Pound inicia a obra com uma tradução de parte do canto XI d’A Odisseia de Homero. Ele não recorre diretamente ao original grego, mas à tradução latina do renascentista Andreas Divus, datada de 1538. Ou seja, trata-se da tradução de uma tradução. Em todo caso, ler ou reler o referido canto (sugiro a tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2011) será de grande ajuda aqui.
No canto XI, Odisseu e seus companheiros, orientados por Circe, vão à boca do Hades ter com os mortos. O herói precisa questionar Tirésias sobre como retornar a Ítaca, seu lar, mas acaba falando com outras “sombras” nessa jornada ínfera: o companheiro Elpênor, morto há pouco em um acidente estúpido; a mãe, Anticleia; Agamêmnon, que conta como foi assassinado pela própria esposa, Clitemnestra, e por Egisto; Aquiles (“Não queiras / embelezar a morte, pois preferiria / lavrar a terra de um ninguém depauperado, / que quase nada tem do que comer, a ser / o rei de todos os defuntos cadavéricos”, 487-491); etc. Trata-se, em suma, de uma nekyia, rito pelo qual os mortos são invocados (não confundir com a catábase, em que o indivíduo desce ao Hades e por lá passeia).
Não é por acaso que Pound inicia Os Cantos com esse consórcio com os mortos, pois eles — representando o passado — serão cruciais para a constituição da obra e de seu projeto, que, novo, aponta para o futuro, é inteiro possibilidade(s).
“E pois com a nau no mar”: o primeiro verso se inicia com um “e” que aponta desde o começo para tal continuidade.
“Assim:”: o derradeiro verso (o uso dos dois pontos é uma escolha (feliz) de Grünewald, pois Pound se limita a não colocar um ponto final, o “So that” seguido pelo espaço em branco, espaço a ser preenchido, espaço convidativo) nos lança para o que virá e, ao mesmo tempo, encerra a preparação. Pound introduziu o herói e se introduziu na tradição, e invocou a musa, a deusa Afrodite.
Note que Pound acena para Divus, explicitando sua tradução-da-tradução, ao usar alguns termos latinos, e não gregos — como Avernus, que nos remete para o canto VI (237-42) da Eneida de Virgílio (desta, sugiro a tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora 34, 2016) —, e então, ao final do Canto, dirige-se a ele: “Divus, repousa em paz, digo, Andreas Divus, / In officina Wecheli, 1538, vindo de Homero”.
E depois chegamos à invocação: “Venerandam, / Na frase em Creta, e áurea coroa, Afrodite, / Cypri munimenta sortita est, alegre, orichalchi, com dourados / Cintos, faixas nos seios, tu, com pálpebras de ébano / Levando o ramo de ouro de Argicida. Assim:”.
Aqui, temos outra tradução de tradução, de alguns fragmentos do Segundo Hino Homérico para Afrodite, via Georgius Dartona, que Pound encontrou no mesmo volume em que estava a Odisseia de Divus.
O “Argicida”, no caso, é Hermes, sendo o termo a forma latina de seu epíteto Argeiphontes, “assassino de Argos”; o ramo de ouro é o seu caduceu, aqui trazido/levado por Afrodite.
Tradução livre dos trechos em latim: “Veneranda, com uma coroa dourada”; “A quem concederam as fortalezas do Chipre”; orichalchi, “de cobre”.
A “officina Wecheli” foi onde a tradução de Divus da Odisseia foi impressa.
“E assim:” — continuemos.
……
Imagem: tela de Johannes Stradanus,
Odisseu na entrada do Hades (c. 1600-05).