Há livros que podem ser lidos como verdadeiros comentários acerca da natureza do Mal e, por isso mesmo, trazendo a discussão para o nosso quintal repleto de entulhos e cadáveres insepultos, são recriações muito fiéis de alguns dos aspectos mais brutais do nosso arremedo de nação. Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Patrícia Melo, Ricardo Guilherme Dicke e Ana Paula Maia são exemplos de autores e autoras que, cada qual à sua maneira particularíssima e sem jamais incorrer em tons panfletários (ou desarmar suas histórias com “mensagens” e “morais”), trafegam pelos círculos infernais brasileiros, nos quais as relações são quase sempre mediadas por alguma forma de violência. Isso também pode ser conferido na obra do paraense Edyr Augusto, autor dos excelentes Moscow e Pssica e do recém-lançado BelHell (todos saíram pela Boitempo Editorial).
Nas narrativas de Augusto, a forma desvaira o conteúdo. Por meio de períodos curtos, em que ação segue ação e as falas dos personagens são encavaladas, sem aspas ou travessões, no interior de parágrafos que se assemelham a blocos de concreto, o autor desvela essa realidade na qual cada mísero aspecto do cotidiano é, de uma forma ou de outra, corrompido. Ali, para furtar uma expressão muito cara à filosofia do italiano Giorgio Agamben, todas as existências são “vidas nuas”, isto é, matáveis. Em outras palavras, na literatura de Augusto (e na desgraçada realidade brasileira), a vida humana não tem valor e as carcaças dos nossos semelhantes se amontoam ao nosso redor. O Brasil é uma cova aberta e faminta, e autores como ele dão conta disso, arrancam a dentadas um pedaço do país e cospem-no à nossa frente.
Em BelHell, tal pedaço corresponde a uma Belém ruinosa, por onde circulam vários personagens. Estes e a cidade parecem incorporar aquela antiga máxima que ecoa em Macunaíma e é também o título original de um filme de Werner Herzog: “cada um por si e Deus contra todos”. Policiais, milicianos, traficantes (e policiais que são ou se tornam milicianos e traficantes), políticos, miseráveis, prostitutas, jogadores, pistoleiros e até um assassino em série povoam a capital paraense retratada no livro, eco de um Brasil que se tornou — ou sempre foi, e agora o é sem quaisquer disfarces — um matadouro.
O escritor é personagem do próprio romance, e transmite para nós o testemunho (confissão?) de Bronco, que alinhava e protagoniza parte dos acontecimentos. Além dele, e entre vários outros, há Giovonaldo, gerente do cassino clandestino de um magnata local; Marollo, dono do tal cassino e também de vários hospitais e clínicas graças ao apadrinhamento de um deputado; a arrivista Paula, uma talentosa jogadora de cartas; Paulo, policial que se torna fora-da-lei; Rogério, delegado que investiga os crimes do assassino em série; e Sérgio, o tal serial killer brasileiríssimo (rico, só mata pobres, mendigos e viciados).
“E lá tem lei nessa terra?”, alguém pergunta a certa altura. Sim, existem leis, mas isso é irrelevante, estamos cansados de saber. Há outros códigos, que podem ou não ser obedecidos, nos diversos círculos frequentados pelos personagens. Mesmo em tais ambientes, a obediência nem sempre é sinônimo de prosperidade, salvação ou o que seja. O fogo nos alcança de uma forma ou de outra. E, em se tratando daqueles que procuram seguir e/ou aplicar as leis, há sempre alguma terrível ironia à espreita — vide o que acontece com Rogério no clímax de sua caçada ao assassino em série.
“O mundo é assim e tu sabes muito bem”, diz Zazá, uma anã dona de puteiro (o nome do estabelecimento é, claro, Paraíso Perdido), esposa de Giovonaldo e uma das melhores personagens do livro. “Aqui é o mundo escroto.” É um mundo de cabeças espocadas a tiros, chacinas, fogo e falas entrecortadas, engasgadas, raivosas. Ativos e passivos nessa verdadeira economia da matabilidade, os personagens de Augusto vêm ao mundo para devorar uns aos outros. São, portanto, brasileiros como tantos outros, gente comum, ordinária, e por isso mesmo capaz dos atos mais hediondos.
E é graças à aposta do autor nessa gratuidade essencial em que se assenta a violência humana que BelHell paira acima de quaisquer aporrinhações “ideológicas”. Autenticamente literária, a obra é infensa às ondas de “engajamento” em que se afogam outros autores ao abordar temas similares. Não há proselitismos em BelHell.
Dizendo de outro modo, Augusto devassa a nossa precariedade, mas não o faz pobremente, isto é, como se visasse o cumprimento de uma agenda ou a reiteração de pontos pré-estabelecidos. Nada disso. Seu vocabulário narrativo, por assim dizer, vai além do beabá usual dos que esperneiam frente ao (ou sob o) “sistema” — aliás, um termo tão genérico que se encaixa em qualquer buraco conceitual. O inferno político-social que arde em suas páginas é um índice antes individualizador e concreto do que abstrato e pretensamente totalizador, isto é, diz respeito a cada personagem e a cada situação específicos. Não há tipos passíveis de generalizações, mas pessoas e circunstâncias muito bem delineados.
Muito por conta dessa abordagem descontaminada, BelHell navega onde outros tantos naufragam. No lugar da ilustração masturbatória de um “ideário” acerca do Brasil, enxergamos o Brasil ou um pedaço dele, aquele arrancado a dentadas. Aqui, o estropiamento moral é “democrático” e não obedece a hierarquias ou se permite catalogar com facilidade, mediante fórmulas prontas. O caos brasileiro exige outra espécie de esforço, do tipo que só a imaginação alcança.
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Uma versão menor deste artigo foi publicada pelo jornal O Popular.