Auster etc.

Auster etc.

auster
Paul Auster completa 70 anos de idade hoje.

A Trilogia de Nova York, A Invenção da Solidão e Leviatã (numa edição estourada da BestSeller que achei em um sebo na W3-Sul) foram muito importantes para mim quando, aos dezenove, vinte anos, vivia sozinho num barracão no Guará II, no DF, rascunhava meus primeiros contos, tinha um emprego de merda e, por companhia, apenas os livros que comprava aos poucos e com cheques pré-datados na Nobel e, depois que esta fechou, na Saraiva do ParkShopping.

Auster, Salman Rushdie, Italo Calvino, Thomas Bernhard, Philip Roth e Rubem Fonseca faziam a minha cabeça então. Talvez por identificá-los em demasia com tempos difíceis, e à exceção de Roth, eu os revisitei pouco desde aquela época. É um problema meu, não deles. Todos foram importantes. Todos me mostraram caminhos possíveis, ensinaram soluções, disseram algo quando tudo ao redor era uma cacofonia insuportável.

“Seis dias atrás, um homem morreu numa explosão à beira de uma estrada no norte de Wisconsin”: assim começa Leviatã e, sem entender direito o motivo, eu adorava. Talvez por ser tão simples e direto. Trilogia também começava de um jeito que me apetecia: “Foi um número errado que começou tudo, o telefone tocando três vezes, altas horas da noite, e a voz do outro lado chamando alguém que não morava ali”.

Interessava-me a diversão que era perceber a arquitetura, o mecanismo interno dessas vozes, medi-las, pesá-las, compreender o que cada uma delas poderia acrescentar à minha, que eu ainda não tinha descoberto, embora soubesse, ou pressentisse, que ela estava em algum lugar, bastava ter paciência que cedo ou tarde eu a alcançaria.

Sempre começamos a escrever no escuro, e a leitura é como a luz fraca de uma vela do outro lado da folha de papel que preenchemos; ela ilumina as nossas linhas mal traçadas (mas tão cheias de vontade, tão prenhes dessa inclinação que nos desgraça a vida, mas sustém o espírito), e é algo que devemos alimentar com cuidado. Começamos a escrever no escuro, e aos poucos aprendemos a fazê-lo na contraluz.

Enfim.

Foi graças a Auster (via dedicatória de Leviatã) que cheguei a Don DeLillo, o qual me levou a Thomas Pynchon, que por sua vez me apresentou a John Barth, que sugeriu que eu visitasse William Gaddis, e assim por diante. Uma vela acende a outra, e você só precisa tomar cuidado para não incendiar a própria casa. Depois, mal ou bem, tudo termina com um sopro.

Moneta, VA

Em Moneta, no estado norte-americano da Virginia, um atirador matou uma repórter, Alison Parker, de 24 anos, e um cinegrafista, Adam Ward, de 27, e registrou tudo em um vídeo que depois postou nas redes sociais.

Foi em 26 de agosto de 2015.

O atirador se chamava Vester Lee Flanagan (a.k.a. Bryce Williams) e era ex-funcionário da mesma emissora em que as vítimas trabalhavam. Perseguido pela polícia, Flanagan se deu um tiro. Morreu no hospital.

Cansamos de assistir ao vídeo, rep(r)isar aquelas mortes.

Vendo-o, lembrei de uma passagem do romance Submundo, de Don DeLillo, intitulada “Elegia para a mão esquerda”. A edição de que disponho é da Cia. das Letras e a tradução, de Paulo Henriques Britto. A passagem envolve um assassino em série que sai por aí dirigindo e atirando em outros motoristas, os carros em movimento. Um dos assassinatos é flagrado por uma criança com uma filmadora, dentro de um terceiro carro.

“Não é apenas mais um vídeo de assassinato”, escreve DeLillo. “É um assassinato documentado por uma criança que julgava estar fazendo uma coisa simples e quem sabe até um pouco esperta, captar a imagem de um homem num carro.”

O carro dirigido pelo atirador se aproxima daquele enquadrado pela criança.

“É claro que, se tivesse feito uma panorâmica para mostrar outro carro, o carro exato no momento exato, ela teria captado a imagem do assassino dando o tiro.”

Há um encontro, uma confluência de olhares e intenções.

“A aleatoriedade do encontro. A vítima, o assassino e a criança com sua câmara. Energias aleatórias que se aproximam de um ponto comum. Há aqui outra coisa que fala diretamente a você, que diz coisas terríveis sobre forças além do seu controle, linhas de interseção que atravessam a história, a lógica e todas as outras camadas razoáveis da expectativa humana.”

E:

“Lá vem o tiro. Ele é atingido na cabeça, e a câmara reage, a criança reage — há um sacolejo súbito mas ela continua gravando, há uma reação solidária, uma reação nervosa, o coração dela bate mais depressa mas ela continua com a câmara apontada para o homem que desliza em direção à porta (…).”

E DeLillo vai direto na jugular:

“Você fica pensando se esse tipo de crime não se tornou mais fácil quando se disseminou um meio de registrar um evento e o exibir imediatamente, sem um intervalo neutro, um espaço e um tempo equilibradores. A exibição imediata intensifica e comprime o evento. Desperta a necessidade de repeti-lo.”

No caso do atirador em Moneta, além do imediatismo (vídeo, redes sociais, ausência completa de “um intervalo neutro, um espaço e um tempo equilibradores”), há um elemento mais aterrador: é o próprio assassino quem faz questão de registrar o ato hediondo. Não temos, como no romance de DeLillo, uma terceira parte, uma testemunha gravando o evento — ainda que inadvertidamente — para a massa expectante, isto é, para nós.

“Não é apenas mais um vídeo de assassinato.”

Não mesmo. Em Moneta, no evento real, as crianças curiosas, que mal se contém de ansiedade diante do que se desenrola, somos nós. É como se o assassino tivesse cortado qualquer (inter)mediação além da própria câmera. Ele está conosco do começo ao fim.

Câmera subjetiva: vemos o que ele vê, fazemos o que ele faz.

E há um momento, um longo momento, quase tão assustador quanto os tiros em si: é quando Flanagan se aproxima das futuras vítimas e se queda perto, muito perto delas, sem que ninguém perceba. O assassino aguarda, e nós com ele. Então, aponta(mos) a arma e atira(mos).

E não há mais nada a ser dito.

…………

Versão estendida de um texto publicado n’O Popular em 24 de janeiro último.

Fantasmas

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Ontem vi O Gato Preto, de Kaneto Shindo. A exemplo de sua obra-prima Onibaba, temos aqui um filme que nos diz algo do horror intrínseco à própria História. No Japão medieval assolado por guerras entre os diversos clãs, duas mulheres são estupradas e mortas por um bando de ronins. Elas fazem, então, um pacto com o (por assim dizer) submundo, simbolizado pelo bichano-título: matar todos os samurais, bebendo-lhes o sangue. Ocorre que um destes é filho de uma delas e marido da outra. Ele retorna após três anos guerreando e se depara com as figuras fantasmagóricas, quase irreconhecíveis, recebe um presente (que não encara como tal) e luta contra algo que lhe escapa, embora seja fruto da violência da qual ele próprio é — ou se tornou — um dos perpetuadores. O sobrenatural, típico das lendas folclóricas que inspiram Shindo,  parece-me mais incidental que propriamente estrutural. Menos que “assustar”, ele chama a nossa atenção para o caráter não raro alucinatório que assume o mundo em seu tempo (hoje e sempre) calamitoso. Mais perturbadoras que as cenas onde as mulheres trucidam suas presas, são aquelas em que humanos devoram humanos. São momentos nos quais Shindo resgata a austeridade de Onibaba, com direito a uma inversão que, embora não seja verbalizada n’O Gato Preto, soa evidente para mim: se naquele a mulher gritava “Sou um ser humano, não um demônio!”, neste é como se todos sussurrassem o contrário. Tanto lá como cá, debatem-se os degredados, colocados diante de escolhas impossíveis, em vista das quais o livre-arbítrio soa como uma piada engendrada nos infernos. Os pequenos intervalos de liberdade dizem respeito, quando muito, aos fantasmas; observe como uma delas salta uma poça d’água e como a outra, abocanhando a própria pata decepada, ascende ao céu escuríssimo e se liberta da história — mas não da História.

Gloucester

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Acho o filme dirigido por Richard Loncraine e lançado em 1995, com o estupendo Ian McKellen no papel-título, a melhor adaptação de Ricardo III, de Shakespeare. A peça fecha a primeira tetralogia histórica, que aborda a Guerra das Rosas (1455-1485), e é antecedida pelas três partes de Henrique VI. Depois, como se sabe, Shakespeare escreveu uma segunda tetralogia, que cobre eventos anteriores e é constituída por Ricardo II, as duas partes de Henrique IVHenrique V. Voltando ao filme, além da atuação soberba de McKellen, adoro o modo como Loncraine brinca com a iconografia nazi-fascista (a peça é ressituada no começo do século XX), ao mesmo tempo em que assume uma levada gangsterista que casa à perfeição com o retrato — que hoje sabemos historicamente inacurado ou no mínimo controverso — de Ricardo III como um “cão maldito”, “marcado de nascença, / Escravo ignóbil, filho dos infernos; / Difamador do ventre em que pesaste, / Fruto odioso da ilharga de teu pai! / Trapo sem honra!” etc. e tal. Loncraine dirige o filme com arrojo, colando-o à desavergonhada perversidade do protagonista. O modo como “quebra” o discurso de abertura, colocando Ricardo frente à corte no começo solar e espirituoso (“Agora é o inverno de nosso descontentamento / Feito verão glorioso pelo Sol de York”) para, em seguida, quando a fala ensombrece, isolá-lo com o próprio reflexo “malfeito de feições” no espelho de um banheiro deserto (“Armei conspirações, graves perigos, / Profecias de bêbados, libelos, / Para pôr meu irmão Clarence e o rei / Dentro de ódio mortal, um contra o outro”), é um primor de construção cinematográfica, sem prejuízo algum para o texto original. Por mais distinta que seja a encenação, dada a alteração temporal, o texto respira por si e também graças a soluções como a citada, de tal forma que não há estranhamento nem mesmo quando Ricardo, sob fogo inimigo e dentro de um jipe, berra: “Um cavalo! Meu reino por um cavalo!”. Talvez conquistado pelo charme coxo do personagem, Loncraine ainda opta por fazê-lo se matar em vez de entregá-lo a Richmond, futuro Henrique VII, o qual atira em um corpo que, sorridente, deixa-se abraçar pelo fogo lá embaixo. Que homem.

Federer

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Como vocês devem saber, há um famigerado ensaio de David Foster Wallace intitulado “Federer como experiência religiosa”. DFW jogou tênis quando moleque, antes de se tornar possivelmente o melhor escritor de sua geração, e escreve com beleza e propriedade sobre o suíço que acaba de vencer seu 18º título de Grand Slam e é tido como o tenista mais completo de todos os tempos. Mesmo que o leitor aí não goste de tênis (e, se for o caso, meus sentimentos), sugiro que dê uma olhada no tal ensaio, pois é raro que um craque escreva sobre outro com tamanha admiração e tanto conhecimento de causa. No Brasil, foi publicado na coletânea Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo (Companhia das Letras), mas, para os fluentes em inglês, é possível ler na íntegra AQUI.

Roger Federer, de fato, tem proporcionado ao longo de sua carreira tantos “Momentos” (segundo DFW, é quando um lance absurdo acontece na quadra, fazendo com que o queixo do espectador despenque, seus olhos arregalem e ele solte um som esdrúxulo de estupefação, de tal modo que a esposa vem correndo de onde quer que esteja para checar se está tudo bem) que os aficionados do esporte em particular, e da beleza em geral, só podem se sentir gratos por testemunhá-los.

Não é fácil explicar o que torna esse tenista tão especial, tão único, mas, certa vez, conversando com um amigo que não acompanha o esporte, eu disse: “Imagine um jogador de futebol que fosse uma mistura da elegância de Zidane com o instinto matador e a rapidez de Ronaldo em seus melhores momentos”. A analogia é tão falha quanto qualquer outra desse tipo, mas talvez ofereça um vislumbre do que seja assistir a um desses “Momentos Federer”. Sem exagero, eu me sinto presenteado ou, mais do que isso, abençoado, como se D’us permitisse que, por uns breves segundos, eu visse algo que se aproxima do que, imperfeitamente, chamamos de “perfeição”.

O título recém-conquistado por Federer, seu quinto no Aberto da Austrália, é especial por várias razões. A primeira delas tem a ver com o fato de que ele já está com trinta e cinco anos (completa 36 em agosto), idade em que muitos grandes tenistas já se aposentaram ou consideram seriamente essa possibilidade, ou se mantém no circuito apenas por amor ao jogo, e não porque ainda sejam competitivos — vide os últimos anos de Roddick e Hewitt, por exemplo. Como se não bastasse, Federer vinha de uma lesão que o tirou das quadras por seis meses, fazendo, inclusive, com que cogitasse se aposentar — foi demovido da ideia pela esposa, Mirka. Para completar, a final do torneio foi contra o espanhol Rafael Nadal, seu maior rival e também responsável por um retorno improvável após lutar contra suas próprias — e inúmeras — lesões.

Nadal leva vantagem sobre Federer em confrontos diretos porque é mais jovem, duelaram muitas vezes no saibro, piso no qual o primeiro é especialista (para se ter uma ideia, são nove títulos em Roland Garros, recorde absoluto), e o estilo de jogo do segundo “casa” à perfeição com a forma como o outro agride seus adversários. Tecnicamente falando, Nadal consegue muito efeito nas bolas que bate com a canhota na cruzada, movimentando a raquete de baixo para cima (o popular e venenosíssimo topspin), explorando assim um dos raros pontos fracos de Federer: o backhand, isto é, o golpe que ele, destro, dá pelo lado esquerdo. Em todas as vezes que se enfrentam, Nadal “procura” insistentemente a esquerda de Federer, forçando os erros deste, mais ou menos como Apollo Creed sempre tentava acertar o olho ruim de Rocky Balboa. Quando o piso lhe é favorável (as quadras duras e de grama, em que a bola “anda” mais), Federer tende a controlar melhor as trocas de bola, protegendo a esquerda, pondo Nadal para correr e tendo alguma tranquilidade e espaços mínimos para matar os pontos.

Mas, na final deste ano em Melbourne, coisas diferentes aconteceram. A primeira delas é que Federer subiu relativamente pouco à rede (quarenta vezes, média de oito por set, obtendo sucesso em vinte e nove delas; já o vi subir mais). A segunda, decorrente da anterior, é que ele não tentou fugir da esquerda, aceitando devolver com o backhand e pontuando bastante por aí, inclusive nas longas trocas de bola desde a linha de base que, historicamente, e contra a maior parte dos adversários, favorecem o jogo brutalista de Nadal. É claro que essa mudança de característica não aconteceu da noite para o dia.

Desde o começo do torneio, embora ninguém acreditasse que tivesse chances de chegar à final (nem mesmo ele, ressalte-se), Federer parecia diferente. Em geral, ele procura encurtar os pontos e desferir logo a chamada bola vencedora, mas, este ano, optou por demonstrar paciência e meio que “espelhar” cada adversário. Ao enfrentar o norte-americano Noah Rubin, por exemplo, também prescindiu de subir à rede e assumiu com gosto a pancadaria de fundo de quadra. Contra Kei Nishikori, variou um pouco mais, procurando deslocar o japonês (muito leve e rápido, e excelente devolvedor) com slices fundos, preparando assim para “pavimentar” o outro lado com golpes na paralela à Gustavo Kuerten. E, ao lidar com Nadal, surpreendeu pelos motivos expostos no parágrafo acima.

Óbvio que nenhuma estratégia daria resultado se Federer não exibisse a precisão e a inteligência de seus grandes dias. Como diz DFW, ele é Mozart e Metallica ao mesmo tempo, e de algum modo a melodia que sai disso é refinada. Quando ganhou o derradeiro ponto e olhou, incrédulo, para a esposa, chorando e pulando feito um tenista adolescente ao vencer seu primeiro torneio de simples (e não o 89º), Federer nos aproximou ainda mais do êxtase que perpassa e define todo o seu jogo. Com sua elegância característica, ele parece desacelerar o tempo a cada ponto, de tal forma que nos sentimos reconciliados com tudo — inclusive com a morte. São momentos breves, mas jamais fugazes, pois a beleza não morre nunca e o eco de cada golpe nos mantém alguns centímetros acima do chão, flutuando com Roger Federer de um lado a outro da quadra, infenso(s) à vulgaridade e momentaneamente integrado(s) ao que é deiforme.

 

Folhas secas

Texto publicado n’O Popular em 07.03.2017.

Há uma anotação nos diários do filósofo austríaco – naturalizado britânico – Ludwig Wittgenstein (1889-1951), datada de 06 de maio de 1931, que diz o seguinte: “Em Brahms, as cores do som da orquestra são cores das marcações do caminho”. Os diários dele, mantidos entre 1930-32 e 1936-37, vieram a público há pouco tempo e foram lançados no Brasil pela editora Martins Fontes com o título Movimentos de Pensamento. São uma ótima e divertida porta de entrada para as idiossincrasias e reflexões do autor do Tractatus Logico-Philosophicus, dentre outras obras capitais da história do pensamento ocidental.

Antes daquela anotação que citei acima, Wittgenstein discorre sobre como Brahms “compunha com a pena”, ao passo que Bruckner (por exemplo) o fazia “com o ouvido interno & com uma ideia de orquestra tocando”. O procedimento do filósofo é bastante claro: ele identifica as particularidades de cada compositor, usando-as para antecipar seus efeitos desde as próprias notações musicais. O método (ou modo) se refletiria na música ou, para dizer com maior precisão, no casamento entre os temas propostos e os sons que brotam daí.

Claro que há casamentos felizes e infelizes, e, em se tratando de música, contrario Tolstói para dizer que os infelizes são todos parecidos, ao passo que os felizes o são cada qual à sua maneira. Há compositores traídos pelos próprios temas, assim como há outros que são elevados por eles, como o Beethoven da terceira sinfonia, a Eroica, que se inicia de forma um tanto quanto rotineira — até onde podemos chamar Beethoven de “rotineiro”, é claro —, para depois se transformar, mediante um longo e complicado movimento, em uma monstruosidade maravilhosamente desconcertante, e no germe de suas benditas malcriações futuras. Ouvindo a sinfonia, é fácil notar a passagem do classicismo para o romantismo em seu próprio interior. Há uma efervescência criativa que salta aos ouvidos, pouco confiável, imprevisível e genial desde o momento em que se instala no longo e intrincado adagio.

Voltando aos diários de Wittgenstein, ele escreve em 24 de outubro de 1931 que Brahms carece de “senso de cores”. No entanto, tem o cuidado de pontuar que “a ausência de cor já está presente na temática”, e que a única fraqueza de sua instrumentação residiria no fato de “que sob múltiplos pontos de vista ela não é pronunciadamente em preto e branco”. Mas, claro, isso não significa que estejamos diante de um casamento infeliz.

Dias atrás, enquanto ouvia o Deutsches Requiem, eu pensava nessas considerações de Wittgenstein, sobretudo na sinestesia que elas ensejam de maneira tão rica. Acho o réquiem de Brahms belíssimo justamente porque condiz, dada a sua “ausência de cor”, com a opacidade da morte. É diferente do famigerado réquiem de Mozart (em que pesem as polêmicas quanto à sua incompletude, sobre quais partes Mozart de fato terminou e quais foram finalizadas por seu amigo e discípulo Franz Xaver Süßmayr), cuja agressividade é qualquer coisa, menos descolorida, e traduz a perturbação anímica de quem, segundo se diz, julgava compor a própria missa fúnebre.

Brahms, que era luterano, ignorou a liturgia católica e seu latim, valendo-se da língua alemã e de textos apócrifos. Em seu réquiem, fala da morte do ponto de vista dos que foram (ou logo serão) enterrados vivos, por assim dizer. Ouvir sua música é caminhar descalço por uma estrada outonal, forrada de folhas secas, e, em suas anotações, Wittgenstein nos faz enxergar isso muito, muito bem.

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=dJelOS-fjrY&w=560&h=315]

Zoo literário

Texto publicado hoje pelo jornal O Popular.

“Pode-se contar nos dedos de uma mão só o número de gente no mundo editorial que ainda respira”, diz o escritor Guy Ableman, narrador e protagonista de O Grande Zoológico, romance de Howard Jacobson lançado pela Bertrand Brasil no ano passado, com tradução de Regina Lyra. Ele tem alguns motivos para dizer uma coisa dessas: os livros que publicou desaparecem das prateleiras, seu editor cometeu suicídio, leitores são cada vez mais raros (e os poucos que permanecem não lhe têm muito apreço) e seu agente não parece lá muito animado com o que o futuro reserva para a cultura livresca. No entender de Guy, a literatura morreu (ou quase) e só nos resta observar a “beleza voluptuosa” de sua putrefação. Contudo, e essa é “a parte estranha”, ainda lhe resta “um desejo intenso” de escrever, e ele tem a ver não com algum sentimento altivo e edificante, mas, sim, com a paixão que nutre por sua mulher, Vanessa, e pela mãe dela, Poppy, ambas (segundo ele) ruivas e estonteantes.

O britânico Jacobson, vencedor do Man Booker Prize por A Questão Finkler, afirmou que nunca se divertiu tanto ao escrever um romance. Tal prazer transparece em cada página de O Grande Zoológico. Seu narrador é, como toda primeira pessoa digna de nota, muito pouco confiável, mas expõe suas agruras, afeições e seus preconceitos com tamanha vivacidade que é impossível não gostar dele – mesmo quando acena com a possibilidade de dormir com sogra para, depois, escrever um romance a respeito. O agente não acha que seja uma boa ideia, literária e realisticamente falando (embora não esconda uma tremenda curiosidade por Poppy), mas Guy ainda se debaterá a respeito, enquanto nos conta sobre como conheceu “suas mulheres”, discorre sobre o fim dos tempos e da literatura (mais ou menos nessa ordem), fala sobre a família (carinhosamente apelidada de “os Dementievas”) e, ao final, demonstra ter aprendido uma ou duas coisas não sobre o mundo – quem se importa com o mundo, não é mesmo? –, mas a respeito de si próprio.

A essa altura, cabe ressaltar que o narrador de Jacobson é cínico, desesperado e não raro patético, mas a prosa do autor nada tem de leviana. Embora, à primeira vista, sua ironia pareça fácil, os custos que ela acarreta e as recompensas que traz jamais o são. Em meio ao sarcasmo, e também a partir dele, o leitor encontra algumas verdades e, por mais démodé que seja falar nesses termos, é o tipo de coisa que eleva a sátira para um outro patamar. Como exemplo disso, podemos citar a forma como o surto coletivo (que cedo ou tarde anima todas as famílias) é colocada na narrativa. Por mais engraçada que seja a maneira como os “Dementievas” (pai, mãe e irmão de Guy) se voltam para o judaísmo a certa altura, é também dolorosa a constatação do protagonista acerca de sua própria e solitária condição. De repente, as palavras “cascudas e cínicas” que soltava aos quatro ventos ganham peso, e ele tem de se virar com isso sozinho.

Assim, o tom sardônico vai adquirindo novas tonalidades, novas camadas, e, muito embora jamais deixe de ser engraçado, o romance só diz realmente a que veio quando seu narrador precisa lidar, para valer, com a solidão que, de uma forma ou de outra, sempre alimentou. Como se vê, O Grande Zoológico prepara uma série de armadilhas para o leitor, uma melhor que a outra, e o que mais impressiona é o modo como demonstra o quanto podemos estar errados a respeito de nós mesmos e dos outros, e o quão importante é aceitar isso e recomeçar.

Diante do fogo

Texto publicado hoje no jornal O Popular.

'Paisagem com a queda de Ícaro' [Pieter Bruegel, c. 1558]

Não sei se acontece o mesmo com vocês, mas 2016 me deixou exausto. Foi o ano em que o Brasil exibiu, pela enésima vez e de inúmeras maneiras diferentes, a sua capacidade de ser Brasil. Como dizem por aí, este país não é para amadores. Sempre que ensaiamos um salto, ele nos puxa, segura, amarra. Talvez a gravidade aqui seja de outra ordem, não sei. Mas tudo isso me dá o que pensar.

Há poucas coisas seguras que podemos afirmar sobre o Brasil. Uma delas é um clichê: não sabemos votar. Eu, você, todo mundo. À direita, à esquerda, acima e abaixo, temos o péssimo hábito de eleger demagogos, marginais, fascistas, idiotas e bandidos em geral. Talvez sejam os jingles de campanha. Talvez não estejamos interessados, ao menos até que a fossa estoura e os excrementos inundam tudo, chegando (de novo) aos nossos pescoços. É quando voltamos a dar a mínima.

Fico pensando no aforismo 156 de Além do Bem e do Mal, de Nietzsche: “A loucura é algo raro em indivíduos – mas em grupos, partidos, povos e épocas é a norma”. Nietzsche é um filósofo tão célebre quanto incompreendido, mas isso vale para todos os grandes pensadores – vide as besteiras que dizem por aí acerca de Platão e Maquiavel, para citar dois exemplos óbvios; já ouvi gente falando de Sócrates como se ele fosse uma espécie de precursor do kardecismo, ignorando os contextos histórico e filosófico, o teor de suas alegorias e a luta anímico-política na qual estava inserido (e que acabou por matá-lo).

Voltando a Nietzsche, e apenas para fundamentar melhor o motivo da citação, ele explorou como poucos a beleza raivosa do aforismo, que, parafraseando/pervertendo Cortázar, consiste em vencer o leitor por nocaute. Para alcançar uma compreensão mínima do Brasil, trepidante, contraditório, violento e não raro repugnante como é, acredito que a melhor forma seria por meio de aforismos. Não me lembro de ninguém que tenha tentado. Em vez disso, persistem o barroquismo vazio, o materialismo histórico de quinta categoria e/ou a negação pura e simples de qualquer tentativa séria de compreensão.

Em geral, pior do que não pensar, o brasileiro evita pensar a si próprio. Falamos do outro como se fôssemos todos estrangeiros e observássemos o circo em chamas a uma grande distância, usando uns binóculos velhos de lentes rachadas. A essência do fogo nos escapa. A verdade do outro nos parece alienígena. Formamos um arquipélago de ilhas autistas, exceto quando vestimos as mesmas cores e bradamos as mesmas cretinices, as quais, em geral, dizem respeito não a uma tentativa de entender a situação em que nos metemos, mas, sim, a uma busca por bodes expiatórios, a uma diferenciação, uma separação no melhor estilo “nós contra eles”, quando, na verdade, nós somos eles e vice-versa.

Entendo a resistência que muitos oferecem à reflexão e à autorreflexão. Juro que entendo. Pensar é difícil. “Como tornamos tudo claro, livre, leve e simples à nossa volta!”, escreve Nietzsche no mesmo livro citado há pouco (#24), com furiosa ironia. Ocorre que nada é simples, a começar por nós mesmos e o país em que vivemos. Há questões irrespondidas que persistem desde sempre. Pior: questões ainda por formular. Não é possível criar bases para uma vida política saudável sem buscar por essas questões que levem a um entendimento de quem somos, do que queremos e onde vivemos. Antes de tatear cegamente por respostas, o brasileiro precisa atentar para a dignidade do ato de perguntar. A não ser que estejamos cansados demais para isso. Se for o caso, a única coisa a fazer é sentar e esperar que as chamas nos alcancem.

A vida de Brian

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Sempre amei o trabalho de cineastas capazes de construir filmes a partir de ideias puramente cinemáticas, desenvolvendo toda uma gramática visual que fundamente, antes de qualquer outro elemento (incluindo o roteiro), a história que se desenrola na tela. Alfred Hitchcock é o exemplo mais óbvio desse tipo de criador (e, não por acaso e para o meu gosto, o maior diretor de todos), mas, contemporaneamente, também coloco nesse balaio os meus adorados George Miller, Nicolas Winding Refn e, claro, Brian DePalma.

DePalma, documentário de Noah Baumbach & Jake Paltrow, na verdade uma longa entrevista, é uma bela maneira de repassar a vida e a carreira do sujeito. Aos setenta e seis anos, afastado de Hollywood desde a experiência desagradável que teve com Missão: Marte, ele filmou pouco, mas bem neste século — ainda que Dália Negra tenha lá os seus problemas (sobretudo para quem leu o livro de James Ellroy), Femme Fatale, Redacted e Passion revisitam com eficiência temas e conceitos já explorados em Vestida Para Matar e Pecados de Guerra, por exemplo.

Há coisas reveladoras no doc, especialmente quando ele discorre sobre momentos delicadíssimos (os fracassos de bilheteria e/ou crítica, as discussões com executivos e estrelas, as estratégias para sobreviver em um meio crescentemente inóspito para certo tipo de cineastas) com uma autoconsciência impressionante. Não há, jamais, qualquer ranço autopiedoso, do tipo “fui injustiçado por isso e aquilo”, mas uma tentativa de compreender como e por que esse ou aquele filme funcionou ou não.

É curioso, também, perceber como o tempo trabalha a favor dos grandes artistas: filmes como Um Tiro na NoiteDublê de Corpo, hoje devidamente reconhecidos, foram massacrados por razões tão díspares quanto estúpidas quando lançados, e DePalma sabe muito bem que trabalhos que obtiveram aclamação imediata (Vestida Para MatarOs IntocáveisMissão: Impossível) são eventos raríssimos na vida de qualquer realizador.

Numa passagem engraçada, ao falar dos inúmeros remakes de Carrie (cuja versão original continua impressionante), DePalma diz que é divertido observar como os novos diretores trataram de colocar na tela todos os clichês visuais que ele soube evitar décadas atrás. E é justamente aí que reside sua singularidade, a capacidade extraordinária de explorar os elementos fílmicos de forma a elevar a narrativa a um nível incomum, inesperado. Mesmo em filmes problemáticos ou menores como Dália NegraOlhos de Serpente, notamos o cuidado na criação de atmosferas muito peculiares, a câmera e os cortes devassando ambientes que depois serão como que retorcidos, provocando uma perturbação, um ruído na forma como nos relacionamos com as imagens, e assim amplificando os efeitos emocionais de cada cena.

Uma das (poucas) vantagens dessa época em que vivemos é a facilidade para se encontrar o que quer que nos interesse ou diga respeito. DePalma teve de esperar trinta anos para rever Um Corpo que Cai, o clássico de Hitchcock que o mesmerizou aos dezoito anos. Por sorte, não preciso e não vou esperar nem um dia para começar a rever tudo o que ele já nos deixou. Aliás, vou começar por A Fogueira das Vaidades Síndrome de Caim. Só para sacanear.

…………

TOP TEN DePALMA
(A ordem muda conforme as revisões, mas os meus favoritos são esses aí. Clique nas fotos.)

untouchables5

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carlitos

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casualties

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