Canto XLV

Antes de passar às notas sobre o Canto, publico aqui outra (bela) tradução do mesmo, feita em conjunto por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, e publicada no volume Ezra Pound – Poesia (São Paulo: HUCITEC; Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1993), encontrável nos sebos. Para as notas, seguirei usando a tradução de Grünewald.

CANTO 45

Com Usura

Com usura nenhum homem tem casa de boa pedra
blocos lisos e certos
que o desenho possa cobrir,
com usura
nenhum homem tem um paraíso
pintado na parede de sua igreja
harpes et luthes
ou onde a virgem receba a mensagem
e um halo se irradie do entalhe,
com usura
ninguém vê Gonzaga seus herdeiros e concubinas
nenhum quadro é feito para durar e viver conosco,
mas para vender, vender depressa,
com usura, pecado contra a natureza,
teu pão é mais e mais feito de panos podres
teu pão é um papel seco,
sem trigo do monte, sem farinha pura
com usura o traço se torna espesso
com usura não há clara demarcação
e ninguém acha lugar para sua casa.
Quem lavra a pedra é afastado da pedra
O tecelão é afastado do tear
COM USURA
a lã não chega ao mercado
a ovelha não dá lucro com a usura
A usura é uma praga, a usura
embota a agulha nos dedos da donzela
tolhe a perícia da fiandeira. Pietro Lombardo
não veio da usura
Duccio não veio da usura
nem Pier della Francesca, nem Zuan Bellini veio
nem Usura pintou “La Callunia”.
Angelico não veio da usura; Ambrogio Praedis não veio,
Nenhuma igreja de pedra lavrada, com a inscrição: Adamo me fecit.
Nenhuma St. Trophime
Nenhuma Saint Hilaire,
Usura enferruja o cinzel
Enferruja a arte e o artesão
Rói o fio no tear
Mulher alguma aprende a urdir o ouro em sua trama;
A usura é um câncer no azul; o carmesim não é bordado,
O esmeralda não encontra um Memling.
Usura mata a criança no ventre
Detém o galanteio do moço
Ela
trouxe paralisia ao leito, jaz
entre noivo e noiva
…………..CONTRA NATURAM
Putas para Elêusis
Cadáveres no banquete
a comando da usura.

…………

“Com”: no original, “With”. Em uma carta de janeiro de 1938 para Carlo Izzo, seu tradutor para o italiano, Pound ressalta o “aroma opositor” do termo “with”, como em “withstand” significando “estar contra” (algo ou alguém). Não por acaso, Mary de Rachewiltz traduziu para o italiano como “Contro l’Usura”. Na mesma carta para Izzo, Pound deixa claro que “Com Usura” não é o título do poema, mas seu primeiro verso.

“Usura”: no original, Pound usa o termo em latim. Usura não é apenas “usura” (juros excessivos cobrados sobre empréstimos; no entender de Pound, qualquer coisa acima de 8%), mas um termo utilizado para definir a economia de mercado como um todo, entendida como algo fundamentalmente doentio, que afeta todas as esferas da vida e da criação humanas.

“paraíso pintado”: referência ao verso de François Villon em Grand Testament: “Paradis peint, où sont harpes et luths” (as “harpas e alaúdes” dos anjos pintados nas paredes da igreja).

“ou onde a virgem receba a mensagem”: referência não só à Anunciação, mas também à obra do florentino Fra Angelico (Guido di Pietro, 1387-1455), da mesma forma como o halo projetado do verso seguinte remete ao escultor florentino Agostino di Duccio (1418-1481) e seus desenhos entalhados no Templo Malatestiano. Duccio é citado nominalmente no Canto mais adiante.

“… Gonzaga seus herdeiros e concubinas”: afresco de Andrea Mantegna (1431-506) na “Camera degli Sposi” do palácio ducal em Mântua.

“o talhador não talha sua pedra”: em Memoir to Gaudier-Brzeska, Pound aponta que, não raro, o escultor não tem condições de comprar mármore, material precioso tantas vezes desperdiçado em lápides.

“não vai a lã até a feira”: provável referência a uma passagem de Storia civile della Toscana, de Antonio Zobi, em que o autor discorre sobre como os mercadores florentinos, a fim de economizar os custos do transporte da lã crua de países distantes, criaram fábricas de lã em Flandres, na Inglaterra e noutros lugares. Com isso, outros povos aprenderam a lidar e a lucrar com o material. Pior: como tinham a matéria-prima, os ingleses pararam de exportá-la. Com isso, as fábricas de lã na Toscana declinaram.

“Pietro Lombardo” (1435-1515): arquiteto e escultor renascentista, erigiu o interior da igreja de Sta. Maria dei Miracoli, em Veneza, uma das prediletas de Pound. Lombardo “não veio via usura” porque seu trabalho foi pago por doações públicas.

“Pier della Francesca”: Piero degli Franceschi (1420-92) foi um pintor toscano, responsável pelo afresco “Sigismondo diante de São Sigismundo” no Tempio Malatestiano. Ele também pintou o retrato de Sigismondo Malatesta que hoje se encontra exposto no Louvre. O nome da obra de Piero pode ser considerado uma “assinatura verbal”, indicando aquilo que Pound considerava a melhor forma de mecenato, conforme evidenciado em uma carta datada de 7 de abril de 1449, escrita e enviada por Sigismondo Malatesta para Giovanni de Médici. É a carta citada no Canto VIII, que Pound encontrou no livro de Charles Yriarte, Un condottiere au XV siècle.

“Zuan Bellini”: Giovanni Bellini (1430-1516), ou “Zuan Bellin” (no dialeto veneziano), tido em seus dias como o pintor mais importante da república, tanto que recebia uma “sansaria” (uma bela “ajuda de custo” que o senado de Veneza concedia aos artistas mais proeminentes).

“‘La Calunnia'”: referência à “Calúnia de Apeles” (c.1495), pintura de Sandro Botticelli (1445-1510) que ilustra este post.

“Ambrogio Praedis”: Ambrogio de Predis (1455-1508), pintor milanês a serviço da família Sforza.

“Adamo me fecit”, “Adão me fez”: gravado por um arquiteto em uma coluna da catedral de San Zeno Maggiore, em Verona, construída entre 967 e 1398. Pound viu a inscrição em 1911, quando visitou a igreja com o arquiteto Edgar Williams (irmão de William Carlos Williams). Essa assinatura na coluna foi vista, decifrada e transcrita por John Ruskin (1819-1900) em The Stones of Venice. Tal referência sublinha a influência de Ruskin (um importante crítico de arte, desenhista e aquarelista britânico, cujos ensaios sobre arte e arquitetura continuam bastante influentes) sobre a visão econômica apresentada no poema.

“St. Trophime” e “Saint Hilaire”: igrejas românicas. St. Trophime foi construída no século XII, em Arles; Hilaire, no século XI, em Poitiers.

“O azul é necrosado…”: no Renascimento, a cor azul era geralmente feita de azurita (porções superiores oxidadas dos depósitos de minério de cobre). Com o tempo, a azurita tende a se degradar e assumir um tom esverdeado, por ter uma composição química similar à da malaquita (usada pelos pintores renascentistas como pigmento verde). Os clientes mais ricos costumavam estipular em contrato os pigmentos a serem usados ​​pelos pintores, e alguns pagavam pelo uso do ultramarino, pigmento azul muito mais estável derivado do lápis-lazúli.

“carmesim”: o “velours cramoisi” (veludo carmesim), sugerido pela primeira vez no Canto XX. Os pintores renascentistas costumavam indicar a beleza, a riqueza e o status de seus modelos por meio desses detalhes da alta moda, como os bordados feitos à mão em veludo carmesim. A própria cor era uma especialidade veneziana e comercializada em toda a Europa.

“Memling”: Hans Memling (1433-1495), pintor alemão que viveu em Bruges. Pintava no estilo flamengo de Jan van Eyck e Rogier van der Weyden. Memling tinha ricos patronos italianos em Bruges, como Tomasso Portinari, diretor do Banco dos Médici na cidade.

“CONTRA NATURAM”, “CONTRÁRIA À NATUREZA”: a noção de que a usura é algo contrário à natureza é encontrada em Aristóteles, que sustentava que o dinheiro é e deve ser apenas um meio de troca que substitui o escambo. Em outras palavras, o dinheiro é algo estéril, que não (deveria) se multiplica(r) naturalmente, como os seres vivos. V. Política I, III.23.

“… meretrizes para Elêusis”: aqui, a sugestão é óbvia, na medida em que a usura transforma o sexo, tido pelos antigos como um ato natural e sacramental, em uma transação comercial. É algo que remete à corrupção do templo pelo mercado. Os rituais religiosos mais importantes da Grécia antiga eram os mistérios de Deméter e Perséfone, celebrados no Templo de Elêusis (perto de Atenas). As festividades se prolongavam por vários dias, durante a primavera e o outono, e apenas os iniciados podiam testemunhar o que ocorria no interior do templo. A principal fonte de informação de Pound sobre os ritos de Elêusis foi Sacerdotesse e danzatrici nelle religioni antiche, editado por Edoardo Tinto. As mulheres tinham uma importância enorme nesses rituais, inclusive como sacerdotisas, pois eles eram mistérios acerca da fertilidade, encenando o brotar da semente de trigo na terra.. A cópula sacramental, portanto, imita os processos da natureza. Ao substituir as sacerdotisas por putas, Pound aponta uma corrupção do ritual e dos próprios processos naturais. Em sua carta para Carlo Izzo, Pound também afirma que o casamento, entendido tradicionalmente como a venda da fertilidade feminina para um único homem (e santificado pelo cristianismo), também é algo oposto a “Elêusis” e, enquanto tal, um componente da usura em sua acepção mais geral.

Por fim, na nota ao pé do poema (N.B., “nota bene”), é interessante notar que Pound distingue o Banco dos Médici do Monte dei Paschi: o Monte, banco que existe em Siena desde 1624, é uma instituição pública que concede empréstimos a juros baixos e a pessoas de quaisquer classes sociais, com vistas ao incremento da produtividade geral e ao crescimento econômico da região como um todo; o Banco dos Médici, fechado há séculos, era uma instituição privada que emprestava apenas aos papas, reis e nobres, e cujos empréstimos não tinham valor produtivo, mas, com frequência, serviam para financiar guerras. Dada a instabilidade política na Europa, esses empréstimos muitas vezes não eram pagos, pois vários desses monarcas e aristocratas morriam nos campos de batalha ou eram depostos ou assassinados em intrigas palacianas.