Canto V

 

A “noiva”, depois “Ecbátana”: Pound se refere ao Canto anterior ao mesmo tempo em que dá prosseguimento à sua jornada, no tempo histórico/mitológico e fora dele (tempo poético), pois “o relógio bate e se esvai”.

Iâmblico (c.245-c.325) foi um filósofo sírio neoplatônico.

As “almas ascendendo / Centelhas como turba de perdizes, / Como o ‘ciocco'” — ecos de Dante, Paraíso XVIII, 70-108.

O verso “marca de ferrete no jogo” aponta para o futuro ou a possibilidade de antecipá-lo (Dante afirma que os tolos usa as centelhas para tentar enxergar o futuro). Isso será explorado posteriormente no Canto.

“Et omniformis”: Ficino, “Omnis intellectus est omniformis”, que Pound traduz como “todo intelecto é omniforme”. V. Porfírio, De Occasionibus. Aqui, talvez haja um eco da “luz de Iâmblico”, omniforme (licença minha), conforme exposto em sua obra Theurgia ou Sobre os mistérios dos egípcios, caldeus e assírios (traduzida, aliás, por Ficino para o latim).

“Ou ‘foi aqui que Sextus a viu'”: Sexto Propércio e seu amor por Cynthia (tema das Elegias) servindo como contraponto ao epithalamium de Catulo, mais uma vez referido. Sobre Sexto, leia três de suas elegias traduzidas AQUI. Ele e Catulo foram contemporâneos. No Livro 3.21, Sexto oferece um espelhamento distorcido da história de Aurucunleia e Manlus: enquanto caminha pelas ruas sozinho, negligenciando a amada, ele é “atacado” por rapazes luxuriosos, com os quais acaba passando a noite; na manhã seguinte, quando afinal vai à casa de Cynthia, ele a encontra sozinha e, segundo diz, mais bela do que nunca.

Héspero, o planeta Vênus, é invocado pelas donzelas no poema de Catulo, junto com Himeneu, para marcar a separação de uma moça de sua família.

“Quietude da canção mais antiga (…) Átis, infrutífero”: paródia de Pound de um fragmento de Safo.

Gaubertz de Poicebot foi um trovador de Limousin. Pound reconta a história dele: destinado a ser um monge, abandonou a igreja por não conseguir sublimar o desejo pelas mulheres; colocou-se a serviço de Savari de Mauléon (c.1181-1233), senescal de Poitou, que lhe deu roupas e um cavalo, e depois o consagrou cavaleiro para que pudesse se casar com a mulher que amava.

“Lei fassa furar a del”, “ela se deixou alegrar”: tanto a mulher de Poicebot quando a de Bernart de Tierci foram cortejadas por outros homens (a de Tierci, por outro trovador, Peire de Maensac) e deixaram seus maridos (tal como Helena).

“Mar mutante, algo de gris na água”: referência a “Meeting at night”, poema de Robert Browning — “The grey sea and the long black land”. Nos versos de Browning, o poeta vai ao encontro da amada; Poicebot, por sua vez (e nesse trecho), está à procura de uma prostituta (“Encontrou uma mulher, uma face mudada e familiar;/ Árdua noite, e indo embora de manhã”). No poema de Browning, é a mulher que fala, aberta ao mundo do amado, que tem um belo caminho pela frente. Quanto a Poicebot, a mulher acaba num convento, fechada para o mundo, e ele perdeu a vontade de cantar e, por conseguinte, de viver.

A vida da mulher de Poicebot foi destruída; Bernart de Tierci, por sua vez, foi à guerra (apoiado pela igreja) para recuperar a esposa e… perdeu — “Troia em Auvergnat”, mas o “delfim permaneceu com Maensac” e este “manteve Tyndarida” (referência a Helena, enteada de Tíndaro). Pouco antes, Maensac é descrito como um dreitz hom, isto é, um “sujeito exemplar”.

“John Borgia” é Giovanni Borgia (1474-1497), filho do Papa Alexandre VI e irmão de Cesare, Gioffre e Lucrécia. Dizer que ele “foi mergulhado enfim” foi a maneira alusiva que Pound encontrou para narrar seu assassinato, em 14 de junho de 1497, ao voltar de uma festa com Cesare, mas deixar o irmão para se encontrar com a amante. Seu corpo foi atirado no Tibre, “mergulhado”. “Enfim” porque sua morte teria ocorrido tarde demais, como a de Agmêmnon, que não foi morto por Aquiles na discussão que abre a Ilíada (o que evitaria a destruição de Troia), mas em casa, pela esposa e pelo sobrinho, enquanto se banhava (daí o teor alusivo da escolha de Pound pelo termo “bath” no original).

“A calúnia surge cedo”: muitos culparam Cesare pela morte do irmão, mas sua participação no crime nunca foi comprovada. Giovanni era o comandante das forças militares papais; Cesare, a contragosto, um cardeal. Um ano após o assassinato, Cesare renunciou ao cardinalato e assumiu o posto que pertencera ao nosso “John” Borgia.

Benedetto Varchi (1502-1565), humanista, poeta e historiador florentino, autor de uma Storia Fiorentina em 16 volumes, cobrindo o período entre 1527-1538. Os Médici foram expulsos de Florença em 1527 e, nos três anos seguintes, a cidade se tornou uma república. O papa Clemente VII (Giulio di Giuliano de Médici) restabeleceu o poder da família na cidade, que passou a ser governada por seu sobrinho, Alessandro de Médici (o Duque de Florença), até que este foi assassinado em 1537. Em 1543, o sucessor de Alessandro, Cosimo I, convidou Varchi para retornar a Florença (estava em Bolonha) e pagou para que ele escrevesse a história florentina daqueles anos. Que ele esteja “pensando em Brutus” é algo que ficará claro nos versos seguintes.

‘Σíγα μαλ’ αὖθιζ δευtὲραν: mescla de dois versos (1344-45) do Agamêmnon, de Ésquilo¹, o momento em que o personagem-título é assassinado na banheira pela esposa, Clitemnestra:

CORO:
Escuta! Quem acusa o golpe agudo?

AGAMÊMNON:
Ai! Me acertaram um segundo golpe!

O trecho poundiano seria “Escuta! Um segundo golpe”.

“Olho de cão!!” é um dos xingamentos usados por Aquiles contra Agamêmnon na discussão entre os dois que abre a Ilíada. A briga se dá por espólios de guerra. Agamêmnon é obrigado a devolver Criseida a seu pai, o sacerdote Crises, pois este rogara a Apolo que punisse os gregos, e suas preces foram atendidas com uma peste. Mas, como compensação, Agamêmnon exige que Aquiles lhe ceda Briseida, e a confusão se instaura. O trecho² (224-28):

(…) “Bêbado de vinho,
olhar de cão e coração de cervo, nunca
investes a couraça como os teus que lutam,
nem ousas empenhar teu coração com ases
numa emboscada, pois tens medo de morrer.

Gosto também de: “Devorador do povo, rei de gente reles” (231).

No trecho seguinte, Pound narra o assassinato de Alessandro de Médici por seu primo, Lorenzo (ou Lorenzino) de Médici, na noite entre 6 e 7 de janeiro de 1537. Os dois primos eram muito próximos, e Alessandro foi, então, assassinado pela pessoa em quem mais confiava. “Lorenzaccio”, “o mau Lorenzo”, usou sua tia Caterina Soderini (uma bela viúva que nada sabia do que estava prestes a acontecer) como isca, “pois o Duque nunca saía sem a guarda”. Quando Alessandro estava sozinho no quarto, desarmado e indefeso, Lorenzo e um servo o esfaquearam na garganta. Lorenzo viveu onze anos no exílio, e em 1548 foi assassinado a mando de Carlos V. Os motivos de Lorenzo para matar o primo ainda são discutidos: para alguns, ele foi uma espécie de “segundo Brutus” (o primeiro é, claro, Marco Júnio Bruto, um dos assassinos de Júlio César), ansioso para restaurar a república florentina; para outros, foi “apenas” um ato vil e insensato.

Se pia? O empia?“: “Nobre? Ou ignóbil?”

“Caina attende”: “Caína espera”; Caína é o lago congelado no primeiro dos quatro giros do nono círculo do inferno dantesco, reservado àqueles que traem e/ou assassinam membros da própria família. É para onde Francesca da Rimini diz a Dante (no Inferno V, 106-7³) que será enviado seu marido, Gianciotto Malatesta. Este flagrou o próprio irmão, Paolo, beijando Francesca, e matou os dois: “Amor nos conduziu a uma só morte;/ Caína terá quem deliu nosso alento'”. (Na versão de Dante, os adúlteros liam a história de Lancelot e Guinevere quando se beijaram, e o paralelo aí prescinde de explicações.) Dante e Virgílio chegam ao Caína no Canto XXXII do Inferno.

Del Carmine era o astrólogo de Alessandro. Segundo Varchi, teria previsto o assassinado.

“O se morisse, credesse caduto da sè”: “Ou se morresse, e pensasse que caiu sozinho” — Lorenzo cogitou empurrar o primo do alto da muralha, mas mudou de ideia porque queria que Alessandro soubesse que estava sendo assassinado por ele, e não que tivesse escorregado ou coisa parecida.

“Σιγά, σιγά”: o coro em Agamêmnon, no trecho já citado — “Escuta, escuta”.

Giorgio di Schiavoni foi o barqueiro que viu três homens jogando o corpo de Giovanni Borgia na água. “Solta a placenta”: a túnica de Giovanni flutuava na água, e um dos homens que o desovaram atirou uma pedra nela para que afundasse.

Barabello, abade de Gaeta. Em 1518, na festa de Cosme e Damião, o papa Leão X resolveu sacanear Barabello. Segundo ele, Barabello se achava melhor poeta do que Petrarca. O papa, então, ofereceu a ele uma coroa de louro para que, montado em um elefante, fosse do Vaticano até o Monte Capitolino. Assustado com o barulho ao redor, o elefante empacou na Ponte Sant’Ângelo e Barabello desapareceu na multidão.

Giovanni Mozarello, poeta que escrevia em latim, era um protegido de Leão X. Para que ele tivesse tempo para escrever, o papa o nomeou governador de uma fortaleza em Mondaino. Mozarello desapareceu e seu corpo foi encontrado um mês depois, no fundo de um poço, esmagado pela própria mula: “Só, fica sufocado sob a mula, / um fim de poeta”. Há quem diga que foi assassinado.

“Sanazarro / Só, fora da corte, era fiel a ele”: Jacopo de Sanazzaro (1458-1530), poeta napolitano (que também escrevia em latim), permaneceu fiel a Federigo, último monarca da família Aragão a governar o Reino de Nápoles, mesmo depois que este foi deposto. Juntos, foram para o exílio na França, e Sanazzaro ficou com seu patrono até a morte dele, em 1504, ajudando-o inclusive financeiramente.

“Fracastor (…) Cotta e Ser D’Alviano”: Girolamo Fracastoro (1483-1553), médico, poeta e cientista de Verona. Foi um grande epidemiologista, identificando e nomeando doenças como a sífilis e o tifo. Giovanni Cotta (1480-1510), outro poeta (latim!) de Verona, amigo de Fracastoro e Navagero. Todos eles tinham como patrono Bartolomeo D’Alviano (1455-1515), condottieri italiano que serviu à família Orsini e, a serviço dos venezianos, lutou contra o imperador Maximiliano. Gostava de se cercar de poetas e foi um mecenas muito generoso.

“Al poco giorno ed al gran cerchio d’ombra”, “Ao dia curto e seu longo arco de sombra” — primeiro verso de uma sestina de Dante.

“Falam dos boatos”: D’Alviano recebeu dos venezianos a cidade de Pordonne, e ali fundou uma academia para reunir os poetas latinos de seu círculo (Fracastoro, Navagero e Cotta). Andrea Navagero (1482-1529), referido por Pound como “Navighero”, foi um erudito classicista e poeta. Com o impressor Aldus Manutius, coligiu inúmeros manuscritos e os publicou com anotações próprias. Atuou em missões diplomáticas para Carlos V e Francisco I. Muito cioso da própria reputação, destruiu a maior parte da poesia que escreveu em latim. Também tinha o hábito de queimar cópias dos epigramas de Marcus Valerius Martialis (c.41-c.102) por considerá-lo um corruptor da pureza clássica da era de Augusto — daí o verso de Pound: “Incendiário, ano a ano, de Marciais”.

“A pequena serva é lamentada em vão” : Erotion, morta antes de completar seis anos de idade. Marcial escreve sobre ela, lamentando que tenha morrido, em três de seus epigramas (V, 34, 37; e X, 61).

“Se pia (…) deliberazione”, “Se nobre ou ignóbil, mas, por certo, uma decisão resoluta e terrível” — Varchi, sobre Lorenzo.

“Ma se morisse”, “Mas se morresse” — Pound substitui o “Ou” de Varchi por “Mas”.

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¹Ésquilo, Agamêmnon. Tradução: Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2017.
²Homero, Ilíada. Tradução: Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2020.
³Dante Alighieri, A Divina ComédiaInferno. Tradução: Ítalo Eugênio Mauro. São Paulo: Editora 34, 2014 (3ª edição).