Um excerto do meu romance
DENTES NEGROS
[Rocco, 2011]
Ele tem certeza: são duas crianças. Ele acha que. Não: de onde está não pode ter certeza de coisa alguma.
Mas são duas crianças, sim. Um pouco mais próximas agora.
Duas crianças muito pequenas e muito jovens brincando na distância.
Ele não tem certeza de que estejam brincando. Talvez estejam brigando. Brigando por comida ou por uma peça de roupa, um calçado.
O sol baixo, quase se pondo.
As crianças entre ele e o sol. Duas sombras diminutas correndo de um lado para o outro.
Como se surgidas do nada ou do chão. Num momento não há nada e no momento seguinte elas estão ali, a oitocentos metros ou menos, brincando ou brigando, correndo de um lado para o outro.
Entre ele e o sol.
Ele está ali há quase doze horas, as vistas embaçadas e o corpo pregado, apagando de vez em quando feito uma lâmpada mal conectada.
Esfrega os olhos com as costas da mão esquerda e olha ao redor.
Ninguém além dele e das crianças.
A ordem é não fazer nada caso permaneçam à distância, caso ninguém se aproxime e peça ajuda, peça alguma coisa. Não fazer nada, sejam crianças ou velhos. As pessoas precisam se aproximar e se identificar e dizer o que querem, comida, remédio, alojamento, transporte, o que for.
Duas crianças, na distância.
Ele não pode abandonar o posto e ir até elas a fim de saber o que querem, se é que querem alguma coisa; não pode abandonar o posto e ir até elas para ver o que está acontecendo.
Não acontece muito. O pior já passou. A coisa foi controlada. Tarde demais para a maioria, mas controlada. Estão ali agora. E as pessoas, algumas pessoas.
Como aquelas crianças.
Uma delas, a menor, é empurrada pela outra e cai no chão. Estão brigando, agora ele tem certeza. A criança maior ergue um dos braços, desfere um soco na criança menor. Depois, endireita o corpo e segura alguma coisa, impossível ver o que é. Leva essa coisa à boca. A criança menor grita e em seguida se levanta e chuta as pernas da maior e ensaia correr, mas pára depois de quatro ou cinco passos ao perceber que a maior não está em seu encalço.
O pior já passou. Limpar as cidades. Enterrar os mortos. Cadastrar, vacinar e alimentar os poucos sobreviventes. Construir os centros comunitários. Pacificar a região. O pior já passou, o mais trabalhoso.
Os mortos com seus dentes enegrecidos, descobertos, como se tivessem morrido no meio de um grito.
As duas crianças agora caminham na direção dele.
Doze horas encarando o vazio. Melhor do que limpar latrinas. Melhor do que ajudar na enfermaria. Melhor do que trabalhar na cozinha. O vazio é o que há.
Nove, dez anos. Dois meninos. Um maior, outro menor. Magérrimos. Imundos, descalços. O nariz do menor está sangrando. O maior mastiga alguma coisa. Param a alguns metros dele, do outro lado da pista, e olham para o portão fechado. O portão fechado às costas dele. Ele pega o comunicador com a mão esquerda e diz:
Dois pequenos aqui fora. Sozinhos.
Eles não disseram nada. Não pediram ajuda, sequer se aproximaram realmente. Mas ele está entediado. Fazer alguma coisa, qualquer coisa. A ordem é aguardar, alguém está a caminho. Ele guarda o comunicador no bolso e pergunta aos dois:
Com sede?
Eles balançam a cabeça: sim. Ele pega o cantil e mostra para eles. Atravessam a pista. O maior pega o cantil, bebe e passa para o menor. Este bebe e repassa o cantil para o maior. Este bebe e repassa para o menor. Esvaziam o cantil, empapando as camisetas imundas com a água que escorre pelos queixos. O maior devolve o cantil. Suas roupas estão esfarrapadas. A camiseta do menor é de um time.
De que time é essa sua camisa?, ele pergunta enquanto guarda o cantil.
O menor olha para o maior, que balança a cabeça (sim), e só então responde:
Vila Nova.
Vila Nova?
Não existe mais, esclarece o maior. Acabou.
O portão é aberto. Três soldados e um médico. Os meninos se encolhem, abaixam as cabeças. Ele diz ao médico:
Dei água para eles, senhor.
Conduzem as crianças para dentro. Antes de entrar, um dos soldados diz para ele:
Depois do jantar vai rolar uma canastra no refeitório. Está dentro?
Não sei. Preciso dormir.
Se quiser, é só aparecer.
Vão apostar?
Qual é a graça se não for pra apostar?
Se não estiver pregado demais, eu vou.
Falou.
Fecham o portão. Ele olha adiante. O sol na altura do chão agora, como se brotasse dele. Uma enorme planta alienígena. Ninguém mais. O cantil vazio.
O pior já passou.
Os locais, os poucos sobreviventes, já não procuram ajuda ali. Preferem os postos de apoio civis, os acampamentos dos organismos de ajuda internacional, os hospitais de campanha, os armazéns do governo, os centros comunitários. O exército deveria permanecer na região fazendo as vezes da polícia, mas muito pouco acontece. Os arruaceiros e saqueadores e estupradores já foram quase todos pegos. Pouquíssimas ocorrências agora, pelo menos por ali. Agora são quarenta soldados, dez sargentos, um coronel, três médicos e seis enfermeiras. No início, eram dois mil soldados, cento e vinte médicos. A base será desativada em dois meses.
O sol finalmente desaparece. É dia embaixo dos meus pés, ele pensa. Do outro lado. Ou lá dentro.
São duas crianças, sozinhas, vindas sabe-se lá de onde. Antes, teriam sido cooptadas pelos Vinte e Três ou por outra gangue qualquer. Os Vinte e Três: vinte e três moleques, com idade variando entre os onze e os dezessete, órfãos, aproveitando o caos inicial para, armados, atacar chácaras e fazendas.
A base foi montada logo que deram a Calamidade como controlada. Risco zero de novos contágios. A vacina funcionava. A prioridade era auxiliar os sobreviventes, fornecer abrigo, alimentação, e limpar as cidades. A limpeza incluía pacificar a região, impedir que os crimes e tumultos ganhassem as proporções que tinham mais ao norte. Sufocar os arruaceiros a qualquer custo. Havia várias gangues menores, todas seguindo o exemplo dos Vinte e Três. Estes seriam usados como exemplo.
Sufocar a qualquer custo, de qualquer maneira. Já temos problemas demais, disse o coronel.
Os Vinte e Três se sentiram importantes. Alvos prioritários, caçados por uma unidade inteira do exército. Coisa que, em vez de torná-los cautelosos, fez com que agissem com fúria redobrada. Invadiram uma fazenda a meros três quilômetros da base. Mataram o fazendeiro, estupraram mulher e filhas, uma delas de onze anos. Roubaram comida, roupas, uma arma. Passaram a noite. Obrigaram a mulher a cozinhar. Levaram a menina de onze anos. O líder disse que faria dela a sua esposa.
Isso foi poucos meses depois da Calamidade. Os mortos ainda muito vivos nas memórias com seus dentes negros em suas bocas escancaradas, suas mortes quase instantâneas. Ainda flutuando sobre tudo, presentes.
Era como se os Vinte e Três dissessem: O fim do mundo veio e foi embora. O que acontece depois do fim do mundo?
O coronel destacou cinqüenta homens para caçá-los. Três semanas após o ataque à fazenda, foram encontrados em uma chácara abandonada, nos arredores da antiga capital.
Ninguém foi poupado.
Depois disso, incidentes isolados. Nada sequer remotamente organizado.
Sempre haverá gente desesperada, disse o coronel. Sobretudo aqui, depois do que aconteceu.
O que aconteceu. O que acontece depois do fim do mundo.
O fim do mundo veio e ficou, pensa Alexandre. Os mortos e os vivos se acotovelando diante do vazio. Os mortos e os vivos se acotovelando dentro do vazio. O vazio: uma boca aberta nas memórias de todos. Uma boca aberta, os dentes enegrecidos.
Dentes negros.
Alexandre balança a cabeça. Não quer pensar nessas coisas. Mas é impossível.
O que acontece depois?
Encontraram a menina de onze anos em um dos quartos, amarrada. Sangue seco nos cabelos, roupas rasgadas. Olhos fixos no teto, sorrindo. Enlouquecida.
O fim do mundo veio e ficou e, de repente, tudo se tornou possível. O fim veio e ficou, veio para ficar. Não vai a lugar algum. Instalado, acomodado. Não irá embora. Será o fim por toda a eternidade. O que acontece, acontece durante o fim.
Isto é o fim, ele pensa. E o fim nunca termina.
O portão é aberto. Está escuro. Um vulto de arma na mão se aproxima e diz, mastigando alguma coisa:
Tá liberado, Alexandre. Eu assumo.
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