A terra da doce eternidade resgata a excelente prosa de Harper Lee em textos de ficção e não ficção
Resenha publicada em 21.10.2025 no Estadão.
“Nós, americanos, gostamos de colocar nossa cultura em recipientes descartáveis”, escreve Harper Lee (1926-2016). “Em nenhum lugar isso fica tão evidente quanto na maneira como tratamos nosso passado. Descartamos vilarejos, cidades pequenas e até mesmo cidades grandes quando envelhecem, e agora estamos no processo de descartar também os registros da nossa história.” O sentido da argumentação que ela traça a partir daí é tão surpreendente quanto acertado, e não queremos estragar a surpresa dos leitores. O texto é intitulado “Romance e grandes aventuras” e está na coletânea póstuma A terra da doce eternidade, recém-lançada pela Record, com tradução de Marina Vargas.
O volume é híbrido, apresentando dezesseis textos: oito contos do início da carreira da autora e oito “ensaios” (na verdade, peças variadas de não ficção que incluem uma palestra, uma aberta carta para Oprah Winfrey e uma receita culinária tão inusitada que parece um conto pós-modernista). Há, ainda, uma ótima introdução assinada pela jornalista Casey Cep.
Nascida no interior do Alabama, Harper Lee é uma das escritoras mais queridas de que se tem notícia graças a um único romance: O sol é para todos (1960), vencedor do Prêmio Pulitzer e um tremendo best-seller, com mais de 40 milhões de cópias vendidas mundialmente. A popularidade do livro se deve ao talento da autora que, mesmo enfrentando temas pesados como violência sexual e racismo no Sul dos Estados Unidos na década de 1930, exala bom humor e calor humano. Boa parte disso é devido à escolha e à voz da narradora concebida por Lee: Jean Louise “Scout” Finch, que no começo da história tem apenas seis anos de idade e é filha de Atticus Finch, a “bússola moral” da cidadezinha sulista onde vivem e um dos personagens mais íntegros da história da literatura — que Atticus não soe inverossímil ou mesmo pateta é um dos inúmeros méritos da autora.
Aqui, é importante esclarecer que o outro livro publicado em vida por Lee, Vá, coloque um vigia (2015), não é uma sequência de O sol é para todos (como, aliás, foi divulgado à época do lançamento pelas editoras norte-americana e britânica), mas uma versão anterior daquele mesmo romance que a consagrou. Ela terminou de escrever esse tratamento em 1957 e o editor Tay Hohoff achou que havia excelentes elementos ali, mas o livro parecia uma série de anedotas, não uma narrativa pronta e acabada. Animada pelas discussões com o editor, Lee repensou e rescreveu tudo, alcançando organicidade e fazendo alterações substanciais (em Vigia, por exemplo, Atticus é um segregacionista), além de, é claro, conceber o tom da obra final.
É importante ressaltar isso porque alguns dos contos publicados em A terra da doce eternidade, escritos entre o final dos anos 1940 e o início da década seguinte, logo após a mudança da autora para Nova York (depois de abandonar o curso de direito), apresentam elementos que seriam desenvolvidos em O sol é para todos. “Binóculo” e o conto que dá título à coletânea antecipam, por exemplo, o segundo e o sétimo capítulos do romance. Em “O suprassumo”, narrativa carregada de ironia (note a figura do “negro ianque”), Lee ainda está processando seus sentimentos para com a família e a terra natal, como, aliás, ainda fazia na versão que eventualmente publicaram como Vá, coloque um vigia.
Fugindo do universo e da “arqueologia” de seu grande romance, há três contos muito bem humorados que se passam em Nova York: “Um quarto cheio de ração” (em que também observamos uma transição do interior para a metrópole, passando pela vida universitária), “Os que assistem e os que são assistidos” (que, ao comentar os hábitos dos espectadores de cinema, talvez pudesse integrar a segunda parte da coletânea) e “Isso é showbusiness?” (em que a narradora caipira se vê trabalhando em algo que não entende e encarando tudo com uma espirituosidade hilariante).
Dentre os textos de não ficção, destacamos “Natal para mim” (em que o gesto generoso de um casal de amigos viabiliza sua dedicação à escrita), “Gregory Peck” (a visita aos sets da adaptação cinematográfica de O sol é para todos), “Truman Capote” (de quem Lee foi amiga desde a infância) e o já citado “Romance e grandes aventuras” (uma palestra sobre o historiador sulista Albert James Pickett).
Em geral, volumes que reúnem escritos assim dispersos costumam ser irregulares, e A terra da doce eternidade não foge à regra. No entanto, graças à organização perspicaz — sobretudo dos textos ficcionais — e ao quase ineditismo de certos textos, o livro pode interessar não só aos fãs de Harper Lee, mas a qualquer pessoa afeita à boa prosa, aqui disposta e apresentada em recipiente nada descartável.