Cartografia humana

Resenha publicada em 07.06.2014 no Estadão.

ZADIE

Em seu quarto romance, a londrina Zadie Smith ajoelha-se no asfalto da cidade, cola o ouvido no chão e, a partir do que escuta, traça uma bela cartografia humana. Desde o título, NW se refere a uma região específica da capital inglesa (Noroeste) e acompanha seus personagens enquanto eles se afastam e se aproximam uns dos outros, de si próprios e, acima de tudo, do passado tornado comum pelo lugar.

Eles são Leah, formada em Filosofia (que nunca teve paciência para estudar realmente) e casada com um cabeleireiro negro, o francês Michel; Natalie, outrora Keisha, uma advogada bem-sucedida, esposa de um investidor; Nathan, ex-colega de escola das duas primeiras, antes um rapaz boa-pinta por quem Leah era apaixonada, agora um viciado que vive pelas ruas; e, por fim, Felix, desconhecido pelos outros personagens, mas cuja trajetória diz muito sobre como todos eles se relacionam com o passado.

Há dois aspectos responsáveis, em parte, por tornar o romance tão bom. O primeiro, é a forma como a cidade se faz presente, um organismo dinâmico, quase uma criatura sonhando aqueles personagens ou, pelo contrário, uma criatura sonhada por eles, cada qual a seu modo. Aquele quinhão urbano é, assim, a tapeçaria sobre a qual Smith trata de mobiliar o ambiente narrativo, arrastando mesas e cadeiras conforme lhe apetece. E, jamais, mudança alguma é despropositada.

O outro aspecto diz respeito, justamente, a essa movimentação. NW é dividido em quatro partes, e cada uma delas se aproxima de um determinado personagem. Quando estamos com Leah (sentindo-se estagnada e debatendo-se sobre ter ou não um filho, magoada com a amiga Natalie, cuja ascensão social e profissional as afastou), temos blocos narrativos curtos, disruptivos. Com Natalie, há uma maior precisão, mesmo que superficial, em que cada trecho é titulado, denotando uma busca por organização, propósito. Há solidez maior quando adentramos o espaço de Felix, talvez porque ele nos pareça imbuído de honestidade maior para consigo e os outros. Nathan, por fim, é um personagem marginal até em relação ao desenrolar do romance, transita nas margens dos outros, sem jamais ocupar um lugar só seu.

Como se vê, a autora, que em seu romance anterior, o também ótimo Sobre a Beleza, assumiu uma atitude menos radical, aqui recorre a formas variadas ao construir a narrativa. Tal efervescência estilística, além de atestar seu domínio técnico, é imprescindível para dar conta daquilo a que já nos referimos como uma cartografia humana. Ela não escreve como se precisasse abordar os itens de uma agenda politicamente correta ou sequer “multiculturalista”, como, aliás, já foi acusada de fazer, mas como quem nutre um interesse real pelos personagens e, o que talvez seja o mais importante, coloca-se à altura deles, ao nível do calçada. É um mergulho que a prosa opaca de um Jonathan Franzen, por exemplo, é incapaz de perpetrar, contaminada por uma visão de mundo restritiva. Diferentemente dele, Smith é aberta ao que lhe dizem as esquinas e seus habitantes, nossos iguais.