Resenha publicada no Estadão em 13.01.2014.
Com as graças de São Sepé Tiaraju, dispomos agora do romance Quatro Soldados, de Samir Machado de Machado. Também autor da novela O Professor de Botânica, lançada em 2008, ele investe dessa vez numa viagem de ecos pynchonianos (e logo tal palavrão será explicado) à região sul do nosso continente, em meados do século 18, mais precisamente nos anos posteriores à assinatura do Tratado de Madri (1750) por Portugal e Espanha.
Não cabe explicar, aqui, todo o contexto histórico relativo ao tratado, pois carecemos de espaço e sempre há o Google para os preguiçosos e as bibliotecas para os destemidos. Basta dizer que as querelas envolviam as nações citadas, questões fronteiriças, jesuítas e índios, e que uma das decorrências imediatas da assinatura foi a Guerra Guaranítica (1750-1756). Em seu romance, aliás, Machado alude a um episódio particularmente sangrento dessa guerra, a Batalha de Caiboaté, na qual cerca de mil e quinhentos índios guaranis foram massacrados, incluindo o líder Sepé Tiaraju, por espanhóis e portugueses. Como se vê, embora o livro adote um tom muitas vezes trocista, é impossível contornar a barbárie e o genocídio, sobre os quais foi erguida a nossa bela e aprazível nação.
Quatro Soldados é dividido em quatro partes e escrito em um brilhante pastiche do português arcaico. Os personagens-título circulam por uma região compreendida entre Laguna, hoje município de Santa Catarina, e a Colônia do Sacramento, que integra o Uruguai. Eles são um jovem alferes chamado Licurgo, um oficial de origem nobre que, com certa dificuldade , atende por Antônio Coluna, um desertor, contrabandista de livros e segurança de bordel apelidado de Andaluz e uma figura misteriosa, empenhada em missões escusas e sobre a qual não convém discorrer muito. Eles se cruzam em narrativas de caráter aventureiro, às vezes fantasioso e, na última parte, policialesco, interligadas pelos desatinos do acaso ou, talvez fosse melhor dizer, por um narrador fanfarrão, nada confiável, cuja identidade não é difícil apontar tão logo ele irrompe história(s) adentro.
Quanto ao palavrão utilizado no início da resenha, é bom explicar que uma das inúmeras inspirações do autor é Thomas Pynchon, romancista americano que, em 1997, lançou Mason & Dixon, aventura setecentista, baseada em personagens reais, repleta de lances fantasiosos e escrita em inglês castiço. Várias das elucubrações pynchonianas, sobretudo sobre os “perigos” que a ficção representa para a ordem vigente (conforme diz a certa altura o narrador de Quatro Soldados, não é por acaso que se queimam mais livros do que pessoas), ecoam no livro de Machado. E, sobre isso, sugerimos uma leitura ou releitura do 35º capítulo de Mason & Dixon.
É bom que se diga, contudo, que Machado vai além da mera citação e faz de seu romance uma criatura capaz de se sustentar sobre as quatro patas. Ele concebe um mundo dos mais instigantes, cheio de labirintos, cavernas, abismos e bestas mitológicas e humanas. Mais importante é seu apego resoluto ao próprio ato de narrar, pois o “mundo muda quando mudamos o modo como lo vemos”. E, a nos fiarmos nas fronteiras maravilhosamente movediças da literatura, sempre “há um Novo Mundo nascendo”.