Canto II

 

Sordello é um poema narrativo de Robert Browning (1812-1889), escrito entre 1836 e 1840, quando foi lançado. É tido como uma das obras mais difíceis da literatura inglesa. Pound cogitou se inspirar no poema de Browning (conforme ele próprio assinala em Three Cantos I) para escrever os Cantos, mas optou por conceber algo distinto, o que explica os versos iniciais: “Cesse tudo, Robert Browning, / somente pode haver um único ‘Sordello’. / Mas Sordello, e o meu Sordello?”.

Aqui, a “invocação” de Browning serve também a outro propósito: Pound sentia uma grande proximidade entre esse poeta inglês e Ovídio, cujas Metamorfoses são de enorme importância para os Cantos. “A atmosfera”, escreveu Pound, “o jogo é tudo: os fatos não são nada. Ovídio, antes de Browning, levanta os mortos e disseca seu processo mental: ele caminha com o povo dos mitos.”

Os fatos não são nada, mas não custa assinalar que Sordello de Goita, protagonista do poema de Browning, foi um trovador italiano do século XIII, egresso da região de Mântua — daí o verso “Lo Sordels si fo di Mantonava”.

O Canto II diz respeito a uma série de metamorfoses, e é interessante que o leitor fique atento a essas mudanças bruscas (que se tornarão bastante comuns no decorrer da obra). Assim, logo de cara, temos quatro Sordellos: aquele (bastante ficcionalizado) do poema de Browning, o Sordello “verdadeiro”, que existiu em algum momento, o Sordello de Pound e, por fim, o Sordello que podemos depreender dos versos que ele próprio deixou.

Depois, em mais uma série de metamorfoses poemático-narrativas (que, por alguma razão, me fizeram lembrar das “personificações” de Stencil em V., de Thomas Pynchon) (ok, nada a ver) (antes tivesse pensado em Dedalus na praia, Ulysses I.3), temos referências a uma suposta divindade chinesa (ver abaixo), a Fionnuala (a filha de Lir, deus marítimo da mitologia irlandesa, transformada em um cisne e condenada pela madrasta, Aoife, a vagar pelos lagos e rios da Irlanda com seus irmãos, coisa que eles fizeram por quase um milênio, até a maldição ser quebrada pelo casamento de Lairgren e Deoch) e a Eleonora de Aquitânea (1122-1204, matriarca dos Plantageneta).

Por sua vez, Eleonora é referida por meio dos trocadilhos feitos por Ésquilo em Agamemnon (689-90) para se referir a Helena de Troia: ‘Έλέναυς, ‘έλανδρος, ‘έλέπτολις (helenaus, helandros, heleptolis). Em Pound: “Eleonora, Έλέναυς e ‘έλέπτολις”, ou seja, helenaus (destruidora de naus ou “enleia-naus”, como traduz Trajano Vieira¹) e heleptolis (destruidora de cidades, “enleia-pólis”). Eleonora, a exemplo de Helena, também abandonou o marido para se casar com um estrangeiro, divorciando-se em 1152 de Luís VII, rei da França, para se casar com o então Duque da Normandia e futuro rei Henrique II, da Inglaterra.

“So-shu”, segundo Pound, seria uma figura mitológica chinesa, mas os especialistas dizem que ele (também?) se refere à personagem-título de uma pela de teatro nō, Shojo. Este seria o deus do vinho de arroz (não confundir com o saquê; os processos de fermentação são distintos), que aparece aos mortais como um homem. Mais adiante no Canto, é narrado um encontro similar de Dionísio com Acetes.

Após uma referência à Ilíada (III, 139-60, “Murmúrios, vozes de homens velhos (…) / Move-se, ela se move como uma deusa”, em que os anciãos de Troia, diferentemente de seus contrapartes gregos, reconhecem o caráter divino de Helena e não a culpam pela guerra), Pound repassa a tradução de Ovídio por Arthur Golding via Atalanta (Metamorfoses X: 566-707): “Só serei possuída, / se vencida na corrida (…)”. Hipômenes é o felizardo, não por correr mais rápido do que ela, mas por trapacear (embora, segundo Ovídio, talvez Atalanta tenha se deixado enganar por gostar do que viu).

Novo corte, e Pound invoca Tiro, ninfa enlaçada pelo “deus-mar”, para depois apontar para Scios e Naxos, ilha que é o lugar central do culto de Dionísio. Foi em Naxos que ele nasceu pela segunda vez, da coxa de Zeus, e encontrou sua noiva, Ariadne.

Aqui, conforme indicado antes, Dionísio marca presença em carne e osso, como “um jovem zonzo com o vinho novo”, que pede aos marujos de um navio que o levem a Naxos. Os marujos, contudo, cogitam vendê-lo como escravo. Apenas Acetes, o capitão, reconhece Dionísio como uma divindade (“Quando chegaram com o menino eu falei: / ‘Carrega um deus consigo / malgrado não saiba eu que deus.'”), e por isso é poupado. A sorte dos marujos é narrada (“Focinho preto de um porco-do-mar / onde Licabs estivera /Escamas revestindo os remadores”; “O rosto de Medon como de um peixe-galo, / Braços transformados em barbatanas”).

Penteu, filho de Cadmo, rei de Tebas, também considera Dionísio (seu primo, aliás) um impostor. Querendo acabar com a suposta farsa, manda que os soldados aprisionem Dionísio. Mas, em vez dele, os homens trazem Acetes. Penteu ignora os avisos e alertas de Acetes (“Deverias ouvir Tirésias, e a Cadmo / ou tua sorte vai te abandonar. / Escamas cobrem virilhas, / o ronronar de lince pelo mar”) e vai ao festival de Dionísio para interrompê-lo, mas acaba desmembrado pelas bacantes.

A referência a Cadmo e Tirésias se dá porque ambos reconhecem a divindade de Dionísio, conforme narrado nas Bacantes (170-189), de Eurípedes.

Depois, o poema prossegue com suas metamorfoses. Voltamos ao mar e conhecemos Eleutéria, ninfa que se transforma em coral para escapar do assédio dos tritões, e por isso é referida como a “Dafne em beira-mar”; nas Metamorfoses (I, 451-568), perseguida por Apolo, a ninfa Dafne pede ao pai, Peneu, que seja transformada em um loureiro, no que é atendida de imediato.

Por fim, em versos tão marcados pelas mutações e transformações, Pound não poderia deixar de se referir diretamente a Proteu, a elusiva deidade da mudança. Nesse sentido, o segundo Canto serve à perfeição para sedimentar uma das características mais marcantes do estilo do poeta, essa capacidade proteica de recriar diversos personagens e situações. Com o passar do tempo, isso será cada vez mais refinado e, em alguns momentos, radicalizado.

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¹ Agamêmnon. São Paulo: Perspectiva, 2017.