Meu passado nazista

Meu passado nazista

“Noção terás do que é o ermo, a solidão?”
— Goethe, no Fausto.

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1. Era o começo dos anos noventa do século passado, era o interior de Goiás, era o governo Collor (não por muito tempo), e lá estava aquele sujeito que, parado no topo da escada, fazia Sieg Heil para a molecada reunida no alpendre, o braço direito estendido e a voz altissonando: “Heil Hitler!”.

1.1 O sujeito era pai de um colega de escola que eu visitava quase todos os dias. Eu e o colega jogávamos Mega Drive, Streets of RageDesert Strike, Golden Axe, ou ouvíamos os vinis do irmão mais velho dele, Use Your Illusion (eu gostava mais do II, meu colega preferia o I, daí que ouvíamos ambos), o Black AlbumNevermind, The Real Thing, havia também uma coletânea dos Doors, ou assistíamos à televisão, eles tinham antena parabólica e um aparelho de muitas e muitas polegadas, era impressionante aquele caixotão de madeira (embora eu achasse a imagem escura demais) ali na sala, dominando a paisagem, impossível olhar noutra direção, para outra coisa, qualquer outra coisa.

1.2 O lance com o Sieg Heil acontecia sempre que o pai dele chegava, e a gente ria porque tinha dez, depois onze, depois doze anos, e aquele era o único Pai que tentava fazer alguma gracinha, os outros Pais não faziam nada ou simplesmente entravam e resmungavam um cumprimento qualquer antes de desaparecer. O sujeito surgia no topo da escada ou no cômodo onde estivéssemos (era uma casa grande), erguia o braço, “Heil Hitler!”, a gente ria e ele às vezes dava um tempinho por ali, jogava um pouco de videogame ou perguntava o que estávamos vendo ou ouvindo ou estudando, porque às vezes acontecia de estudarmos, já lancharam?, era o único Pai que fazia todas essas coisas, e a gente (a turminha do filho caçula) não desgostava nem tinha medo dele, o que naquela idade significava muito, vamos concordar.

2. Demorou algum tempo para que eu entendesse certas coisas, e então era o governo Itamar, mas ainda eram os anos noventa do século passado, ainda era o interior de Goiás, a mesma casa, o mesmo Sieg Heil, que deixou de ser engraçadinho ou “diferente” depois que aprendi uma coisinha ou outra, meio que sem querer, e me inteirei de alguns fatos que, certo dia, o meu colega — estávamos de novo na casa dele, onde mais?, sentados no tapete da sala, ouvindo In Utero — negou, não foi bem assim, meu pai me explicou, ferraram muito a Alemanha com aquele tratado lá, como é que o nome?, ele só fez o que precisava fazer, e esses judeus, bicho, ah, puta que pariu, deixa eu te falar desses judeus, e eu até deixava, beleza, fala aí, mas a conversa morria pouco depois e era evidente que, embora quisesse, o meu colega não tinha muito o que falar “desses judeus”, nada além de ideias genéricas e obscuras, aproveitadores, sacanas, meu pai, ele me explicou tudo, ele me explicou tudinho.

2.1 Meu desconforto aumentou gradativamente, fosse pelas coisas que o colega dizia e/ou ensaiava dizer sempre que determinados assuntos surgiam, fosse porque o pai dele não se cansava do Sieg Heil. A essa altura eu já não conseguia rir ou disfarçar ou embarcar na “brincadeirinha”, mas nenhum deles parecia se importar, ninguém ali parecia se importar, a palhaçada se dava do mesmo jeito, os outros colegas riam do mesmo jeito, a vida seguia do mesmo jeito.

2.2 Não sei por que continuei a frequentar a casa desse colega; talvez porque aos treze anos as coisas não fossem tão simples, ou eu pressentisse que elas só complicariam com o passar do tempo. E aquele era o “melhor amigo” — onde encontraria outro? Entretanto, no que diz respeito ao Sieg Heil, passei a sentir cada vez mais vergonha por algum dia ter achado graça de tamanha imbecilidade. E também comecei a sentir raiva de mim por não conseguir me afastar.

3. Muitos e muitos anos depois, em Israel, contei essas coisas para um conhecido. Estávamos sentados a uma mesa na Ben Yehuda, bebendo e comendo não me lembro o quê. Fazia muito calor. Era o sharav.

3.1 Esse conhecido era francês, recém-instalado em Jerusalém. Dizia trabalhar como fotógrafo, mas nunca me explicou direito o que fazia por lá e eu tampouco quis saber. Dizia também não conhecer a América Latina e estar curioso sobre o Brasil. Falei, então, dos anos noventa do século passado, falei do interior de Goiás, falei do sujeito parado no topo da escada, o braço direito estendido e a voz altissonando: “Heil Hitler!”. Falei de como a gente achava isso engraçado aos dez, onze, doze anos, falei de como isso aos poucos foi me parecendo mais e mais escroto, até o momento em que senti vergonha por algum dia ter achado graça de tamanha imbecilidade.

3.2 Quando parei de falar, o francês respirou fundo, tomou um gole do que quer que estivesse bebendo e disse, antes de gargalhar: “Você se envergonha do seu passado nazista”.

4. Eram os anos noventa do século passado, e também foi na casa daquele meu colega que ouvi o pai dele dizer, referindo-se a Collor, PC Farias e cia., o escândalo então no auge, que na época da revolução (sic) não tinha nada dessas coisas, não tinha roubalheira, não tinha safadeza, era tudo bem diferente. Mais tarde, em casa, comentei a respeito com o meu pai e ele bufou (estava sempre bufando) e disse que na época da ditadura (sic) era tudo bem diferente, sim, mas por outras razões. Ele disse isso e se calou, não entrou em detalhes.

4.1 (Meu velho nunca entrava em detalhes. A gente que se virasse para saber do que ele estava falando, que corresse atrás, que se informasse por conta própria e tirasse as nossas próprias conclusões. Essa sua recusa sistemática a entrar em detalhes foi uma das melhores coisas que poderia ter feito por mim.)

4.2 Essa outra história, sobre a noção sempre muito difundida de que a corrupção era algo estranho à ditadura militar, essa outra história eu não comentei com o francês, embora tivesse muito a ver com o que ele supostamente queria de mim naquela tarde (“saber mais do Brasil”). Senti preguiça de contextualizar a coisa, e estava cansado de falar do século passado, do interior de Goiás, do meu “passado nazista”.

5. O francês e eu deixamos a Ben Yehuda e fomos a um pub nas redondezas. O calor estava insuportável e uma cerveja cairia bem. No pub, papeamos sobre outras coisas, até porque nenhuma história que eu contasse seria capaz de rivalizar com as maluquices que o dono do lugar, um bielorrusso, conforme a noite se aproximava, curtia compartilhar com os fregueses. “Meu avô me contou uma coisa muito louca que ele viu quando era moleque”, ele começava, e quem estivesse ao balcão (eu sempre me sentava ao balcão) calava a boca para ouvir.

5.1 Eu tinha visto Vá e Veja e fazia alguma ideia do que significava ser moleque na Bielorrússia em meados da década de 1940. Mas, naquela tarde, por alguma razão, não consegui prestar atenção em nada. Mesmo quando o bielorrusso desandou a falar, entremeando o discurso com uma dose ou outra do que estivesse à mão (ele adorava infligir Bushmills aos fregueses) (aceitávamos de muito bom grado), continuei pensando no que contara ao francês, nós dois sentados a uma mesa no calçadão da Ben Yehuda, comendo e bebendo não me lembro o quê enquanto o sharav nos castigava, inclemente.

5.2 Eram os anos noventa do século passado, era o interior de Goiás, a igreja ainda ficava lotada nos feriados religiosos, as procissões tomavam as ruas durante a Semana Santa, o pai de um colega nos fazia rir com seus Sieg Heil e, em Jerusalém, rememorando essas coisas tanto tempo depois, senti mais vergonha do que nunca do meu passado nazista.

Kakutani

Artigo publicado hoje n’O Popular.

Segundo a crítica literária Michiko Kakutani, a noção pós-modernista de que não existem verdades absolutas, abraçada pela esquerda em meados do século passado, foi também, e ironicamente, adotada pela extrema direita contemporânea. A noção é autoanuladora: se não existem verdades absolutas, como asseverá-lo? Noutras palavras, a asserção “não existem verdades absolutas” arroga-se, paradoxalmente, o status de uma verdade absoluta: logo, caso seja verdadeira, é falsa; e caso seja falsa, é verdadeira. Em seu livro A Morte da Verdade – Notas Sobre a Mentira na Era Trump (ed. Intrínseca, trad.: André Czarnobai e Marcela Duarte), Kakutani procura discorrer sobre como o relativismo cego e inconsequente teria resultado nesse estado de fragmentação epistemológica e ética que vivenciamos nos dias de hoje.

Traçando um panorama ligeiro e, por conseguinte, simplificador do pós-modernismo – especialmente quando enfia os nomes de Nietzsche e Heidegger de maneira leviana, aludindo-os como credores de Foucault e Derrida sem, contudo, contextualizar e fundamentar tal afirmação –, Kakutani tenta descrever o fenômeno Trump como sintomático do relativismo supracitado, do ambiente histérico que resultou das chamadas guerras culturais e, sobretudo, dos usos e abusos da internet em geral e das redes sociais em particular.

Segundo ela, as fraturas epistêmicas, aprofundadas pela erosão do chão comum que deveria nos sustentar, apontam para o esgarçamento das estruturas políticas e democráticas e para o recrudescimento de um novo tipo de autoritarismo, beneficiário da esquizofrenia disseminadora de fake news e afins. Em um mundo no qual nada é objetivamente verdadeiro, mas fruto de diversas “narrativas”, qualquer coisa pode ser tomada ou aceita como “fato”, a depender do gosto do freguês — incluindo as notícias, ou mentiras, mais absurdas.

O problema é que Kakutani está, ela própria, desenrolando uma narrativa, e parece incompreender que os termos dos quais se utiliza foram também mergulhados naquele oceano de ensurdecedora esquizofrenia. Assim como Heidegger, em Sobre o “Humanismo”, critica em Sartre o uso do mesmo vocabulário que o francês intenta criticar, de tal modo que o existencialista acaba ridiculamente enredado pela própria armadilha, percebo em Kakutani uma crítica do perspectivismo que, no entanto, não consegue escapar dos vícios perspectivistas.

Talvez esse problema seja fruto da crença da autora não em um sistema político – a democracia ocidental –, mas na ideia de um sistema político – a Democracia Ocidental – que nunca se instalou por completo e irredutivelmente na realidade, nem mesmo nos EUA de Don Draper. É óbvio que o ideal alimenta o concreto, e é certo que alguns dos nossos melhores momentos são ou foram resultantes de uma maior aproximação daquele ideal, mas o choro por um Éden imaginário não torna esse paraíso menos perdido, e perdido de antemão.

Assim, A Morte da Verdade serve mais como um testemunho dos nossos dias do que como uma discussão aprofundada acerca dos mesmos — é um sintoma, não um diagnóstico. Mas, justiça seja feita, um sintoma arejador, amparado em uma teia febril de relações e competente na maneira como, em suas passagens mais felizes, enquadra picaretas como Derrida e Paul de Man. Ou seja, é o tipo de sintoma que chama a atenção para a doença, possibilitando um tratamento mais adequado da mesma.

“Eufrates” em La Pecera (e no Opção e n’A Nova Crítica)

O sr. Sérgio Tavares me entrevistou para a revista portenha La Pecera. Falamos especificamente das passagens buenairenses de Eufrates e, claro, de literatura argentina. Confira AQUI ou mais abaixo.

O mesmo sr. Tavares resenhou Eufrates para o Jornal Opção, texto depois republicado em A Nova Crítica. Leia AQUI ou AQUI.

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La Pecera entrevista André de Leones

October 8, 2018 | Sérgio Tavares

 

O escritor André de Leones acaba de lançar seu sétimo livro, “Eufrates”. Constituído por múltiplos planos narrativos, o romance acompanha uma soma de personagens ao longo de duas décadas, transitando por cidades dentro e fora do território brasileiro. Buenos Aires é uma delas. Quando Jonas, um dos protagonistas, é visto pela pela primeira vez, ele está num tipo de exílio imposto por uma dissidência afetiva, na solidão de um apartamento alugado e em passeios sem rumo pelas ruas da capital argentina. Nesse entrevista para LA PECERA, Leones conta o motivo que o levou a trazer Buenos Aires para seu livro, além de falar sobre a influência da literatura argentina na sua formação literária.

LA PECERA – Um dos protagonistas de seu romance é apresentado ao leitor, durante um momento de impasse afetivo em Buenos Aires. Dentre todo um circuito continental que vai de São Paulo a Jerusalém, o porquê da escolha de centrar um trecho do livro na capital argentina?
ANDRÉ DE LEONES – Só consigo situar minhas histórias em lugares que conheço ou nos quais já estive por um período razoável. Há alguns anos, passei uma temporada sozinho em Buenos Aires. Quando me ocorreu aquela passagem do romance, a cidade me pareceu o cenário ideal para colocar Jonas e seu impasse. Pela minha experiência, Buenos Aires convida a uma espécie de ensimesmamento ativo, na medida em que é impossível (ao menos para mim) não caminhar por ela até não aguentar mais. Jonas anda e anda e anda, percorre a cidade e é percorrido por ela, e nesse palmilhar vai aos poucos readquirindo uma pele, como se Buenos Aires o ajudasse a se proteger de si mesmo.

LA PECERA – As cenas que se passam em Buenos Aires são muito bem detalhadas, tanto em sua força imagética quanto na construção do clima da cidade. Esse processo de escrita se deu por pesquisa, foi confeccionado por meio de lembranças ou é pura fabulação?
ANDRÉ DE LEONES – O processo é fruto da minha passagem por Buenos Aires. A cidade é fascinante, e eu me lembro de caminhar por ela sem parar, por horas e horas, e depois, quando voltava ao apartamento que tinha alugado, pegar um mapa e reviver o trajeto, relembrando os nomes das ruas e parques e cafés e bares. Procuro fazer isso em todos os lugares que visito. Sou fascinado pela sensação de estranhamento que toda cidade estrangeira me oferece, e esse palmilhar intenso e introspectivo, seguido pelo “mapeamento”, é uma forma que encontrei de apreender os lugares. Dada essa vivência, é natural que as cidades continuem vivas na minha memória, convidando meus personagens para também visitá-las e percorrê-las.

LA PECERA – Qual é a sua relação com a literatura argentina? Há, em sua formação literária, incidência de autores argentinos?
ANDRÉ DE LEONES – Ainda adolescente, tive contato com os contos do “Bestiário”, de Cortázar, e d’“O Aleph”, de Borges. Ambos me impressionaram, sobretudo Borges, que releio até hoje. Depois vieram Sábato, Arlt, Bioy, Walsh, Pizarnik, Saer (meu predileto) e, mais recentemente, Selva Almada. A minha formação é mais acentuadamente anglo-saxônica, mas Borges e Saer foram muito importantes em momentos distintos da minha formação: o primeiro quando eu começava a tecer a minha teia como leitor; o segundo, anos depois, ao me abrir a possibilidade de uma mudança de tom sem a qual romances como “Terra de casas vazias” e “Eufrates” não se sustentariam ou talvez nem mesmo existissem.

LA PECERA – Qual é a sua obra argentina preferida? E por quê?
ANDRÉ DE LEONES – “La Grande”, de Juan José Saer. Pelo tom detalhista e parcimonioso; pela beleza de suas perquirições (inclusive filosóficas); pela sua incompletude que, embora inadvertida (o autor morreu antes de conclui-lo), acaba por iluminar a obra tal e qual se apresenta; pela grandeza com que premia os menores gestos; pela coragem de sua horizontalidade, elemento que também persigo.

LA PECERA – Na condição de contista, qual sua teoria do conto predileta: a boxeadora, do Cortázar, ou a de que um conto sempre conta duas histórias, do Piglia?
ANDRÉ DE LEONES – Embora tenha publicado um livro de contos há dez anos, não me vejo como um contista. Sou, em essência, um romancista; os sintomas da minha doença são agudos, mas se prolongam demasiadamente. Aprecio as duas acepções, e a beleza da coisa é, como leitor, deparar-me com narrativas que se apresentam e se permitem ler de ambas as maneiras, como as do melhor Hemingway, Cheever, Borges ou Walsh (inclusive as detetivescas).

“Eufrates” no Estadão (II)

Resenha publicada hoje no Estadão.

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André de Leones explora a harmonia do caos em ‘Eufrates’

Autor alcança estilo refinado como poucos de seus pares na literatura brasileira recente

Martim Vasques da Cunha*, Especial para o Estado
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Em Eufrates, André de Leones chega à maturidade literária já antevista em seus romances anteriores, como o conciso e perturbador Dentes Negros(2011), o épico existencialista Terra de Casas Vazias (2013) e a releitura inusitada da obra-prima de Raduan Nassar, Lavoura Arcaica, somada ao roman dûr de Georges Simenon, feita em Abaixo do Paraíso (2016). Se nesses livros tínhamos o crescimento paulatino de um escritor que incorporava suas influências romanescas, cinematográficas e musicais em histórias que articulavam uma forma muito peculiar de paralisia existencial, agora temos um artista com perfeito controle dramatúrgico dos seus meios de expressão — e alguém que, no meio da confusão dominante no Brasil, consegue dar um pouco de paz aos seus personagens.

Além disso, De Leones mostra um “tesão estilístico” que poucos contemporâneos da sua geração podem se gabar — com a possível exceção de Joca Reiners Terron em seu estupendo Noite Dentro da Noite (2017) e Daniel Pellizzari com a pérola que é Digam à Satã que o Recado Foi Entendido (2013). Eufrates é praticamente enciclopédico na fome de querer abarcar todos os estilos possíveis da literatura feita nos últimos 25 anos — do diálogo cifrado e incompleto de um Don DeLillo à inquietação hebraica de Aharon Appelfeld, passando pela descrição minuciosa e alucinada de David Foster Wallace, até a grande poesia contemporânea em língua portuguesa (não à toa que o título do romance vem dos versos de Ruy Bello), sem deixar de lado o amor que o escritor goiano tem pelo mestre do “romance total”, o irlandês James Joyce.

Contudo, felizmente, Eufrates não é um “romance total”. Digo “felizmente” porque sua estrutura extremamente fragmentada — inspirada, sem dúvida, na mesma moldura dramática feita por DeLillo em Submundo (1998), o Ulisses da geração dos anos 2000 — é um “correlato objetivo” (a expressão é de T.S. Eliot) que se encaixa perfeitamente ao drama que De Leones narra em seu livro.

No caso, o drama é a história de dois amigos — Moshe e Jonas — que, de 1999 a 2013, ora têm seus encontros com o destino, ora suas desavenças com os amores do passado, ora seus flertes com o sexo e as drogas, sempre em busca de uma transcendência que nunca chega. O resultado direto é a ação da acídia na alma de cada um, uma paralisia do espírito sobre o que realmente importa em suas vidas. De Leones mostra suas habilidades dramáticas, ao jogar este impasse em cada “correlato objetivo” que Moshe ou Jonas encontram pelo caminho: um amigo de infância (João Gabriel, o melhor jogador de basquete da literatura nacional), a imagem do deserto de Negev, em Israel, o retorno de uma namorada que faz uma escolha inusitada ou então a presença do pai numa reconciliação sobre o que sempre parecia estar perdido.

Em Eufrates, o drama das paralisias particulares de Moshe e Jonas parece ser uma amostra do caos que também afeta o Brasil como nação. E, aqui, o que parece ser um fracasso do “romance total” se revela como sua maior virtude. De Leones criou um livro incompleto, fragmentado e caótico porque ele pratica a arte da literatura naquilo que Milan Kundera afirmava ser um “novo modo de conhecer a realidade objetiva”. Trata-se de uma ousadia rara na nossa literatura, pois ao fazer uma síntese perturbadora de dois filósofos aparentemente antípodas — o brasileiro Paulo Eduardo Arantes e o austríaco Eric Voegelin — reflete a falta de estrutura que é a própria essência do brasileiro, um mero sobrevivente neste “novo tempo do mundo”.

Em uma conversa apaziguadora com seu pai, Moshe explica o que é o Brasil, enquanto assistem às revoltas de junho de 2013. “O cidadão brasileiro não é cidadão”, diz, “porque não passa de um pedestre, de um passeador do concreto, da sujeira, da violência. Ele vive como que no exílio, ou em um limbo, porque está na cidade, mas não constitui a cidade, não é visto com ela, não é visto por ela, e vice-versa. Eu acho que esses gritos ficam ecoando no vazio, indo para lugar nenhum, e se perdem no concreto, morrem nele, incluindo os que, como eu, nem estão lá, mas na calçada ou dentro de casa mesmo, vendo tudo pela televisão e só botando a cabeça na janela pra ver o circo pegar fogo.”

É nessa certeza do exílio que Eufrates se movimenta sinuosamente, igual ao rio que o inspira, naquela “vida que plenamente existe só na nossa voz”. Se seus personagens ainda não viram a “terceira margem” de Guimarães Rosa, pelo menos descobrem alguma harmonia no meio do caos onde vivem. E são capazes desta façanha graças aos poderes ficcionais de André de Leones. Igual a um demiurgo, ele cria um mundo desolado e pleno de maravilhas inexploradas — e, justamente por causa disso, nos reconcilia com os fragmentos que, desde sempre, escoramos contra as nossas ruínas.

*Martim Vasques da Cunha é autor de ‘Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More’ (Vide Editorial) e ‘A Poeira da Glória – Uma (Inesperada) História da Literatura Brasileira (Record)

Depois do fim, antes do começo

Texto publicado no Blog da Rocco.

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Há dez anos, quando dei Dentes negros por terminado, não imaginava que a névoa apocalíptica que nos rodeia se adensaria tanto. Bom, talvez eu pressentisse isso (quem não?), mas não me lembro de tecer aquela narrativa com os olhos tão arregalados para o mundo ao redor, imaginando que o degringolamento geral e irrestrito era só uma questão de tempo. Na época, eu estava mais interessado em levar a cabo um projeto antigo: explorar um determinado gênero de narrativas pós-apocalípticas que, como leitor e espectador, palmilhei no decorrer da vida, do Último Homem de Mary Shelley ao Mad Max de George Miller, passando pelas investidas de Walter M. Miller Jr., Terry Gilliam, Cormac McCarthy, Andrei Tarkovski, Katsuhiro Otomo e, é claro, Margaret Atwood.

O fim do mundo é sempre uma boa ideia, eu vivia gracejando então, e a literatura e o cinema são provas (por enquanto) vivas disso.

O ponto de ruptura ensejado por Dentes negros envolve uma epidemia misteriosa, uma doença que mata em questão de segundos, deixando as vítimas com os dentes escurecidos. Por alguma razão, a tal epidemia se restringe à porção centro-norte do Brasil. Assim, quando ela é (aparentemente) debelada, boa parte da nação já se encontra devastada. Dois terços do livro procuram se ocupar daqueles que permaneceram, sugerindo ou ensaiando um recomeço possível.

Como se vê, não obstante a carga de violência que descolore suas páginas, Dentes negros é uma investida bem menos extrema do que os exemplos citados acima. Talvez eu ainda não estivesse preparado para me despedir do mundo tal e qual o conhecemos, ou para simplesmente acabar com ele de uma vez por todas (mas como seria um romance que chegasse a tanto? Sua metade final seria composta por páginas em branco?).

Oryx e Crake, o primeiro de uma trilogia que também inclui O Ano do Dilúvio e Maddadão, passa ao largo de tais hesitações. Margaret Atwood nos traz um protagonista lançado em um mundo que, a princípio, não apresenta lá muitas possibilidades de recomeço. O Homem das Neves, outrora Jimmy, talvez seja o último sobrevivente humano de uma catástrofe cujas causas e consequências imediatas são desveladas aos poucos. Junto dele há um bando de criaturas dóceis, “plácidas, como estátuas animadas”, “crianças grandes, de olhos verdes”, para as quais engendra uma espécie de mito da Criação envolvendo duas divindades, Oryx e Crake – os nomes da mulher por quem Jimmy era apaixonado e de seu melhor amigo, respectivamente. O romance se alterna entre o mundo “presente”, pós-catástrofe, e o passado, onde personagens e acontecimentos convergem para o desastre.

As criaturas com as quais o Homem das Neves convive são fruto da bioengenharia e remetem a Adão e Eva pré-Queda, embora, é evidente, não haja nada parecido com um Éden ao redor. Elas se regozijam com a desajeitada fabulação do protagonista, com sua capacidade de inventar um Gênesis que lhes apeteça, a narrativa borbulhando a partir do caos, por mais “perigoso” que isso talvez seja, pois: “Cuidado com a arte”, lemos perto do desfecho do romance. É uma fala de Crake, relembrada pelo Homem das Neves. “Assim que eles começarem a produzir arte, teremos problemas. Qualquer tipo de pensamento simbólico seria sinal de decadência, na opinião de Crake. Em seguida eles estariam inventando ídolos e funerais e oferendas para os túmulos, e vida após a morte, e pecado e Linear B, e reis, e depois escravidão e guerra.”

Depois do fim, antes do começo: o não-tempo e o não-lugar onde se passa Oryx e Crake são um produto direto do desvario humano, mas a ficção especulativa de Atwood vai muito além de um inventário (ou de um “alerta”) acerca do nosso descarrilamento. E, a meu ver, o “perigo” representado pela arte é, na verdade, uma das poucas coisas capazes de sustentar uma sobrevida não propriamente física – desde sempre ameaçada, neste mundo ou no pós-mundo imaginado por Atwood –, mas anímica. Pois, apesar de tudo, inclusive do passado, o Homem das Neves ainda se dispõe a aduzir uma ideia de mundo, uma narrativa originária que substancie a realidade dos outros e, por decorrência, a sua própria: “E ele não suportaria ser nada, saber que não era nada. Ele precisa ser ouvido, precisa de atenção”. Entre o fim e o começo, no “Grande Vazio”, ainda subsiste a necessidade não só de fabular, mas de fabular com e para os outros. Para mim, embora não seja o ponto fulcral, isso é o que há de mais belo no romance de Atwood.

Em Dentes negros, ainda que a desolação não seja tão irrefreada quanto em Oryx e Crake, há nos sobreviventes da Calamidade impulsos similares, primeiro em direção ao passado – o que perdemos, as histórias que contamos para nós mesmos e para os outros –, depois rumo ao próximo – as histórias ainda por vivenciar, apesar de toda a violência circundante, apesar das más lembranças e dos traumas, apesar da incerteza quanto ao futuro, apesar de tudo.

Penso que, nos dias de hoje, por conta daquele adensamento a que me referi no parágrafo inicial, abrir espaço para tais coisas – a exata noção do que perdemos e/ou poderemos perder, a importância da fabulação, a compreensão do outro (por mais diferente que seja) como parte imprescindível de nós mesmos – é uma boa maneira de se precaver contra o brutal instinto (auto)destruidor que, infelizmente, anima tantos entre nós. Até porque um traço comum à maior parte das narrativas apocalípticas e pós-apocalípticas é a noção de que o fim do nosso mundo não é algo que poderá acontecer em um futuro possível, mas, sim, que está em curso, que se desenrola aqui e agora, com maior ou menor celeridade, com mais ou menos violência. Daí que a chamada ficção especulativa tem os pés bem fincados no chão, até para melhor averiguar o seu esbororamento.

“Eufrates” no Estadão

Entrevista publicada hoje no Estado de São Paulo.

ANDRE,ESCRITOR
Foto: Werther Santana/Estadão

 

ANDRÉ DE LEONES LANÇA EUFRATES, UM ELOGIO DA AMIZADE
Sexto romance do autor de Hoje Está um Dia Morto e Terra de Casas Vazias será lançado nesta terça, 11, na Blooks, em São Paulo

Por Maria Fernanda Rodrigues.

Moshe e Jonas são dois garotos comuns vivendo a vida. São diferentes – mas são, sobretudo, amigos. Em Eufrates, o novo romance de André de Leones, escritor revelado pelo Prêmio Sesc de Literatura em 2005 com Hoje Está Um Dia Morto, acompanhamos determinados momentos da trajetória dos dois, e de mais duas dezenas de personagens, por cidades como São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro, Belém, Buenos Aires e Jerusalém entre 1991 e 2013.

A obra parte da amizade dos dois protagonistas e, com base na história deles, que é narrada em paralelo, o autor vai criando uma teia de relações familiares e afetivas. Começamos em São Paulo, lendo sobre o último encontro entre Moshe e sua mãe, que está voltando para casa, em Israel, depois de uns dias no Brasil com o novo marido. Somos informados das consequências que a separação da família teve sobre o pai, outro importante personagem de Eufrates, e o garoto. Seguimos a história com Jonas, num desencontro com a namorada em Buenos Aires. E continuamos acompanhando essas pessoas comuns, que vivem, sim, aqui e ali, fatos extraordinários e tragédias incontornáveis, mas que na maior parte do tempo estão às voltas com as ocorrências cotidianas, coisas com as quais temos de lidar, como, por exemplo, o rompimento, a mágoa, o perdão.

“Amizade é a palavra-chave do livro, e isso vem também do clima que vai ficando cada vez mais sufocante no País. Eu queria investigar se ainda pode haver alguma espécie de comunhão, de convivência saudável, entre pessoas próximas. Se elas ainda podem se apoiar umas nas outras”, explica Leones.

E essa questão nos leva a 2013, o período final da trama e um ano divisor de águas. “Os historiadores vão dizer, e não vai ser por agora com o caldo entornando, mas a impressão que tenho é que há um ponto de inflexão histórica em 2013 e estamos acompanhando as consequências, para o bem e para o mal, da radicalização dos espectros ideológicos.”

As manifestações daquele ano aparecem às margens da obra, com personagens comentando algo sobre elas. “Minha ideia é, sem ficar pontuando com traços muito fortes ou fazendo com que os personagens se posicionem, usar essas questões como pano de fundo e mostrar como era a atmosfera da época.” Mesmo quando há um diálogo mais político, entre Moshe e o pai, a discussão é sobre como o País se relaciona com seus cidadãos.

Leones, autor, também de Abaixo do Paraíso (2016), que se passa em Brasília e fala sobre corrupção, voltará aos personagens de Eufrates num futuro próximo e diz que questões políticas serão tratadas mais incisivamente – justamente pelo clima “pesado” do País.

“As pessoas estão nas redes sociais gritando essas grandes questões nacionais e universais, mas, às vezes, vale mais dar esse passo para trás, atentar para as coisas pequenas, antes de pensar nas coisas maiores. A vida já está tão degringolada domesticamente que não precisamos ficar por aí berrando a favor ou contra um candidato, um vizinho. Fixar nesses acontecimentos menores, entre aspas, da vida dos personagens também é uma forma de sublinhar o que é realmente importante na vida: a família, os amigos, você mesmo”, comenta.

Leones completa: “Se você não tem uma constituição anímica sólida em relação a essas coisas, como vai ter em relação às questões sociais e políticas?”.

Eufrates, o sexto romance do autor, que tem também um livro de contos, é, ele diz, a convergência de um projeto que começa com Como Desaparecer Completamente (2010) e segue com Terra de Casas Vazias (2013). Coincide neles, explica, a estruturação (o desenvolvimento de várias histórias que se desenrolam paralelamente e convergem em determinados momentos) e o tema (família, amizade).

Um livro, apesar dos pesares, otimista. “A minha intenção era dar a entender que se a gente cuidar de si e do outro ainda é possível ter uma convivência minimamente saudável, não obstante a turbulência que nos cerca. Que apesar da solidão bater às vezes, do desespero, da depressão, ainda é possível”, diz o autor que autografa o livro hoje, às 19h, na Blooks.

EUFRATES
Autor: André de Leones
Editora: José Olympio
(392 págs.; R$ 57,90)
Lançamento: Terça (11), às 19h, na Blooks (Rua Frei Caneca, 569)

No violento coração do mundo

Texto publicado hoje n’O Popular.

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Em tempos de crise, tudo parece se distanciar. Todo diálogo se torna um diálogo de surdos, pois, como diz a certa altura o mais cínico dos personagens do romance Nix, de Nathan Hill, a “realidade é complicada demais, assustadora demais” e nunca “fomos tão radicais em política, tão fundamentalistas em religião, tão rígidos em nosso pensamento, tão incapazes de empatia”. Tendo isso em mente, é possível ler essa bela estreia do autor (lançada no Brasil pela Intrínseca, com tradução de José Francisco Botelho) como uma tentativa de lançar alguma luz sobre o nosso tempo e, por meio de uma intrincada história familiar, espelhar o desassossego que vivenciamos.

Ao longo de quase setecentas páginas, e girando em torno de um determinado “presente” (meados de 2011), a narrativa se dispersa no tempo de uma forma tal que nos lembra o que Don DeLillo perpetrou em Submundo. É verdade que Hill não alcança a profundidade reflexiva e o humor sombrio de DeLillo: em seus piores momentos, felizmente poucos, assume um tom meio canhestro de autoajuda. Mas, nous melhores, investe com arrojo e inventividade naquele drama familiar que é às vezes preenchido, às vezes adoecido pelo drama histórico. Em primeiro plano, e não obstante a tempestade que raiva lá fora, estão sempre as escolhas dos personagens.

Os protagonistas de Nix são Samuel e sua mãe, Faye. Ele é um escritor frustrado que ganha a vida como professor universitário e sente a vida escorrer pelos dedos. Após se desentender com uma aluna, está prestes a perder o emprego. Faye, por sua vez, abandonou marido e filho décadas antes e desapareceu. Por razões que só serão esclarecidas no desfecho, ela se envolve em uma confusão com um político boçal. O escândalo reaproxima mãe e filho: sob um falso pretexto, Samuel quer desvelar os segredos da família; já Faye busca expiá-los.

Conforme foi dito acima, as trajetórias dos personagens tangenciam e às vezes mergulham em eventos históricos: os protestos de 1968 em Chicago, a Guerra do Iraque, o Occupy Wall Street e até mesmo a invasão de uma cidadezinha norueguesa pelos nazistas. Cada uma dessas passagens é costurada habilmente pelo autor, explorando sobretudo as constantes fugas de Faye e as hesitações de Samuel, e em pelo menos duas delas (1968 e Iraque) Hill se impõe como uma voz de primeira linha.

Ele é capaz de alternar humor – Hubert H. Humphrey em toda a sua paspalhice; Allen Ginsberg “lecionando”; o capítulo 3 da oitava parte e sua levada insana à David Foster Wallace – e terror – os abusos sofridos por um personagem; a repressão policial em 1968; a imagem de um camelo enlouquecido em meio à guerra – sem maiores tropeços, e o livro flui muito bem do começo ao fim. Tal fluidez é incrementada por soluções imaginativas, como uma discussão entre professor e aluna estruturada a partir de falácias lógicas ou o longo embate em Chicago estilhaçado por uma sucessão de blocos narrativos, cada qual contando ou mesmo alucinando um fragmento do confronto.

E é nesse espírito que Hill lança mão de uma velha história de fantasmas (que explica o título do romance) para nos remeter ao nosso maior temor em tempos conturbados: de que cavalgamos rumo ao precipício, levados justamente por aquilo que mais amamos. Mas, sob o “violento coração do mundo”, Nix aponta para a possibilidade de outros caminhos.