência nem sempre é sinônimo de prosperidade, salvação ou o que seja. O fogo nos alcança de uma forma ou de outra. E, em se tratando daqueles que procuram seguir e/ou aplicar as leis, há sempre alguma terrível ironia à espreita — vide o que acontece com Rogério no clímax de sua caçada ao assassino em série.

“O mundo é assim e tu sabes muito bem”, diz Zazá, uma anã dona de puteiro (o nome do estabelecimento é, claro, Paraíso Perdido), esposa de Giovonaldo e uma das melhores personagens do livro. “Aqui é o mundo escroto.” É um mundo de cabeças espocadas a tiros, chacinas, fogo e falas entrecortadas, engasgadas, raivosas. Ativos e passivos nessa verdadeira economia da matabilidade, os personagens de Augusto vêm ao mundo para devorar uns aos outros. São, portanto, brasileiros como tantos outros, gente comum, ordinária, e por isso mesmo capaz dos atos mais hediondos.

E é graças à aposta do autor nessa gratuidade essencial em que se assenta a violência humana que BelHell paira acima de quaisquer aporrinhações “ideológicas”. Autenticamente literária, a obra é infensa às ondas de “engajamento” em que se afogam outros autores ao abordar temas similares. Não há proselitismos em BelHell.

Dizendo de outro modo, Augusto devassa a nossa precariedade, mas não o faz pobremente, isto é, como se visasse o cumprimento de uma agenda ou a reiteração de pontos pré-estabelecidos. Nada disso. Seu vocabulário narrativo, por assim dizer, vai além do beabá usual dos que esperneiam frente ao (ou sob o) “sistema” — aliás, um termo tão genérico que se encaixa em qualquer buraco conceitual. O inferno político-social que arde em suas páginas é um índice antes individualizador e concreto do que abstrato e pretensamente totalizador, isto é, diz respeito a cada personagem e a cada situação específicos. Não há tipos passíveis de generalizações, mas pessoas e circunstâncias muito bem delineados.

Muito por conta dessa abordagem descontaminada, BelHell navega onde outros tantos naufragam. No lugar da ilustração masturbatória de um “ideário” acerca do Brasil, enxergamos o Brasil ou um pedaço dele, aquele arrancado a dentadas. Aqui, o estropiamento moral é “democrático” e não obedece a hierarquias ou se permite catalogar com facilidade, mediante fórmulas prontas. O caos brasileiro exige outra espécie de esforço, do tipo que só a imaginação alcança.

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Uma versão menor deste artigo foi publicada pelo jornal O Popular.