Fantasmas

gatopreto

Ontem vi O Gato Preto, de Kaneto Shindo. A exemplo de sua obra-prima Onibaba, temos aqui um filme que nos diz algo do horror intrínseco à própria História. No Japão medieval assolado por guerras entre os diversos clãs, duas mulheres são estupradas e mortas por um bando de ronins. Elas fazem, então, um pacto com o (por assim dizer) submundo, simbolizado pelo bichano-título: matar todos os samurais, bebendo-lhes o sangue. Ocorre que um destes é filho de uma delas e marido da outra. Ele retorna após três anos guerreando e se depara com as figuras fantasmagóricas, quase irreconhecíveis, recebe um presente (que não encara como tal) e luta contra algo que lhe escapa, embora seja fruto da violência da qual ele próprio é — ou se tornou — um dos perpetuadores. O sobrenatural, típico das lendas folclóricas que inspiram Shindo,  parece-me mais incidental que propriamente estrutural. Menos que “assustar”, ele chama a nossa atenção para o caráter não raro alucinatório que assume o mundo em seu tempo (hoje e sempre) calamitoso. Mais perturbadoras que as cenas onde as mulheres trucidam suas presas, são aquelas em que humanos devoram humanos. São momentos nos quais Shindo resgata a austeridade de Onibaba, com direito a uma inversão que, embora não seja verbalizada n’O Gato Preto, soa evidente para mim: se naquele a mulher gritava “Sou um ser humano, não um demônio!”, neste é como se todos sussurrassem o contrário. Tanto lá como cá, debatem-se os degredados, colocados diante de escolhas impossíveis, em vista das quais o livre-arbítrio soa como uma piada engendrada nos infernos. Os pequenos intervalos de liberdade dizem respeito, quando muito, aos fantasmas; observe como uma delas salta uma poça d’água e como a outra, abocanhando a própria pata decepada, ascende ao céu escuríssimo e se liberta da história — mas não da História.