Helfferich

Trecho do meu romancemprogresso. Não, não é um trecho do romance que a Record lança no ano que vem (e que está pronto há mais de um ano), beleza? É de um projeto que iniciei meses atrás e no qual trabalho por esses dias.

 

“(…) toda abertura pode ser um pouquinho mais aberta:
essa é a sugestão sádica dos tranquilos lagos de jardim.”
— Miklós Szentkuthy, em Praie.

A noite muito clara e fria ao nosso redor: a energia acabou há pouco. Ficamos ali, contemplando os vazios do quintal e bebendo, o gramado aparadinho (um dos passatempos prediletos de Herr Konrad Helfferich, usando uma bermuda larga e com bolsos demais, sapatos de couro marrom, meias brancas, óculos escuros e, às vezes, um chapéu tirolês, o som ligado, ainda que o barulho do cortador triture os quartetos de cordas de Schubert que ele tanto aprecia) (não, jamais o flagrei ouvindo Wagner, e tampouco vi qualquer obra do marido de Cosima (que corneou von Bülow) (e era filha da condessa Marie d’Agoult, que também trocou o marido por um compositor (e pai de Cosima), Liszt) entre os vinis e CDs do velho), o cortador à direita, estacionado junto ao muro lateral, uma mangueira enrolada mais ao fundo, o pequeno lago de jardim sem jardim ao redor, e só, um quintal sem árvores, um quadrado verde e meio deserto rodeado pelo muro chapiscado branco, por que não construir uma piscina ou fazer uma horta ou, sei lá, criar coelhos, codornas e preás, povoar o ambiente, torná-lo menos vazio? (Sorrio ao pensar em Herr Konrad Helfferich vomitando coelhinhos.) Ninguém diz nada por vários e vários minutos, como se a queda de energia desabilitasse a nossa capacidade de falar. (Será que somos sintéticos?) Olho para o relógio: duas e trinta e nove. A impressão de que mais tempo transcorreu desde que chegamos, de que estamos ali desde a tarde da véspera, e a poucos minutos do amanhecer. Não estamos. Embriaguez somada ao cansaço. Tempo sem tempo. Solto. Toda e qualquer continuidade quebrada. Penso em um velho moribundo largado na cama, oscilando entre a vida e o nada, já meio desligado de tudo, prestes a se desligar por completo. Apagar. Como seria o tempo para ele, nesse apagamento gradual? Dois dos atos mais solitários do mundo: a morte e a masturbação. Mas não estou sozinho. Ouço Lidiane respirar ao meu lado, adivinho o gesto de levar o copo à boca, ouço o gole, a língua percorrendo o lábio inferior. Tenho sono, estou bêbado e cansado, mas não quero ir embora. A energia acabar assim, do nada. Como antes, na rua do sátiro. A lâmpada estourando daquele jeito. Sem chuva, sem relâmpagos, sem ventania, uma noite clara e seca. Olho para baixo, para as minhas mãos. Cristian não matou ninguém. Eu não matei ninguém. Lidiane não matou ninguém. Quantos Herr Konrad Helfferich matou? Antes de emigrar para o Brasil, ou melhor, antes de desertar e fugir para o Brasil, trazendo consigo um pé-de-meia razoável, que lhe possibilitou uma vida anônima e confortável aqui no Centro-Oeste? Espólios. Disso eu sei. Magda me contou. Bens valiosos roubados dos judeus que ajudou a desalojar na Polônia, muitos dos quais foram enviados para os guetos e depois para os campos e as câmaras de gás, e só não foram enviados os poucos que deram um jeito de escapar e, óbvio, aqueles que morreram logo de cara, porque os companheiros de Herr Konrad Helfferich (e muito possivelmente o próprio) (isso Magda não me contou, e disso ela provavelmente não sabe, mas eu pesquisei e descobri que, por exemplo, soldados da divisão de Herr Konrad Helfferich, a Leibstandarte SS Adolf Hitler, LSSAH) queimaram vilas e mataram centenas de civis, cristãos e judeus, incluindo crianças, sim, crianças, em Złoczew, por exemplo, no dia 4 de setembro de 1939, e outros cinquenta (a maioria judeus) em Błonie, no dia 19 de setembro de 1939, e queimaram residências e estabelecimentos comerciais e prédios públicos, e também aterrorizaram e metralharam pessoas em Bolesławiec, em Goworowo, em Mława, em Torzeniec, em Włocławek, e ainda eram apenas as primeiras semanas da guerra. Herr Konrad Helfferich amealhou seus espólios e planejou bem a deserção, tanto que foi muitíssimo bem-sucedido, e aguardou o momento ideal para desaparecer, quando já estava claro que a Alemanha se daria muito, muito mal, que o Führer desvairava mais do que nunca e se mostrava disposto a cumprir a promessa de uma guerra de aniquilação (dos inimigos ou do Reich: triunfar ou desaparecer), que os bolcheviques raivavam no horizonte, em uma contraofensiva espetacular e implacável, que tudo desabaria sob as bombas, que os velhos e os meninos seriam trucidados a um quarteirão de suas casas, que as mulheres e as meninas seriam estupradas à sombra dos escombros, as cidades devastadas sob uma escuridão bem distinta dessa em que nos encontramos, um breu imundo e viscoso de sangue alemão, mas também da fuligem dos corpos queimados nos fornos (porque esta é uma sombra grande demais, sim, enorme e espessa como poucas), uma outra qualidade de escuro, um breu cruento e antinatural caindo sobre as cabeças de todos os alemães, ou dos alemães que ainda restassem. Magda não soube me explicar as circunstâncias, de que forma e por que vias o — ele entoou a patente com orgulho — SS-Hauptsturmführer Konrad Helfferich escapou, e como e por que (cargas d’água) veio parar no interior de Goiás, será que abriu o mapa do Brasil, vislumbrou o cerrado, o Planalto Central, e pensou que jamais seria encontrado ali? Brasília, distante 161 quilômetros de Vianópolis, ainda não existia. Goiânia, distante 95 quilômetros de Vianópolis, existia, mas era uma capital impúbere, tinha onze anos em 1944, quando o homem desertou (embora só tenha se estabelecido em Vianópolis um pouco depois, e Magda não saiba (e eu muito menos) sobre o itinerário dele entre a deserção e a chegada à cidadezinha). Mengele foi se afogar no Atlântico, em Bertioga (bem melhor do que se afogar no rio dos Bois, em Inaciolândia), e Eichmann (ou “Ricardo Klement”), contando com a ajuda da porra de um bispo austríaco, de um maldito bispo, escondeu-se na maldita Argentina, arranjou trabalho na maldita Mercedes-Benz (onde ascendeu à chefia de um maldito departamento) e construiu uma maldita casa na (vejam só) rua Garibaldi, perto de onde foi raptado por uma equipe do Mossad em meados de 1960. Sabemos que o (foda-se a deserção, prefiro tratá-lo assim) SS-Hauptsturmführer Konrad Helfferich vive tranquilamente no intestino grosso (bem perto do intestino reto) de Goiás desde o final da década de 1940. O que ele fez entre 1944, quando desertou e sumiu daquilo que professores de história e analistas televisivos costumam chamar de “teatro de operações” ou “teatro de guerra” (“mas é tudo teatro”, escreveu alguém), e 1948, ano em que se estabeleceu na recém-emancipada Vianópolis, abrindo uma maldita farmácia, é um mistério. Em 1949, casou-se com a filha do padeiro. Magda nasceu no mesmo ano. A filha do padeiro morreu em 1951, no parto da segunda criança — Maura, que sobreviveu e mora em Glen Cove, condado de Nassau, Long Island, estado de Nova York, nos Estados Unidos da América, casou-se com um policial e trabalha em uma organização não governamental que auxilia veteranos de guerra. Magda engravidou aos catorze anos de idade, e se recusou a contar ao SS-Hauptsturmführer Konrad Helfferich quem era o coautor da façanha. Segundo a própria me contou, o velho chegou a surrá-la diversas vezes, na esperança de que confessasse o nome do Schwein e/ou na naziesperança de que abortasse. Ameaçou deserdá-la, expulsá-la de casa, vendê-la a um dono de puteiro depois que parisse (e dar a criança para adoção), matá-la a pontapés, abrir o bucho com uma faca e arrancar o feto e jogá-lo para os cachorros (não sei se eles tinham cachorros na época; hoje e desde que frequento a casa, não têm e não tiveram), abrir o bucho com uma faca e arrancar o feto e jogá-lo para os cachorros e enfiar um rato vivo no bucho e costurá-lo e ver o que acontecia, ameaçou e bateu e ameaçou, mas não cumpriu nenhuma das ameaças e, quando Lidiane (nome que ele odiou) nasceu, apaixonou-se pela neta e nunca mais perguntou a Magda sobre o pai da criança, jamais voltou a surrá-la e, nas raras vezes em que as circunstâncias da gravidez e as surras são mencionadas, balança a cabeça e diz: Não sei do que você está falando. Ou: Eu jamais faria uma coisa dessas. Ou ainda: Nunca toquei em um fio de cabelo seu ou da sua irmã. Além de ser um rematado filho da puta e cúmplice de genocídio, o SS-Hauptsturmführer Konrad Helfferich também tem (ou finge ter) uma péssima memória. Não sei por que Magda me contou essas coisas. Era uma véspera de ano-novo (sim, no mesmo ano, isto é, dias depois de rolar aquela conversa atravessadíssima com o velho durante a ceia de Natal), eu a ajudava com a ceia, estávamos só os dois na cozinha (Lidiane e o avô na sala, assistindo a algum cretiníssimo especial televisivo), e ela me perguntou se meu pai costumava me bater. Respondi que sim, de vez em quando, quando eu aprontava alguma. Mas ele batia pra valer? Não, dava umas palmadas, uns safanões, usou o cinto duas ou três vezes, nada que tenha me causado lesões ou ressentimentos permanentes. E então, voz pastosa, ela contou sobre as circunstâncias da gravidez, sobre o quanto era nova, sobre como o SS-Hauptsturmführer Konrad Helfferich reagira, as surras e as ameaças e as surras, e depois retrocedeu, amo o meu pai e, tirando essa merda toda na época da gravidez, ele sempre foi muito bom comigo e com a minha irmã, insistiu que a gente estudasse e trabalhasse, sabe?, pra não depender de ninguém, ele dizia, depender dos outros é a pior coisa que existe, amo o meu pai, mas só fico imaginando o tipo de coisa que ele aprontou na Europa antes e durante a guerra, caramba, Leandro, ele estava no olho do furacão, bem no meio da desgraceira, disso eu sei, disso eu tenho certeza. Mas como a senhora sabe?, perguntei. E ela me falou das memorabilia, os objetos que um amigo (a quem ele se referiu, ecoando (talvez inconscientemente) uma expressão do Führer, como um antigo companheiro de minha juventude, e também um companheiro de armas, um bom parceiro daqueles tempos) enviara para o velho em meados da década de 1970, fotos e medalhas, fotos do SS-Hauptsturmführer Konrad Helfferich fardado e cercado por outros oficiais, eu cheguei a Hauptsturmführer, disse ele a Magda na ocasião, mostrando, orgulhoso, todas aquelas quinquilharias recém-chegadas da Alemanha, um capitão, sabe?, eu era um capitão, e éramos tão jovens, jovens e audaciosos, tivemos o mundo e perdemos o mundo, a Europa seria outra hoje, nosso povo respiraria um ar bem diferente dessa atmosfera empesteada, a Europa não seria essa poça de água parada, essa maldita poça de água parada, e mostrou a ela uma medalha, dizendo: Eisernes Kreuz, Cruz de Ferro. E por que o senhor ganhou isso? Vevi, ele respondeu à filha com um sorriso. Uma batalha na Grécia. Leibstandarte SS era a minha divisão. Dietrich, von Appel, Witt, Meyer: ela não me disse esses nomes, apenas repetiu o nome da divisão que ouvira do pai, e o do local, claro, a menção à batalha; eu é que, impressionado, fui depois à Biblioteca Pública Coronel Pireneus, em Silvânia, e pesquisei um bocado, fingia estar preparando aulas, mas lia tudo o que encontrava nas enciclopédias e livros de história sobre o assunto. Batalha de Vevi. 11 e 12 de abril de 1941. Kirli Derven. Entre os vilarejos de Devi e Kleidi. Avanço nazista na Grécia, com apoio da Leibstandarte SS, unidade de elite das Waffen-SS. Aliados (australianos, gregos, neozelandeses, britânicos) batendo em retirada. E ele dissera a Magda (e Magda repetiu para mim) um outro nome: Malmedy. O velho insistindo que não estivera em Malmedy, que não participara daquilo, não, kleine Tochter, de jeito nenhum. Bélgica, 17 de dezembro de 1944 (também pesquisei). Oitenta e quatro prisioneiros de guerra norte-americanos executados no campo, nos arredores de Baugnez, a poucos quilômetros da cidade de Malmedy. Isso se deu em meio à Batalha das Ardenas. Os norte-americanos tinham se rendido após uma escaramuça. Foram agrupados e metralhados por soldados das Waffen-SS. Aqueles que sobreviveram às rajadas e se contorciam no chão forrado de neve e lama e sangue levaram tiros na cabeça. Nazistas conscienciosos ministrando tiros de misericórdia depois de metralhar um grupo de homens desarmados, indefesos, rendidos. Alguns conseguiram correr em meio às rajadas e buscaram refúgio em um café perto dali. Soldados das Waffen-SS os perseguiram, cercaram e atearam fogo ao café, e atiraram naqueles que saíam do lugar, fugindo das chamas, alguns em chamas. O SS-Standartenführer Joachim Peiper já havia deixado o local quando o massacre ocorreu, mas é muito provável que tenha ordenado a matança. Em todo caso, o SS-Sturmbannführer Werner Poetschke estava lá, e testemunhas disseram que partiu dele a ordem direta. Quem alegou não estar presente foi o SS-Hauptsturmführer Konrad Helfferich. Ele disse à filha que, naquela altura, já havia desertado e estava bem longe da Europa (recusou-se a dizer onde). Mas, no ano anterior, o SS-Hauptsturmführer Konrad Helfferich ainda não havia desertado. E, no ano anterior, em 19 de setembro de 1943, os saltimbancos da Leibstandarte SS estavam na Itália, em Boves, e lá chacinaram vinte e três civis italianos e destruíram centenas de casas, seguindo as ordens do mesmo SS-Standartenführer Joachim Peiper. Penso em todas essas coisas, no escuro, e sinto vontade de entrar na casa e acordar o velho SS-Hauptsturmführer Konrad Helfferich com um soco na cara, e de perguntar (enquanto arranco um dos olhos dele com uma colher) sobre essa cidadezinha piemontesa, sobre como foi atirar em civis indefesos, e que tal o cheiro das mais de trezentas e cinquenta casas queimadas, havia corpos dentro delas? Você ainda sente o calor das chamas, Herr Konrad Helfferich? Ouve os gritos? Vê os cadáveres empilhados? Sonha com essas coisas? Pensa nelas ao relembrar, saudoso, seus companheiros de juventude? Companheiros que eventualmente abandonou. Um maldito desertor, ainda por cima. Fugindo para a Südamerika com seus espólios. Não comentei com Magda ou Lidiane sobre os resultados das minhas pesquisas. Não disse nada a elas sobre Boves, Złoczew, Błonie, Bolesławiec, Goworowo, Mława, Torzeniec e Włocławek. E fico meio decepcionado que o Mossad tenha ido a Buenos Aires, mas jamais tenha passado por Vianópolis. Claro, o SS-Hauptsturmführer Konrad Helfferich é peixe-pequeno. Capitão. A merda de um capitão. Quem se importa com merdinhas como capitães? Capitães são uns merdinhas. Simon Wiesenthal não contrataria detetives para encontrar o SS-Hauptsturmführer Konrad Helfferich. Zvi Aharoni não viria ao interior de Goiás por causa do SS-Hauptsturmführer Konrad Helfferich. Mas o que eu mais lamento é que Magda, não enquanto era espancada e ameaçada pelo SS-Hauptsturmführer Konrad Helfferich, mas depois que Lidiane nasceu, depois que o SS-Hauptsturmführer Konrad Helfferich se apaixonou pela neta (como não se apaixonar por Lidiane?), eu lamento muito que Magda não tenha dito ao SS-Hauptsturmführer Konrad Helfferich que o pai de Lidiane (isso ela também me contou) é o judeuzinho que viajava com o avô pelo interior de Goiás, vendendo tecidos e outras quinquilharias, o judeuzinho mascate com quem ela se engraçou (foi esse o termo utilizado) e que a emprenhou. Pensa só, disse aos risos, que puta azar dos infernos, uma rapidinha no meio do mato, ali perto da estação, nem deu tempo de brincar muito, ele acabou, eu me ajeitei como pude e montei logo na bicicleta, nem disse tchau, vim pra casa fazer a janta pro meu pai, que dali a pouco ia chegar da farmácia. Nunca mais vi o menino, mas o avô dele ainda passava pela cidade de vez em quando. Numa dessas, criei coragem e perguntei: Cadê seu neto, que nunca mais vi? E o velho me contou, todo orgulhoso, que Efraim tinha ido pra Israel, estudar e trabalhar, a melhor coisa que ele podia ter feito. E o senhor não foi com ele? Não, respondeu o velho. Mas por quê? E ele: Não sei o que acontece, moça, deve ser alguma enfermidade que contraí em minhas andanças, mas o fato é que eu gosto muito do Brasil, e não saio daqui por nada desse mundo. Nem por Israel? Nem por Israel. Magda me contou tudo isso naquela noite, a poucas horas do réveillon, bêbada e eu também, sogra e genro papeando na cozinha, a ceia em preparação, ela me contou essas coisas e pediu segredo, Lidiane já não perguntava quem era o pai (a curiosidade infantil dando lugar à bem ou mal disfarçada apatia adulta, que ela certa vez expressou me dizendo: Se a dona Magda não quer me contar, beleza, eu também não quero mais saber. E a isso respondi citando o Marlon Brando d’O Último Tango em Paris: No names here. Havíamos visto o filme dias antes, em um VHS maltratado, e ela se incomodara com o encaracolamento dos cabelos de Maria Schneider a partir de um dado momento, tanto que replicou: No permanentes here), ela me contou e gargalhou tanto (ao se referir a Efraim) que Lidiane veio da sala perguntar qual era a graça, não são nem dez da noite e vocês já estão bêbados desse jeito? Estávamos bêbados, sim, e jamais voltamos a falar a respeito daquelas coisas, fosse do passado nazista do velho, fosse do pai judeu de Lidiane, e eu me lembro de não sentir incômodo algum com a narrativa da trepada perto da estação, pois Magda é uma desbocada de primeiríssima linha, que volta e meia nos brinda (ou brindava, quando eu e Lidiane namorávamos e eu vinha à casa delas com mais frequência) com anedotas de sua vida sexual, ontem tentei uma trepada impossível no banco de trás de um Fiat 147, viajei com fulano pro Rio e ele teve a ideia chamar um traveco pro nosso quarto de hotel (nunca soube o final dessa história porque o velho Konrad entrou na sala e mudamos de assunto), tem homem que acha que é uma britadeira, mete rápido e com força e ainda acha que é o tal, acha que a gente gosta disso, quer dizer, deve ter quem goste, tem gosto pra tudo, embora eu não conheça ninguém que goste, cacete, o cara acha que é uma britadeira, e você, Leandro, meu querido, não seja uma britadeira, tá bom? Minha mãe nunca se deu bem com Magda por causa dessa faceta desbocada, e, como sempre acontece (ou costuma acontecer) diante do desconforto alheio, Magda era ainda mais desbocada na presença dela. Certa vez, depois de um almoço particularmente pontuado por palavrões e gargalhadas e anedotas pornográficas, minha mãe disse que Magda era a primeira veterinária que conheceu que também precisava de tratamento veterinário, e eu achei isso muito engraçado, pois a minha mãe, dona Tércia, uma senhora educadíssima e discreta, não costumava fazer esse tipo de comentário sobre quem quer que fosse, preferia calar a ofender, calar a agredir, calar a falar qualquer coisa de ruim sobre alguém que já não estivesse presente, uma das razões pelas quais (mesmo antes da morte do meu pai) ela abdicou da vida social e passava (ainda passa) os dias trancada em casa ou, agora, no apartamento em Goiânia, Setor Oeste, perto da Tamandaré, apartamento que comprou usando parte do dinheiro que recebeu pela venda da fazenda (venda à qual não me opus; que diabo um professor desempregado (embora ainda não estivesse desempregado quando o negócio foi feito) e uma reclusa fariam com uma fazenda? Arrendar ainda é possuir. E, ademais, ela e eu não queríamos ter mais nada a ver com o lugar onde mataram o sr. Diógenes Bettencourt a sangue-frio e a troco de nada) e no qual vive isolada, comendo compulsivamente, assistindo a filmes antigos ou à programação dos canais abertos, e (imagino) procurando não pensar em absolutamente nada, cumprindo tabela, como se diz, enquanto a morte não vem; na última vez em que estive lá, no começo do mês passado, eu me deparei com uma mulher tão obesa que já não consegue sair do prédio sequer para ir ao mercado, à farmácia e à videolocadora, e a empregada se encarrega de tudo, da limpeza, das compras, dos remédios, é também quase uma enfermeira, tanto que sugeri à minha mãe que dobrasse o salário da mulher — sugestão que, acomodada na poltrona, devorando um empadão que eu levara, acatou sem pestanejar.