Dispersões

Se a velha epistemologia revelou-se infundada,
e a ainda mais antiga escatologia é a única alternativa viável,
então a visão do fim dos tempos se torna o lugar
onde o pensamento começa.
— Inchausti.

Klee

::: Em um momento de excepcionalidade histórica como esse pelo qual passamos (não é sempre que um país é governado por um saco de colostomia), é comum ouvirmos expressões como “estar do lado certo da História” e afins. O sequestro historicista é uma prática comum em qualquer época, a bem da verdade; o que temos de novo talvez seja a simultaneidade com que os grupos mais diversos tentam criar e/ou se apropriar de fatos e factoides, desenvolvendo e aprimorando isso que se convencionou chamar de “narrativas”. Enquanto isso, a História — assim tornada história(s) — morre de inanição nos desvãos do(s) discurso(s), e a única certeza que nos resta é a da corrupção factual, linguageira e conceitual. Se, como proclama o clichê, a realidade ganha fácil da ficção, o que pensar e fazer quando tudo o que há são ficções e mais ficções? Não há “vitória” possível nesse cenário. Todos perdem, cedo ou tarde.

::: Realidade, ficção: restamos à deriva em um mundo de falsas equivalências, como se uma coisa devesse algo à outra, e como se nós devêssemos algo à realidade quando sequer sabemos onde ela se encontra. Fixamo-nos, então, no surto corruptor, nas filigranas das “narrativas”, e a trapaça relativista atinge o seu ápice.

::: Até 2016, nessa enorme cama de Procusto que é o Brasil, cortavam as nossas pernas; desde então, tratam de arrancar nossas cabeças.

::: Por algum tempo, pensei no bolsonarismo como uma forma de neointegralismo. Passados tantos (e, ao mesmo tempo, tão poucos) meses de (anti)governo, parece-me que até essa distinção não é mais cabível. Não custa lembrar que o integralismo sempre foi encarado como um epifenômeno do fascismo e, enquanto tal, nada mais seria do uma caricatura, uma camisa negra desbotada. Talvez o bolsonarismo seja não um neointegralismo, mas uma corrupção do integralismo, um rasgo naquela já desbotada camisa negra que, dependurada no varal, esfarela sob o sol. Por outro lado, a pobreza dessa contra-ideologia faz de tudo para escapar a qualquer categorização mais ou menos consequente; em outras palavras, ela não é a expressão do conteúdo de um projeto, mas, sim, da vaziez essencial desse mesmo projeto. O bolsonarismo sobrevive na medida em que elude qualquer projeto ou qualquer possibilidade de um projeto que vá além da boçalidade criminosa.

::: Em um cenário objetiva e subjetivamente tão pobre, a ficção é mais importante do que nunca. Signo de uma crise, o romance é essencialmente incapaz de “dar conta da realidade”, e aí reside a sua beleza: nessa insuficiência essencial. É assim desde sempre, e por isso ele continua sendo uma das melhores ferramentas para, mordendo, arrancar pedaços da realidade, mastigá-los e cuspi-los ou digeri-los (fica a critério do autor e/ou do leitor). Assim, muito me surpreende que a estupefação em face do andamento (ou descarrilamento) das coisas, em vez de alimentar a imaginação, tenha o efeito contrário em muitos escritores contemporâneos. A infantilização discursiva, o recuo ao próprio umbigo (para não dizer outra coisa), o empobrecimento das formas com as quais lidamos com o material narrativo oferecido pelo mundo — tudo isso são sintomas da covardia intelectual que, em muitos casos, ignora aquela crise, intrínseca e extrínseca à forma romanesca, a aporia original que dá sentido ao mergulho nesse ethos específico e fundamentalmente incompleto de expressão e criação. A julgar pela mediocridade, pelo tédio e pelas limitações “autoficcionais” com as quais nos deparamos por aí, talvez tivesse sido melhor que Aharon Appelfeld e Paul Celan tivessem morrido na Shoah e Soljenítsin silenciasse depois de se ver livre (ma non troppo) do gulag. Afinal, dizem e repetem aqueles que se retraem, a literatura não dá conta da vida, a poesia não é mais possível depois de [insira a desgraça de sua preferência], tudo é impostura, tudo leva ao silêncio ou, pior, à derrisão.

::: É sempre bom lembrar que, no gueto e diante da perspectiva do extermínio, Celan ocupava seu tempo traduzindo sonetos de Shakespeare. Posso estar enganado, mas é sempre mais saudável apostar na beleza e na imaginação, sobretudo quando o mundo ao redor ruge de forma ameaçadora, pronto para nos despedaçar. Nosso esforço derradeiro, e todo e qualquer esforço deve ser sempre encarado como o derradeiro (até porque nunca se sabe, não é mesmo?), nosso esforço derradeiro diz muito sobre cada um de nós.

::: Em um momento de excepcionalidade histórica, ou de boçalidade anti-histórica, em que cada mísero esforço parece ter o peso (ou a leveza) do último suspiro, parece-me imprescindível reinvestir a ficção de sua carga de verdade, não mais confundir invenção com impostura, não mais sequestrar a História, mas se permitir ser sequestrado por ela, não mais exigir do romance um status que, a rigor, ele jamais se arrogou (exceto pela boca dos desatentos, ingênuos ou imbecis), atentar para a sua insuficiência essencial, sublinhar justamente a sua perpétua incapacidade de “dar conta do mundo” — obras como a Comédia de Balzac, a Educação de Flaubert, o Ulysses de Joyce e os Reconhecimentos de Gaddis são o que são justamente porque têm plena consciência de tudo o que lhes falta, da ausência primeira e incontornável que lhes rasga, de sua incompletude face à “realidade”, do fracasso que diz respeito não apenas à forma na qual investem e que reinventam, mas, também, à espécie que teima em investir e se reinventar por meio de tais e tais coisas, em um esforço derradeiro, sempre em um esforço derradeiro.