Na terceira margem

Texto publicado hoje n’O Popular.

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Em se tratando das extravagâncias literárias que, dada a preguiça de pensar em um termo melhor, entendidos e desentendidos costumam classificar como “pós-modernistas”, a prosa de Donald Barthelme (1931-1989) está entre as melhores. Há outros autores, a maioria deles bem diferente entre si — só a preguiça explica essa mania de enfiar William Gaddis, Thomas Pynchon, John Barth e William H. Gass, por exemplo, em um mesmo cubículo conceitual, mas exigências acadêmicas são exigências acadêmicas, e a imaginação (qualquer idiota sabe) costuma viver noutros lugares. E, por falar em extravagâncias, precisamos agradecer à Editora Rocco e ao escritor e tradutor Daniel Pellizzari pela graça alcançada que é ter ao alcance dos olhos e da língua portuguesa duas obras-primas de Barthelme: o romance O Pai Morto, lançado por aqui em 2015, e a coletânea Grandes Dias e Outras Histórias, recém-chegada às livrarias e sobre a qual discorrerei a seguir.

Barthelme é um dos autores mais inclassificáveis da prosa norte-americana do século passado. Cheio de humor, inventivo e plurissolerte (sic) feito um Odisseu chapado na corte de um Alcínoo mais chapado ainda, ele envolve, sacaneia, experimenta, ri e nos devolve a alegria de compartilhar histórias. Em Grandes Dias, explorando uma infinidade de registros e estilos, ele compõe desde narrativas dominadas por diálogos (como a que dá título ao volume) até falsas entrevistas (“Janeiro”), passando por pastiches hagiográficos (“A tentação de Santo Antônio”) e de histórias de piratas (“Capitão Blood”), viagens algo lisérgicas (“No museu de Tolstói”), supostos diários (“Conversas com Goethe”) e até um “thriller” de espionagem que ri de si mesmo, abrindo uma brecha para que possamos respirar  (“O soldado sapador Paul Klee extravia uma aeronave entre Milbertshofen e Cambrai, março de 1916″).

“Ó arte”, lemos a certa altura do soberbo “Visitas”, “não a machuco se você não me machucar.” O problema é que a “experiência educacional de si” (da qual ninguém sai vivo, frise-se) não apresenta tantas saídas quanto gostaríamos, e o engenho do autor só parece dar conta desse trauma por meio de um estilhaçamento que é, ao mesmo tempo, estrutural e desestruturante. O estilhaçamento estrutural é visível na forma como Barthelme extrapola quaisquer camisas-de-força estilísticas; e o caráter desestruturante, por sua vez, diz respeito ao humor particularíssimo e à extrema imprevisibilidade de suas histórias.

É importante frisar o quanto Barthelme parece não se levar a sério, e isso talvez seja uma estratégia genial para fazer com que o leitor fique sempre com a guarda baixa. Suas histórias nem sempre são “fáceis”, raras contam algo de forma “linear” (segundo Dave Eggers, isso só ocorre quando Barthelme está distraído), muitas delas parecem colagens surrealistas ou oníricas, as informações são elusivas e até contraditórias, mas o senso de humor e o calor humano estão sempre lá, à nossa espera, em uma curva qualquer, no meio de um parágrafo ou mesmo no intervalo entre um conto e outro, quando paramos para respirar e algo se torna claro para nós, tão claro que mal conseguimos verbalizá-lo.

E é por isso que não conseguimos largar o livro, é por isso que, apesar de eventuais dificuldades, ele é sempre afetuoso, jamais afasta ou aliena o leitor, mas sempre conforta os nossos olhos e nos leva para uma espécie de terceira margem: o lugar das possibilidades ficcionais, jamais infenso à realidade imediata, “objetiva”, mas ciente de seus absurdos e conhecedor de suas fraturas. Há um compartilhamento efetivo aqui, experiencial, existencial, profundo. Afinal, como se poderia pensar, Barthelme não compõe meros “exercícios de estilo”, mas exercita a cada página uma enorme e insuspeita generosidade. Posso estar enganado, mas creio que essa seja uma das marcas dos grandes autores.